sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Clóvis Beviláqua "Na Helênia"

NA HELÊNIA
Nessa noite, Crobilo teve um sonho estranho que lhe pareceu uma revelação.
Estava sentado sob um frondoso plátano, em uma eminência de onde se avistava, a um lado, o Pireu com as suas cabanas de pescadores, seus vastos armazéns, suas extensas muralhas e os três portos. Mais além a ilha Egina, que Péricles chamara a belida do Pireu, e o mar, vasto e azul, cortado por vários navios garbosos, cujos remos fendiam as águas, unidos na distância, num compasso igual, semelhando grandes aves marinhas a agitar as asas em demorado vôo à flor das águas.
Sem que percebesse de onde viera, chega-se a ele Epicuro, com a mesma fisionomia sofredora e nobre, o mesmo olhar doce e suavemente melancólico, e os lábios encurvados pela mesma ironia fina que mais parecia eflúvio de uma alma que sofre do que desilusão de um espírito que tudo sondou para tudo saber. Estavam sós, Epicuro pousou-lhe a mão no ombro e falou, numa voz persuasiva e acariciante:
- Buscas o repouso e a felicidade. E onde julgas que esteja a felicidade, e onde pensas que se esconda a paz do espírito, que é doce como um fruto sazonado? No prazer? Na volúpia? No gozo fugitivo e vão dos sentidos? Aristipo e a escola cirenaica foram todos uns desvairados. Não afastes o prazer que te for deparado pelo mundo; mas colhe-o como quem colhe uma flor. Ele vem da natureza e foi ela que assim nos moldou a vida. Erigir porém a satisfação dos desejos materiais em princípio fundamental de conduta, em base da moral, é um pensamento sujo que tresanda a vinho. O prazer físico, se é descomedido, exaure deixa um ressaibo de fel; a volúpia contínua apaga o fogo da inteligência, centelha divina que nos destaca e eleva acima dos brutos e dos bárbaros.
- Mas a religião? balbuciou Crobilo dominado mais pelo tom das palavras do que mesmo pelo que elas significam.
- A religião? ... O filósofo teve um olhar mais condoído e uma ironia mais forte, porém uma doce ironia que não magoava. A religião? ... Não atormentes os deuses com as tuas preces insensatas. Efebos eternamente belos, eternamente jovens, afogados na ebriedade de um gozo ideal, não podemos sequer imaginar que eles se rebaixem a se imiscuir com a nossa vida mesquinha que dilaceram as paixões e as dúvidas. Serenos e despreocupados, eles vagam pelos intermúndios, enquanto o lento curso das coisas se desdobra imutável, impelido pela queda dos átomos em turbilhão.
- Mas a pátria?
- Bela e nobre coisa é, por certo, servir aos seus, ser útil à pátria. Mas teriam sido felizes, Aristides banido, Temístocles, refugiado entre os persas, Fócion, bebendo a cicuta preparada por aqueles mesmos a quem procurara servir, Demóstenes, suicidando-se no templo de Posêidon, na Caláia? ... Não te descoroçoem estes exemplos, e serve à tua pátria nobremente, como estiver em tuas forças; mas não suponhas que encontrarás aí a felicidade. O favor popular é uma fonte inesgotável de mágoas e dissabores. O povo é inconstante e cruel; sacrifica, em uivos de cólera, o ídolo que adorara de joelhos no dia anterior. Que mortal foi maus endeusado pelos atenienses, do que Demétrio? E, no entanto, que destino triste o seu!... Não procures o favor das turbas; segue impávido o teu caminho e deixa que a onda popular se espoje além, sem te arrastar no seu refluxo.
- E o que fazer? Onde beber, então, o gozo que as almas procuram sedentas? Onde a felicidade? Onde a paz do espírito?
- Há um vinho mais doce e mais delicado do que o que se extrai dos cachos da uva de Quio e que se bebe em taças lavradas. É a prática do bem, é a virtude, a qual nos dá o gozo no momento atual, que passa rápido, e no passado, que subsiste pela revisão do que fizemos. Ninguém pode ser feliz sem ser justo! Existe um favor mais cobiçável do que o da populaça de Atenas ou de qualquer outra cidade: é o da própria consciência e o da consciência dos que nos podem compreender!
Coloquemo-nos acima do vulgo, sem desprezá-lo vaidosamente.
Libertemo-nos de suas inquietações crudelíssimas e de seus temores infantis, criados pela ignorância; mas não procuremos arrancar-lhe as ilusões que lhe amenizam a existência, uma vez que não é possível iniciá-lo na religião da ciência, que tem as suas provações como as outras os seus mistérios.
Envolvidos no sendal sereno da ataraxia que nos dá a contemplação das leis universais da natureza grandiosa e vasta, da beleza ideal e da virtude, cortemos o cordão umbilical que nos prende ao mundo reduzido de uma pequena cidade helênica, e elevemos a vista mais ao largo, mais ao longe.
A suprema serenidade que só as almas superiores conhecem eis a felicidade tangível. O caminho que a ela nos conduz é essa necessidade faminta de conhecer o mecanismo da vida universal, aliada a essa outra necessidade de ser bom, de ser justo. Isto é a filosofia, é "a energia pela qual a razão conduz o homem à felicidade". A filosofia é um rio de águas claras e profundas, mas está longe, muito além, por trás de montes altíssimos, de florestas rebarbativas.
O filósofo calou-se. E nesse momento assumiu Telesipa, como se tivesse emergido do solo.
Tinha um sorriso vitorioso aberto em flor na flor dos lábios, e, arrepanhado um pouco a túnica que o vento do mar agitava, derramou a luz do seu olhar sobre as dúvidas tormentosas de Crobilo. Falou, radiosa:
- Não rebusques mais nem desesperes. A felicidade sou eu! É bem simples, poder crer: a felicidade sou eu. - E, envolta em uma nuvem diáfana, trescalando mirra, sorriu ainda, vitoriosamente.
O filósofo, envolvendo os dois jovens no mesmo olhar compassivo, acenou com a sua bela cabeça de pensador, aprovando:
- Amai-vos - disse - enquanto sois moços e a lira de vossa alma tem vibrações para essa incomparável ternura que transvasa do seres quando se infloram para o amor! Amai, dissolvei o vosso ser em ondas de afeto! Sim, é isso. É bem simples e é perfeitamente humano. Mas não esqueçais a linha reta, e, sempre com os olhos fitos no alto, procurando compreender a natureza e a vida, o real e o justo, segui o vosso caminho, unidos e felizes, desassombrados e inesitantes.


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Nota:
Clóvis Beviláqua: "Frases e Instantes" (1894)

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