A ESPADA DE ALEXANDRE
Corte profundo na questão do
Homem-Mulher e Mulher-Homem
O titulo alude, de modo
analógico, à lenda do “Nó Górdio” que Alexandre, o Grande, cortou com a sua
espada. Segundo a lenda, no templo de Zeus da Antiga Frígia, estaria a
carruagem com que o rei Górdio foi coroado, amarrada a uma coluna com um nó tão
complexo que um oráculo vaticinou que a pessoa que desatasse o nó dominaria
toda a Ásia menor. Alexandre Magno, ao passar pela frigia, 500 anos depois,
resolveu a questão cortando o nó com a espada num só golpe e acabou
efetivamente por dominar a Ásia Menor. Portanto título é um epiteto sobre como
“ resolver um assunto complicado como o nó górdio, com um corte da espada de
Alexandre”.
Carta ao meu vizinho Raimundo,
Poeta Laureado na «Águia-d’Ouro»
Meu caro Senhor e Vizinho!
Era por uma noite de lua cheia do
agosto pretérito. Estava eu à janela do terceiro andar, onde moro, nesta
fragrante rua das Congostas, ninho de poetas e filósofos, floresta ramalhosa
onde vossa excelência regorjeia as suas liras, e eu medito Teófilo e Rosalino
Cândido.
Estavam então vossa senhora e a
sua esposa, com as vidraças erguidas, banhados de resplendores da lua,
altercando em voz alta a respeito de um livro de Alexandre Dumas-Filho, obra
que por aí gira com o titulo hermafrodita de HOMEM-MULHER.
Dizia a sua esposa que o autor do
livro atacava o direito, a justiça, a religião e o pudor. Replicava o Sr.
Raimundo que o autor do livro não atacava nada; pelo contrario defendia tudo.
Redarguia sua excelência que a
mansão conjugal não é açougue, nem a esposa vaca, nem o marido megarefe.
Recalcitrava vossa excelência que a esposa devia considerar-se vaca, desde que
o marido era boi. L'Homme-Femme-Le Boeuf-vache! Está claro.
Contenderam largo espaço os meus
prezados vizinhos neste honesto certame; e, ao mesmo passo que mutuamente se
ilustravam nos deveres de cada um, abriam no meu cérebro um jato de filosofias
que eu passo a golfar aos quatro ventos da terra.
Os sentimentos bem ou mal
expendidos nesta carta, meu prezado vizinho, são uma espécie de prolegômenos
com que tenciono predispor os ânimos para a representação de uma tragédia, em
que trabalho há muito, intitulada “O homem de Cláudia”. Não se presuma, porém,
que eu venho com esta noticia aliciar espectadores para a minha tragédia no
Teatro-Circo. Não, Sr. Raimundo. Eu sou publicista da escola de Mestre Teófilo
simbólico, um que tem nos malabares do sumo sacerdócio a dignidade, como a
respeito dele vaticinou Luiz de Camões, no Canto. X, est. 11.
Publico um livro. Sei que ninguém
mo compra, nem mo lê; mas convenço-me, à laia do mestre, que os meus livros
ensinam tudo que os outros sabem. Esta ronha pegou-ma ele, o Grão-Lama, que
imagina fazer reformas de raças com os seus livros de dentadura anavalhada como
Cadmus fazia homens com a dentuça do dragão. Ajoujei-me, pois, na canga deste
pedagogo, e vou bem.
Revertendo ao ponto:
Afirmam autores de boa nota que a
mulher é fêmea, feminina . Neste parecer abundam D. Antônio Ayres, bispo do
Algarve, na «Reforma» do aprisoamento, e Bento Pereira, na Prosódia . Autoras
também de boa nota asseveram que o homem é macho. Do enlace e coesão destas
entidades heterogenias forma-se o Macho-fêmea, o colchete felogênio. Faça-me o
favor, Sr. Raimundo, de alçapremar o seu intelecto à altura destes princípios.
Em matérias transcendentes seja-me águia e não cágado.
No princípio do mundo (não iremos
mais longe por enquanto) extraiu Deus a fêmea do entrecosto do homem. Aurora do
paraíso! Então era a costela do homem que dava a mulher; hoje em dia, há homens
com todas as costelas partidas porque desejaram uma ou duas mulheres! O lombo
do rei da criação perdeu bastante da sua importância desde que os nossos irmãos
antropófagos pegaram de extrair dele sandwichs.
Este exemplo indelicado seduziu a
esposa a considerar o marido uma substancia comestível entre o presunto de
javali e o fiambre de veado. Daí, o desacato, o deslize daquela patriarcal
idolatria com que dez centos de mulheres genuflectiam ao santo rei Salomão.
Abastardado o antigo preito da
costela ao costado, da parte ao todo, os filósofos inventaram a alma para de
alguma forma afidalgarem a junção da carne à carne, do osso ao osso — frase
bíblica sobremaneira bonita e asiática. Ideada a alma, cumpria ungir com os
óleos místicos o pacto da aliança entre alma e alma. Acudiram os canônicos com
a invenção do sacramento.
Espero que o meu vizinho não
ignore inteiramente que os Sacramentos são sete. E, se esta sombra de duvida
ofende a sua ortodoxia, sirva-me de desculpa aquilo de Plutarco no seu tratado
«Da maneira de ler poetas.» Diz ele: «A religião, coisa difícil de perceber,
está acima da inteligência dos poetas». Mas do sacramento do matrimonio sei eu
que o Sr. Raimundo, sem embargo do seu alto lirismo, percebe o essencial,
porque eu mesmo o ouvi dizer a sua esposa:
«O matrimonio foi divinamente
instituído». Por sinal que ela, ática e séptica, respondeu-lhe :
— Bem me fio eu nisso!
E a razão da sua esposa de
duvidar da procedência divina da instituição, meu caro vizinho, eu digo-lhe em que
bases se funda.
Instituição divina há só uma: é o
mundo. Esta crença há de prevalecer enquanto o meu mestre Teófilo não quiser
provar que o mundo é obra dos mozárabes. Divino é tão somente aquilo que
humanamente se não faz. Os sonetos da vossa excelência, por exemplo, não me
parecem absolutamente de instituição divina. O casamento também não, porque em
tal ato influem o amor, o interesse, o medo, a vergonha, o reumatismo, a papa
de linhaça posta por mão de esposa carinhosa nas irritações do aparelho digestivo,
etc. Estas coisas são tão divinas como eu; e, senão ouso dizer como o vizinho,
é porque vossa excelência, na sua qualidade de bardo, tem lumes divinos, mens
divina; arde, fumega, evola-se como Elias-voltaização de que se não gabam aqui
os nossos vizinhos pecuniosos porque o dinheiro puxa por eles para baixo como
os élitros pela tartaruga.
Vossa excelência sabe que, na
antiga Germânia, consoante Cornélio Tácito descreve, aqueles bárbaros ditosos
casavam-se sem sacramento, sem sacerdote e sem templo. O noivo, em presença de
parentes seus e da noiva, dizia-lhe: «Recebo-te como minha legitima mulher,
para te haver e possuir, de hoje avante, boa ou má, rica ou pobre
, para te amar e assistir em
tempo de saúde e doença, até que a morte nos separe».
Ali, divindade e padre, naquela
augusta cerimônia, eram os arcanos sagrados, arcana sacra , o misterioso
respeito ao Deus invisível, consagrado nos solitários murmurejos da selva, lucos ac nemora consecrant.
Ora, medite, Sr., nestes
selvagens, onde as mulheres rapadas, as adulteras, eram por tanta maneira
raras, que apenas aparecia uma para cevar a execração das turbas! Pois olhe que
não havia lá naquelas florestas dodonicas ideia de fêmea fabricada da costela
do homem. Lá dizia-se que a criadora do mundo havia sido uma enorme e desmedida
vaca, e vivia-se honradamente apesar de tão estúpida cosmogonia de uma vaca
bruta; e, por aqui, no pino da civilização, com tantas vacas sabias, vamos a
pique! As nossas fêmeas restituem-nos a costela, pondo-no-la como apêndice ao
crânio; e, em vez de se tosquiarem à guisa das germânicas, alcantilam as
cabeças com uns riçados delirantes. Atroz!
Diga-me, poeta laureado: não será
injuriar Deus atribuir-lhe o vinculo sacramental do matrimonio, de onde derivam
tantos infernos sabidos, tantos infernos ignorados, tantos corações
nobilíssimos pervertidos, tanta desonra escarnecida pelos foliões dos palcos,
tantas alcovas devassadas, tanta mulher emborcada no gólfão das lagrimas a que
a sociedade chama o lodo da prostituição?
Levam a tais voragens as estradas
complanadas pela mão de Deus?
Ó Sr. Raimundo, não parvoejemos
por amor ao catolicismo. Não façamos da nossa hipocrisia aspa de patíbulo em
que estamos sempre a cravejar a memória de Jesus, sobre quem Deus refrangiu o
mais divino reflexo da sua gloria.
Jesus não fez o casamento: quis
fazer a nova Eva, com o pé sobre os colmilhos da serpe, e a cara amparada no
seio amantíssimo do homem.
Ah! Jesus disse: «Amai-vos!» Isto
de: «maridai-vos» é preceito de concílios, e é palavra que não soa no léxicon
hebreu nem chaldeu. Ser-me-ia mais fácil encontra-la em Petrônio que em S.
Paulo. Ressuma dessa palavra um travo de impudor. Quando ela vier do intimo
seio aos lábios da mulher, já lá dentro não há flor que lhe perfume o furtum.
Maridança! — expressão deslavada
de um ato sem vislumbre de ideal, a desfloração a começar na prosódia, um
rebaixamento daquele prodígio da fantasia genética-da mulher à condição da
fêmea, da retorta, do recipiente, da maquina de costura silenciosa, da matéria
granjeada para reproduzir, como quem aduba um torrão que há de verdejar couves
lombardas!
Atroz, Sr. Raimundo, atroz!
Que é o adultério?
É a razão insurgida contra o
absurdo do vinculo indissolúvel.
A mulher, que morre no ato da sua
rebelião, que é? Hoje, é uma criminosa que uns deploram, e outros improperam na
sepultura. Daqui a cem anos será celebrada como holocausto da emancipação.
Porque, de hoje a cem anos,
vizinho, não haverá matrimonio, nem adultério-crime convencional e estranho à
natureza, na judiciosa frase de Girardin- ; haverá amor durável e mantido
mutuamente pela liberdade de quebrantar o pacto. O sacramento, o nó
indesatável, serão os anjos, os filhos. porque os filhos, as crianças amadas do
defensor de Maria Magdalena, desde então conversam com Deus, e aurem-lhe dos
olhos divinos o raio de luz que reverbera entre os corações dos seus pais. Não
descerá a treva do tédio sobre as almas amadas. A aza pura e alva do filho
cobril-as-há, quando a hidra da lascívia ressurtir das ruínas de algum extinto
mosteiro de bernardos ou bernardas.
Que é o matrimônio?
A definição, dada recentemente
pela minha colega Maria Deraismes, recende aromas de tão subtil feminilidade,
que não há aí coisa mais balsâmica de donzelice e pudicícia!
Ora, leia, poeta e senhor meu, e
confesse que, ao par disto, os seus madrigais são trovas de marujo que fadeja
nas fontes cabalinas da Travessa dos Barbadinhos.
«O casamento-diz a dama,
invetivando Alexandre Dumas-é a união de dois organismos, cada qual com o seu
oficio a exercer, em consequência de precisões, apetites, e desejos que
reciprocamente pendem a satisfazer-se um pelo outro, sendo o objeto desta
satisfação a perpetuidade da espécie. Eis a essência, o fim do casamento.»
Esta minha colega fisiológica, ao
que parece, é lida em Sanches, De matrimonio, e tem bastantes luzes de
anatomia. Para alguns espíritos rasteiros e ignaros prefiguram-se no himeneu
suavidades, arrobo, idealizações, evoluções mais ou menos gasosas, borboletas
iriadas, etc. . A Sra. D. Maria da EVA, não. Essa vê dois órgãos com apetites.
Em matéria de casamento não é
cristã, nem maometana, nem pagam: é organista.
Em outro lanço, pag. 38, a mesma filosofia,
discreteando acerca dos ditos órgãos, pondera que «a fisiologia, parte da
biologia, quando trata dos órgãos em exercício, requer a mais rigorosa
imparcialidade, e a rejeição plena de tudo que é postiço.»
Apoiada! Gosto desta senhora! Se
eu tivesse um filho parvo, dizia-lhe : «Casa-te com esta D. Maria da EVA, se
queres saber biologia.»
Outra minha colega, que por nome
não perca, diz que: «se a sua filha for sanguínea e de compleição robusta, lhe
não escolherá marido fraco ou desfalcado de forças por libertinagem.»
É também organista.
Cá está outra: a Sra. D. Hermance
Lesguillon, versada em Aristóteles.
Esta dama abespinha-se
razoavelmente contra Dumas, porque ele parece alvitrar que as meninas se
abstenham de interpretar muito à letra o preceito genesíaco. A douta matrona,
autora de quatorze livros, exclama:
«Qual é o fim da criação? É
decisivamente convento para as mulheres e mosteiro para os homens? Isto, a
falar verdade, é ridículo! Onde quer o Sr. que elas vão? Aos vícios
contranatura, como Aristóteles os atribui ao masculino nas republicas gregas?»
Veja-me esta sábia, ó Sr.
Raimundo!
Quer agora regalar-se com um pedacinho
de apostrofe contra o mesmo vicio dos gregos?
«Cautela, eterno masculino! O
próprio Deus se ofende desses atentados contra a natureza! Esses impudicos
mistérios que cometeis contra a mulher—obra da predileção e ternura
divinas-ultrajam Deus!»
Mistérios impudicos que ela lá
sabe, como se não fossem mistérios.
Vista dupla do gênio. Em fim,
sempre é dama que lê Aristóteles, como a sua esposa, meu vizinho, não é capaz
de soletrar a Palavra , gazeta de letras de 10 reis, as quais não podem formar
uma inteligência de pataco.
Conta a referida literata que
certa donzela sua amiga, em véspera de casar, leu o Homem-mulher . Entrou o
noivo, e achou-a a tremer de pavor com o livro entre mãos. Pergunta-lhe que
tem; ela mostra-lhe a brochura, e aponta-lhe com o dedo de Agatha aquele
truculento «Mata-a!»
— Que lhe parece isto?-disse a
pálida noiva.
— Soberbo!—responde o gentil
namorado-Não há aí palavra ociosa. O remate principalmente é ótimo!
E a menina, sem mais delongas,
desmaiou. E, assim que recobrou os sentidos, disse à mãe que não queria
semelhante marido.
Rodeiam-na as suas amigas;
forma-se sinagoga de senhoras conspícuas, e concede-se à loira Alice a palavra
para explicações.
E a menina entre outras frases,
expediu estas do seio arquejante:
— Aquele mata-a! mata-a!
zumbia-me nos miolos! Estarreci!.. Como há da gente jurar que será sempre a
mesma, quando o livre arbítrio está dependente de outro? Poderei
responsabilizar-me por ama-lo sempre? Se me ele sair abominável, por
sentimentos, e violento, caprichoso e déspota, poderei sofrear a minha
impaciência? Se ele me não agradar depois, poderei ama-lo?-
Vizinho, bacorejou-lhe à prevista
menina onde iria parar ao diante, e teve medo. Honrado susto! Não lhe assevero
que ela soubesse biologia, nem miologia, nem manuseasse as políticas
aristotélicas; mas de tal donzela há muito que esperar, cientificamente
falando. Destas vitelas tenras é que se fazem as vacas sabias e duras.
Mas não se persuada, senhor meu,
que a discreta Alice apresilhe no colo de alabastro a túnica de vestal. Longe disso.
Tenciona casar, porque as matronas acadêmicas lhe prelecionam biologicamente
que a perpetuidade da espécie é condição indeclinável. Diz ela então muito
aforçurada:
— Hei de casar com pessoa cujos
sentimentos eu conheça radicalmente; quero que eu e ele saibamos com o que
podemos contar, e se as nossas simpatias são reciprocas... Lá do enxoval, que
estava pronto, não se me importa já... Eu ia casar com um sujeito que não amava
nem conhecia. Primeiro que tudo, quero amar os sentimentos honestos do meu
namoro. Com tais condições, tudo se arranja bem. Seremos depois indulgentes um
para o outro.
Bastante petisca; mas boa
rapariga de lei! E ingênua então... até ali! Confessa que esteve a ponto de
casar com homem que não amava; mas casava tão de vontade como voluntariamente o
rejeitou. De sorte que, se não aparecesse o livro de Alexandre Dumas, veja
vossa excelência que destino se estava aparelhando para o marido daquela
senhora!
Ó vizinho, sabe o Sr.? eu, se
tivesse um filho indulgente, dizia-lhe: «Rapaz, se não levas a mal que o
almoxarife da casa de Bragança, em Vila Viçosa, te mande agarrar e recolher à
tapada como cervo tresmalhado, casa com esta menina perliquiteta.»
Agora, duas paginas sérias, Sr.
Raimundo.
Cá tenho a pitada engatilhada ao
nariz circunspecto. Devo-me ao futuro do meu país. Vou enviar-me gravemente à
posteridade.
Não me consta que em Portugal,
por enquanto, alguma das gentilíssimas damas, que recolheram a herança das
Sigeas, Alornas e Possolos, haja saído à liça a esgrimir com o fulminante
estilista francês. Parabéns à constelação de estrelas que cintilam anualmente
no Almanaque das Senhoras ! Que não baixem da região excelsa em que são
contempladas cá destas cavernas onde urram alcateias de feras. Se anjos
descerem a envolverem-se conosco, sairão desluzidos, com as cândidas plumas
encarvoadas do suor negro dos nossos pugilatos. Nós, os gladiadores desta
arena, se as santas estrelas se apagarem, não teremos a quem saudar,
moribundos.
Não as induzam exemplos de
escritoras francesas nesta melindrosa contenda. A ciência perigosa, que lhes
sobeja, é escorregadia, pudor abaixo, até ao desdouro da ideia e da forma. Já
lhes não basta a área modesta dos argumentos colhidos nos mananciais doces do
coração e da alma. Rompem as carairas das ciências físicas e graduam
quimicamente os glóbulos cruóricos do sangue de cada mulher.
Dão vénia e desculpa aos
temperamentos rijos, e acham menos perdoável o desacerto da esposa linfática.
Devassam os latíbulos de Sodoma, e dardejam por sobre a espádua de Aristóteles
frechas sarcásticas à cara purulenta dos lázaros que raspam a sua lepra nas
sargentas. Abrem Bichat e De Bienville para nos ensinarem o que é a esposa anatômica
e fisiologicamente. Uma, que diz ter filha ainda criança, promete consultar o
calórico, os estos e o arfar do sangue da sua filha nubente, quando houver de
lhe escolher o homem.
É uma senhora quem pensa e
escreve estas carnalidades, e as estampa e atira o livro à onda suja, que
espuma nos tapetes das salas de Paris e de todo mundo. As avezinhas, esvoaçadas
do pombal do Sacré-Coeur para o baile, para o teatro, para o Bois , seguem o
olhar lavateriano das mães a cada homem anémico ou pletórico, descarnado ou
enxundioso, que se aproxima. Isto sobreleva a torpeza tolerada à mulher que
esconde o seu aviltamento nas alfurjas. Neste frenesi de esgarafunchar em
temperamentos, será racional que o noivo se exiba e sujeite a ser apalpado no
crânio pela mãe da noiva, com Spurzheim aberto, para averiguações de bossas, e
confronto de protuberâncias das duas cabeças examinadas como aptas ao
maquinismo da procriação. Alvitres daquela estofa, dados por um ébrio no estaminet , revessam-se precipitados no
sedimento do absinto e do haxixe ; mas, decoados pelos prelos, tornam a crônica
das orgias de Trimalquião um livrinho digno da puerícia, um «Ramilhete de
cristãos»; e, se derivam por entre os dedos translúcidos de uma senhora, ah! eu
não lhes sei o nome!- a minha vontade é chorar um choro grande como o profeta
Ezequias: flevit fletu magno!
E vossa excelência não chora, Sr.
Raimundo? Esponje-me dessas entranhas de poeta fios de lagrimas; depois,
enxugue-se, e leia, se está de pachorra.
Aquelas e outras damas que tais
livros escrevem, inspirando-se da catástrofe de Denise Mac Leod, assassinada,
pouco há, pelo marido, afugentam a piedade de ao pé da sepultura onde o
Archanjo sombrio e mesto da paixão se abraça à cruz das Manas Egipcíaca e de
Cortona. A desgraça no tumulo é inviolável. As mais austeras consciências se
comiseram das infelizes dilaceradas pelas rodas deste péssimo maquinismo
social; todavia, a compaixão não é assentimento ás irrefletidas damas que
peroram ás turbas mostrando a túnica ensanguentada da vitima, como quem mostra
o punhal de Lucrécia. Se nos querem comover, chorem primeiro. Lagrimas,
lagrimas. Nada de retoricas lardeadas de doutorices. Em vez de fisiologia,
espiritualismo. Alma; e de corpo só o quantum satis. Contem-nos segredos das
suas fragilidades maviosas; coisas do seio para dentro; flores de coração, que,
ainda afogadas e delidas na raiz por abundancia de lagrimas, espiram sempre
olores de inocência. Se se desviam da honra, aconselhadas pelas suas sabenças,
então está tudo perdido! Em organismos, em sangues ricos ou depauperados, em
disciplinas do 3.° ano medico, façam-nos o favor de nos não aperfeiçoarem.
Receamos que as suas excelências nos intimem tarefa de croché , enquanto elas,
montando os óculos, abrem o grande volume de Harveus, e, para nossa confusão e
escarmento, pegam de declamar: Exercitationes
qusdam de partu: de membranis ac
humoribus uteris et conceptione. Eu tenho este livro, vizinho; e, se uma
filha que hei de ter, me abrir o livro e o traduzir no capitulo
Propagação da espécie, mato-a;
para que o filho do Sr. Alexandre Dumas, vindo a ser meu genro, ma não mate,
aconselhado pelo pai.
Sr. Raimundo:
Eu não sei se a sua esposa é
instruída e bastante profunda em Ponson du Terrail . Que não vá ela arrenegar
do mau vizinho da porta como de todos os diabos, malsinando-me de zoilo de
damas que versam com mão diurna e noturna os romances da «Biblioteca
económica».
Não, senhor.
Acato a sabedoria das senhoras,
quando a figura lhes dá jeito de viragos, feitio de mestras regias jubiladas, e
um não sei que de sexo canônico.
Que a sua esposa, jovem e
galante, recite ao piano trovas de lavra própria, e escreva o soneto acrostico
no dia natalício do marido, acho isso bonito, senhoril e benemérito de um até
dois ósculos castos e dignos da testa da Minerva antiga. Mas, se ela descambar
das branduras eróticas de Sapho para as meditações sociológicas da Sra. Canuto,
peco-lhe, vizinho, que a obrigue a ler as obras do meu mestre doutor Teófilo, a
fim de ganhar ódio à letra redonda-virtude supranumerária dos escritos daquele
varão.
Houve damas que lograram entalhar
seus nomes na arvore imortal da ciência; essas, porém, não desgarraram da senda
florida por onde as abelhas do Himeto lhes saiam a dulcificar mulherilmente a
frase. Dou-lhe como exemplo Stael.
De envolta com vastíssima lição
entreluzem, nos seus livros mais grados, donaires feminis, e gênio acendrado na
fragua do coração. Ao propósito desta estéril peleja, que se renova cada vez
que um marido se furta ás prezas da irrisão publica, atirando ás da morte a
esposa adultera, Stael perpassou ligeiramente, como lhe cumpria, pela solução
do divorcio, reprovando-o. No extremado livro chamado Da Alemanha , escreve a
insigne pensadora: «É forçosa coisa confessar que a facilidade do divorcio, nas
províncias protestantes, macula profundamente a santidade do matrimonio. Tanto
monta mudar de marido como urdir as peripécias de um drama. Lá, a boa índole
dos homens e das mulheres permite que semelhantes rompimentos não sejam
amargurados... É, todavia, certo que, à conta disso, a consistência do caráter
alquebra-se, os bons costumes abastardam-se, o espírito paradoxal alue as mais
sagradas instituições, e não há aí determinar regras sobre coisa nenhuma».
Aqui tem sentimentos que frisam
honradamente primorosos em índole de senhora nesta questão, a todas as luzes
péssima, por nimiamente arriscada. Aquele parecer é talvez vulnerável, e não
resistirá, por ventura, a Portalis ou Montesquieu; mas o que a ciência lhe
respeita é a honestidade. Filha, esposa e mãe,-tudo no extremo em que a
eminente escritora logrou ser, em vida tão aparcelada de angustias-respiram
naquele pudibundo resguardo à seriedade do casamento. Ela não quer o divorcio:
quer a dignidade na paciência, quando faleça no homem a probidade de marido.
Compare-ma, Sr. Raimundo com
estas Hippatias de 1872. Em quanto a poetisa de Corinna linimentava suas magoas
de expatriada com a Messíada de Klopstock, este outras, com o cérebro ainda
escaldado dos meteoros de petróleo, justificam o desaire das esposas com a
fisiologia de Muller, e vão ler, ao lampejo dos círios mortuários, que ladeiam
o ataúde de Denize Mac Leode, as vaias que o filosofo de Stagyra desfrechava
contra os pederastas espartanos.
Quer vossa excelência ler, a
ocultas da sua esposa, um molde de altercação, entre marido e mulher, que D.
Maria da EVA, lhe oferece em desculpa da adultera?
MARIDO
O adultério da minha mulher pode
fazer-me pai de filhos alheios.
ESPOSA
O adultério do meu marido pode
arruinar-me os bens de fortuna.
MARIDO
Tu devias ter força e juízo para
não sucumbir.
ESPOSA
E tu, que representas a razão,
foste o primeiro a prevaricar: não fiz mais que pagar-te na mesma moeda.
MARIDO
A minha culpa foi um mero
capricho dos sentidos.
ESPOSA
E a minha foi uma necessidade.
Quiseste que eu fizesse de viúva sem ter enviuvado.
* * * * *
Aqui tem! Que senhoraças! Não lhe
faz saudades a decência das Cartas de Ninon de Lenclos? Eu estou em dizer-lhe
como o poeta, que honras e famas Em tais damas não há para ser damas.
E, por tanto, vizinho e amigo, à
vista do que pregam estas pandorgas folicularias,-sintomas de acirro incurável
no coração da França,-somos entrados em período de decomposição. Salve-se quem
poder com a sua companheira desta pior Troya, e leve alguns penates reduzidos
em espécies bancarias sobre os hotentotes, e vamos para lá muito nas boas
horas, se a vossa excelência não prefere antes que fiquemos para moralizar as
massas.
Eu, de mim, anteponho o martírio
à fuga. Irei bradar debaixo dos muros desta segunda Jerusalém, sem me esquecer
de Barcellos, Amarante, Lamego e outras Ninives corrompidas. Se os de dentro me
amolgarem a cabeça à pedrada como fizeram ao outro enviado do Senhor, arranje
vossa excelência a formar de mim um sujeito legendário, depois de consultado
mestre Teófilo arbitro das castas-sobre a raça em que me há de grudar.
Sou apostolo comedido e modesto,
Sr. Raimundo. Não me desvanecem presunções do convencer. O que faço é alqueivar
bravios: o semeador virá mais tarde.
Repare, no entanto, por essa vida
de seis mil anos fora que vem flutuando desde o chãos. Não vê uns altos e
eternos padrões assinalando paragens que o gênero-humano fez para ouvir a
consciência da sua força, o Deus interior, pela voz dos oráculos? Sobre esses
padrões há umas estatuas que topetam com as estrelas. Chamam-se Moisés, Fó,
Kong-Fou-Tsée, Sócrates, Platão, Aristóteles, Cícero, Paulo, Galileu, Lutero,
Vico, Descartes, Kant, Kepler, Leibnitz, Newton, Pascal, Montesquieu, Voltaire,
etc.
Cuida vossa excelência que as
torrentes da vida intelectual e progressiva se rebalsaram neste pântano
descompassado em que as rans, por entre os rabaçais, nos estão coaxando
ciência... de rans? Está iludido, vizinho. A natureza humanal fermenta, tem
febre como puérpera de um grande feto que lhe escouceia os flancos, fita
grandes orelhas abertas aos rugidos da ideia nova que vem da Cafrária, e
assesta o óculo de longa mira ás brumas do horizonte, onde, a espaços, lhe
corisca um pirilampo, que, se não é Teófilo, sou eu.
Se é ele, digam-lhe que se abra.
Epheta! — palavra hebraica, que quer dizer: abre-te! Melhorar os costumes das
raças deve ser-lhe mais fácil que a costumeira de inventa-las. E ele, como o
vizinho sabe inventou-se a si, inventou aquilo! Pois então que fale, com
dispensa até da sintaxe. Que espirre candeias na treva que se está condensando
à volta do cérebro social—a família. Que laqueie a grande artéria aorta da
sociedade humana-o matrimonio. Que defeque o intestino cego das raças
germânicas e latinas da ténia que o rói-o adultério. Que nos diga, em fim,
Teófilo o que se há de fazer ao dono ou dona desta prenda!
Ninguém receia que se esquive de
entrar nesta gafaria de tabardões, com o seu emplasto, ele, que entrou com 3725
paginas em-8.° no gazofilácio da pátria. Sabia isto, vizinho? E nós, os seus
discípulos laudanizados, esperamos que o mestre, depois desta sonolenta
operação de Mesmer, nos transporte ás regiões translucidas do espiritismo.
Entretanto, porém, que o vidente
incuba, vou eu arroteando o chavascal que ele depois tosará mais a preceito.
Sr. Raimundo, poeta laureado e
amigo:
Alexandre Dumas-Filho quer que
Caim casasse com uma macaca, natural do país de Nod, terra desconhecida a
Estrabão. É logicamente rigoroso que um país desconhecido a Ptolomeu e outros
geógrafos antigos seja país de macacas. se a vossa excelência não achar no mapa
de Portugal a terra onde fui criado e educado, a Samardã, tão chasqueada por
Filinto Elísio, fica autorizado a decidir que eu, em pequeno, andava lá pelos
bosques a brincar com as caudas dos cinocéfalos, meus mestres de ginástica e
gesticulação.
— De onde és tu, meu
amor?-pergunto, na praia da Foz, à mulher que adoro. — Sou de S.
Gonhedo-responde ela.
— De S. Gonhedo? Espera aí.
Abro o «Dicionário geográfico»,
de que ando munido depois dos últimos acontecimentos. Procuro S. Gonhedo , e
não acho.
Começo a suspeitar que o meu amor
é de Nod;-que é, pelo menos, amacacada. Disfarço, acendo o meu charuto, e
safo-me. É o mais prudente.
De Caim e da sua esposa Catarina
(sem dom : receio que a vossa excelência, esquecido dos seus estudos
zoológicos, faça a mulher quadrúmana de Caim homônima da inspiradora de Luiz de
Camões. Catarina é o nome de uma das duas tribos da primeira família de
macacos. Veja Milne-Edwards, Dumeril, Lamarck, e a mim, passim) - de Caim e da
sua esposa Catarina procedem, segundo Alexandre Dumas, as mulheres de má raça e
condição bravia. Pelos modos, nesta progênie maldita, os machos são poucos, sem
embargo de enxamearem por aí em barda uns que macaqueiam Schlegel e Kant como
uma foca pode remedar um acrobata árabe.
A geração de Caim, continuada em
Cham, brunida pelo esmeril dos séculos, adelgaçou-se e poliu-se de feitio que
já se confunde hoje em dia com a descendência abençoada de Sem e Japhet. Vossa
excelência (permita o exemplo)-está persuadido que a sua senhora é da raça boa,
e faz muito bem; mas vá de hipótese que a sua mulher amua e trinca o lábio porque
o vizinho resiste a renovar-lhe a cuia. Parece-me que será então acertado
reparar se ela nessa ocasião rói o sabugo, se coça os quadris com o dedo
indicador, e anda de cadeira para cadeira a dar uns saltos suspeitos. Se este
desgraçado pressuposto se realizar, vossa excelência não será demasiadamente iníquo
desconfiando que está matrimoniado com uma senhora que tem nas veias um litro
de sangue de macaca. Feito o descobrimento antropomórfico (queira desculpar
esta gregaria), nenhuma cautela é de mais. O bom siso pela minha boca humilde,
aconselha o vizinho que lhe dê a cuia, duas cuias, e três nozes para ela se
desarrufar. Se não fizer isto,... estende-se, Sr. Raimundo.
Começam a entreluzir os meus
princípios acerca do adultério. Já achou, vizinho?
O adultério é um fatalismo
orgânico. A mulher de estirpe macaca é irresponsável do fratricídio e casamento
bestial de Caim. A rola arrulha, o sagui chia, cada qual segundo a sua natureza
glótica. O homem não deve sangrar à ponta de punhal a artéria onde o supremo
gerador injetou sangue viciado. Ninguém se lembrou de fazer irmãs da caridade
as hienas, nem encarregou os paquidermes de missionarem aos pretos seus
vizinhos.
O crime depreende-se da liberdade
do não praticar. A bossa impede o arbítrio.
O homem, que descadeira a mulher
vitima da fatalidade do seu organismo, será capaz de me desfechar um revolver à
queima roupa, se eu lhe não aceitar a corte. E eu não lha aceito, porque não
está na minha organização aceitar a corte do masculino nem do neutro. Sou irresponsável
da minha esquivança ás caricias ardentes dessa pessoa.
Não posso amar o sujeito que me
enviou uma camélia, ou um frasco de água de Colonia do Farina. Se esse galã me
bater, sobre ser asno, é feroz.
Os legisladores, menos arredios
das leis naturais, estatuem que marido e esposa se divorciem, dada a
incongruência de gênios, agravada pela prevaricação dos recíprocos deveres da
fidelidade conjugal. O divorcio, porém, restrito à separação do foro conjugal e
bens, não saneia as feridas abertas na honra. A mulher resvala com o nome do
marido a todas as voragens onde a irresistível condição a baqueia.
Há de ele, por tanto, mata-la
para desacorrentar-se do pelourinho do vilipendio? Não; porque mata um autômato
inconsciente da sua queda. É como se andasse ás facadas aos seus amigos, porque
eles, na sua qualidade de corpos, obedecendo à lei da gravitação, pendem para o
centro da terra.
«O divorcio judiciário constitui
o casamento escola de escândalo»-diz o douto dramaturgo do Suplicio de uma
mulher .E acrescenta: «A interferência de juízes é quase sempre cega ou nociva.
Se entre casados há motivos de divorcio, dêem-lhes plena liberdade de se
desligarem». Até aqui o primeiro publicista de França.
Mas divorcio incondicional,
rompimento sem clausulas. Se há dote ou bens parafernais, a mulher é credora,
não já do marido, que é um titulo extinto, mas do detentor incompetente dos
seus haveres.
Essa mulher, livre, pode
encontrar marido da sua espécie, com três partes de macaco ou mais, que lhe não
estorve os instintos, e ser ditosa, como a esposa de todos os sujeitos de prol
e tino, que não são de ciúmes ofendidos.
E, simultaneamente, aquele homem,
desatado do vinculo infamante, pode topar uma descendente de Japhet, esposa
leal, sanguínea ou biliosa, mas sobre tudo honrada, que é melhor que linfática.
E o sacramento?-pergunta-me o
vizinho com a Cartilha de Mestre Ignacio em punho.
O sacramento, Sr. Raimundo, é um
atentado contra a natureza; é, na frase enérgica de Girardin:-«uma pretensão ímpia
dos fabricadores de leis positivas, profetas e legisladores a desfazerem as
leis naturais para refazerem o gênero humano sob o nome de Sociedade».
Observe que Girardin foi marido
exemplar de Delfine Gay, a mais formosa e ilustrada alma no mais gentil corpo
de parisiense. Pondere nisto.
Mas muito mais ponderosa é a
questão dos filhos. Que se há de fazer ás crianças, flores que desbotoam à
ourela dessas sentinas, anjos nítidos que passam deplorativos por entre as
lavaredas desses infernos?
Os filhos, legítimos ou
bastardos, adulterinos ou incestuosos são iguais perante a mãe. Ela é quem não
duvida que os filhos são seus. Receba-os, leve-os, que talvez leve consigo os
esteios do seu reabilitado decoro. Mas, se o marido os quiser, deixe-lhos, que
bem amparados ficam no seio do amor. Deve de ser imenso o bem-querer do homem
que lava com as suas lagrimas os estigmas na face do filho da mulher pérfida e
repulsa.
Pergunta-me o vizinho se, em
harmonia com estes paradoxos, o casamento, a aliança sacramental de homem e
mulher acabam.
Acaba o que a sociedade fez,
violentando o que a natureza tinha feito. Mulher e homem volvem ao que foram.
Target, o colaborador do Código
Civil da Convenção, responde-lhe melhor do que eu: Onde quer que a sociedade
encontrar um homem vivendo com uma mulher, deve reconhecer um consorcio apto
para dar aos filhos o direito da legitimidade.
— Paganismo!
Seja o que a vossa excelência
quiser; mas olhe que já não é bom tom trejeitar visagens e momos quando a razão
joeira perolas no lixo da Roma de Agripa e
Sêneca, de Catão Censorino e
Marco Aurélio. Se o vizinho admira nos Congregados e na Trindade muita senhora,
devota e escrava de Maria Santíssima, não se edificaria menos entrando em Roma
no templo do Pudor, edificado pelas Veturias, Cornelias, Calpurnias, Sulpicias
Pretextatas e Arrias Marcelas. Estas ou morriam com os maridos amados, ou
vingavam-nos. O opróbrio não ousava erguer a cabeça petulante de sobre a alta
barreira que extremava aquelas matronas das Silias e Octavias, das Apuleias
Varilias e das mulheres de Cláudio.
O vizinho sabe que na Roma pagam,
dado que o divorcio pendesse da simples deliberação de um ou de ambos os
cônjuges, ou ainda do mero capricho do marido imoral—quer ele se chamasse Nero
ou Cícero-decorreram quinhentos e vinte anos sem um exemplo de divorcio.
Montesquieu explica o fenômeno:
«Marido e mulher sofriam-se pacientemente os mútuos dissabores caseiros, por
isso mesmo que podiam acaba-los; e, só porque tinham livre o uso desse direito,
passavam toda a vida sem pratica-lo».
Aí está a minha ideia peneirada
aos ventos quadrantes da opinião tempestuosa das turbas. Ruja a leoa da
hipocrisia na sua caverna-que eu, à laia do varão justo de Horácio, ouvirei sem
pavor o estrondear do mundo derruído à volta de mim, visto que tenho assistido
impávido aos estrondos de todas as filarmônicas de que sou sócio prendado. Impavidum ferient ruins.
Direi agora da vossa excelência,
e de mim, e aqui do vizinho especieiro da esquerda, e de outros súcios do
masculino.
Napoleão I, na ilha de Santa
Helena, mandou escrever no seu Memorial que «um homem deve ter muitas
mulheres». Fez o que disse, e formulou uma máxima ao alcance de todos os tolos,
salvo seja. A aguia de Austerlitz alçou aos paramos da sua ascensão axiomática
os ínfimos escaravelhos e osgas destes nossos pais burgueses.
O nosso velho amigo D. João
Tenório incorporou-se em toda a casta de galã esgrouviado, de galã mazorro, de
galã aparrado no corpo e na alma. Os monarcas, constituídos Luíses XIV de
refugo, meteram nos paços uns retalhos de Constantinopla, com a diferença que
os seus camaristas — os lançarotes-não poderiam gargantear de falsete na capela
sistina. pela sua parte, os sapateiros, convictos da igualdade do homem perante
a mulher, fizeram-se também califas de sultanas cozinheiras, imolando à sua intemperança
de amores o decoro das cozinhas e a perfeição das almondegas.
Está, pois, derrancado o
masculino desde o trono até à tripeça.
E diga-me cá, ó vizinho: onde
iria cada homem buscar as muitas mulheres decretadas por Napoleão o grande?
Fora do triangulo? era impossível. Vossa excelência está bem certo do que é o
triangulo? Vem isso lucidamente explicado no Homme-Femme de Alexandre Dumas.
Triangulo é o homem-movimento, é a mulher-forma, e é Deus manifestado nessas
duas coisas que se unem. E, se não se unirem e amalgamarem numa só, nem o homem
terá forma, nem a mulher se moverá. Por tanto, homem sem mulher tem peso, mas
não tem feitio; mulher sem homem, nem se quer é um móvel , porque é imóvel.
Mais claro do que isto, só um preto e a Poesia do Direito de mestre Teófilo.
Logo que o Código Penal não
providenciou contra o homem, contra o movimento, que se quisesse apropriar
vinte formas de uma assentada, era de esperar que a sociedade sofresse grande
terremoto nas suas mais augustas instituições. Assim aconteceu. O homem,
abroquelado com a impunidade, desfraldando a bandeira da natureza em bruto,
arpoou as suas preás no próprio tálamo conjugal. Tal marido, que tinha uma só
forma, perdeu a mulher, e ficou amorfo, sem feitio de casta nenhuma.
Outros, que tinham duas formas e
daí para cima, lá se avieram melhor com a sua vida. A mulher, essa é que nunca
ficou entrevada, à mingua de movimento, porque o homem para ela era como o ramo
de Virgílio:-homem ido homem substituído:
Primo avulso non deficit alter.
Choveu então aquela praga de
leões devastadores, Leo vastratix de Lineu-uns ribaldos que se gabavam de ser
pais de todos os nossos filhos. E seriam;-o diabo o jure!
Estes homens eram negros ou
pálidos — Otelos ou Romeos. Tinham maneiras cismáticas nas salas. Sombrios como
anjos precipitados; demônios ainda belos do resplendor do céu perdido. Liam
romances do visconde de Arlincourt, cheirando a patíbulos ensanguentados.
Bebiam cognac, na abundancia, em que
o crévé de hoje em dia, o seu filho
degenerado, bebe agua de Entre-ambos-os-rios para desentupir o fígado. Comiam
berbigões e outros testáceos com salada de malaguetas.
Ás duas da manhã saiam dos seus
antros da Aguia-d'ouro, chapéu derrubado, capote ás canhas, e içavam a
devastação das famílias pelas trapeiras com escadas de corda.
Estes devassíssimos Richelieus de
esnoga eram conhecidos. Toda a gente fina sabia que eles bebiam as lagrimas de
umas senhoras pelos crânios das outras. E, não obstante, a sociedade
decretava-lhes a primazia na elegância, o primor na cortesia, e bom-gosto nas
fidalgas estouvices.
Era vê-los nas salas.
As meninas remiravam-nos de
esguelha, tremidas de amor e medo; e aconchegavam-se da égide tutelar da mãe
que lhes segredava em suores de aflição:
— Aqueles homens tem manfarrico!
Meninas, não olhem para eles, que tem perdido muitas donzelas, e de casadas não
há conta nem medida.
E as meninas ficavam sabendo que
as donzelas se perdiam como as casadas; e, se perguntavam o destino dessas
perdidas, as mães respondiam:
— Não vês ali D. Pulcheria? D.
Athanazia? D. Herminigilda? e etc. ?!
Elas reparavam castamente, e viam
as três nomeadas, e as eteceteras , refesteladas em poltronas, arraiadas de
seda e pedras. E, depois, viam-nas ir, sobraçadas pela cinta desnalgada, nos
braços daqueles homens precitos, regamboleando a perna com furor macabro naquelas
polcas de então que eram a própria lascívia, o segredo descoberto das corêas na
festa da deusa Bona.
Eram assim iniciadas as meninas
ao sair do colégio: mostrava-se-lhes o sedutor fatal com o prestigio das salas
e dos amores defesos; mostrava-se-lhes a mulher desonesta com as regalias dos
diamantes e das polcas.
Parabéns, vizinho! Daqueles
homens, uns morreram; outros, prostrados ao canto da leoneira, urram nas
angustias da gota, e pitadeiam do meio-grosso.
Durma vossa excelência sossegado
nos braços da esposa fiel e da policia civil.
Escada de corda não consta há
muitos anos que as patrulhas topassem uma funcionando contra o pudor publico.
Das muitas cordas que houve, suspeito que os seus possuidores se serviram,
enforcando-se a final com elas para desagravo dos bons costumes.
Verdade é que se dispensam
escadas, se a hipótese etológica de Alexandre Dumas é verdadeira — a hipótese
das macacas, à qual eu racionalmente associo a hipótese dos macacos, com
bastante desaire do meu sexo. Aqueles bichos atrepam contra todas as previsões
da policia. Um bugio é capaz de enroscar a cauda na sacada do vizinho da
esquerda, e baloiçar-se à janela do Sr. Raimundo com a maior limpeza de
trabalho: quod di omen avertant — o
que os deuses não permitam!
Seja como for, oiço dizer que os
defuntos leões, se não deixaram leônculos com as manhas paternas, inocularam na
geração atual o que quer que fosse da sua postema. Por aqui na nossa rua e nas
travessas limítrofes, graças aos temperamentos, não tem havido, que eu saiba,
suplicio de macaca; observo, porém, cheio destas tristezas modernas, que, uma
vez por outra, lá ao longe, certos maridos, ignorantes do casamento de Caim no
país de Nod, vão exercitando o ofício do avô sem se importarem dos costumes da
avó: matam.
Esta ação, vizinho, se me não
parece digna, sem reserva, do maior elogio, também a não impropério em
diatribes de Sganarello que defende o seu impudor próprio, arguindo a crueldade
alheia.
Isto de trair é um funesto pendor
do organismo. E matar, ao meu ver, é uma funesta e irrecusável influição da
neurose. Mulher, que refrear os ímpetos do seu temperamento, é tanto como
divina, senão é mais, porque sopesa a natureza, divinamente saturada do deus
universal, do grande Pan indivisível.
Homem traído, que sente em si o
retalhar de dois gumes, amor e honra, dois cautérios a sarjar-lhe a um tempo
coração e cérebro,-que arde em anciãs de matar como ardera outrora em anciãs de
amor, tal homem, se perdoou, é um santo, é a mais bela e perfeita desgraça que
Deus criou.
Não temos, porém, que ver com
aquelas exceções. Balancemos o turíbulo da nossa admiração à Providencia dessas
almas, e desandemos para a feira franca onde o satã de Gil Vicente enfeirava as
suas vitualhas.
O comum dos adultérios é a
retaliação, o despique, a mulher que a si se despreza porque se vê aviltada do
marido. Ele, sacerdote do amor, erigira-lhe altar e idolatrara; depois,
esfriado o fervor, apeara o ídolo, e assentará sobre a peanha profanada a
deidade nova, com resplendor de seduções infames. Primeiramente, o amor e
vaidade choraram no coração da mulher expulsa do templo; em seguida, o orgulho
represou as lagrimas, fê-las peçonha de vingança; e, por derradeiro, livelou a
mulher vingada ombro a ombro do homem libertino. Eles aí estão, dignos um do
outro, levados pelo delito social ás leis autenticas da natureza. Acabou o
artificio do marido-esposa. Restaurou-se o macho-fêmea. Romperam o pacto da
fidelidade? desonraram-se reciprocamente? Muito bem! Hossana aos filhos da
natureza! Urra pelo rebanho de Epicuro! Qual matarem-se! Vivam! no lar ou na
rua, na lama ou nos arminhos; mas vivam e medrem como gente de boas e bem
saldadas contas.
Isto é o que a lei quer, o que a
religião da caridade aconselha, e o que a sociedade tolera com um bem
dissimulado respeito.
Todavia, há aí uns celibatários,
extraviados dos concílios, amantes extremosos, pais loucos de amor aos filhos,
mas, em fim, celibatários impudicos, que sorriem, a ocultas, dos maridos
logrados.
Quem disse a esses malsins do lar
alheio que tais maridos são logrados? Com que protérvia se a fama da esposa
estigmatizando-a de pérfida? Esposo traído e mulher treda são os que
reciprocamente se mentem. Cessa a ignomínia da perfídia onde começa a luminosa
tolerância da desforra.
E, por tanto, a invasão da
critica ao seio da família, que não reclama a interferência do Código Penal, é
uma vilania estúpida, um insulto à liberdade dos cultos.
Sr. Raimundo, sei de umas
pessoas, que mofam cruelmente dos maridos enxovalhados pelo desdouro das
mulheres. Ora, esses que hoje escarnecem o homem desonrado, apedreja-lo-hão
amanhã, se ele oferecer o cadáver da adultera como resgate da sua honra.
— Matar! Oh! não, assassino!
Despenhasse-la antes com um pontapé, de abismo em abismo, até aos nossos
alcouces. Nós já temos encontrado cá mulheres ilustres como a tua.
Borrifamo-las com a champagne das nossas orgias. Ouvimo-las espumejar dos
lábios roxos o nome dos maridos por entre o acre do álcool. Vimo-las repintadas
de esfoliações esquálidas no rosto.
Soubemos enfim que o lençol da
misericórdia as baldeou da enfermaria à vala. E os maridos viveram e
sobreviveram, porque tinham juízo na cabeça, e abrigavam religiosamente no
coração o augusto preceito: não matarás! — Apoiados! Sr. Raimundo, apoiados!
Estes homens falam bem: são os sociológicos, os filósofos, os estóicos, os
cultos, sou eu, é vossa excelência, se me não ilude a confiança que pus na sua
capacidade, hão de ser os jornalistas, os legisladores, os juízes e os jurados,
quando a brocha der a ultima de mão neste mascarrado edifício social.
Se eu tivesse um filho, havia de
encouraça-lo para se afrontar, intemerato e invulnerável com esta sociedade
cancerada. Criá-lo-ia debaixo de mão, e no regaço da mãe virtuosa, até aos
trinta e cinco anos, vestido de menina. Depois, mandá-lo-ia estudar primeiras
letras, e ultimas, com professor de acrisolada santidade de costumes-mestre
régio que houvesse tido a heroica abnegação de viver com o que lhe dá o
governo, sem me sair à estrada a roubar-me o relógio. Aperfeiçoada desta arte a
educação intelectual do meu herdeiro, eu iria com ele a um ponto culminante da
cidade, à Torre dos Clérigos, por exemplo, na falta da montanha de Alexandre
Dumas, e dir-lhe-ia o seguinte:
«Meu filho, tens quarenta anos.
Fizeste exame de instrução primaria:—coisa que eu não era capaz de fazer. Sabes
as Raízes da formação dos tempos , conjugas um verbo irregular, tens luzes não
vulgares do Pretérito mais que perfeito composto , bebeste a longos haustos os
Lugares seletos do Sr. Padre Cardoso, e vislumbraste Guizot através da historia
pátria do Sr. Motta Veiga.
Estás pronto. Eu é que não sei
nada disso; que desbaratei a minha mocidade com o Tesouro de meninos , e depois
com a tesoura das meninas, umas costureiras que me cortaram os voadouros,
quando eu batia as azas para a região superior do Manual enciclopédico .
Perdi-me. Delicta juventutis mes.
«Em compensação, meu filho, fiz
enxertar no teu cérebro dois garfos da ciência universal. És um reportório dos
conhecimentos humanos e prestadios. Estás habilitado para tudo, desde porteiro
do Montepio dos empregados públicos até ministro da Marinha.
«Portugal é conquista dos
talentos, como sabes.
«Espera-te uma cadeira velha na
Academia Real das Ciências, e outra no Gabinete de Leitura de Lamego. Tem-me de
olho estas duas couçoeiras luzentíssimas dos penetrais da imortalidade.
«Tenho a satisfação de saber que
chegaste à florida idade dos quarenta, sem que uma só pétala se haja fenecido
na tua grinalda de virgem. no meio desta fornalha de Babilônia, portaste-te
como verdadeira salamandra. Era grande o meu jubilo quando te via chegar a casa
em mangas de camisa, e, rosado de pejo, me dizias que mulher de Faraó te
despira o fraque! És um menino das eras antigas. Em tempo de D. João V e outros
reis castos, serias sacristão de Mafra ou da Patriarcal. Hoje em dia, a virtude
da continência levada a tamanho apuro, poderá, quando muito, permitir-te a
diretoria interna do Asilo das velhas do Camarão.
«Meu filho, é tempo de entrares
na forma, quero dizer, de teres forma, de completares o triangulo com a esposa.
«Casa-te, se queres; mas, se te
parece, espera mais cinco anos — período não de sobra para bem digerires e
ruminares certos preceitos. É bom ruminar desde já, para que depois não
estranhes as operações fisiológicas de ruminante.
«Entretanto, procura esposa que
não saiba ler nem escrever, se tanto for possível; receio, porém, que a não
topes neste país onde a instrução está por tanta maneira derramada. Derramada é
o termo lidimo.
«Se, à mingua de outra, o coração
te esporear para mulher versada no alfabeto, fornece-a desde logo de livros úteis,
brindando-a com as copiosas Artes da cozinha , que se publicaram neste
abençoado refeitório de Portugal, desde Fernão Rodrigues até Ramalho Ortigão.
Não se te importe que ela conheça este segundo sujeito; mas tão somente do
Cozinheiro dos Cozinheiros , que ele deu à estampa com outros poetas
causticados da inspiração satânica de Beaudelaire. que a tua mulher procure o
vampiro daqueles gênios unicamente no seio de um timbale de borrachos.
«Averigua, antes de mais nada, se
a tua noiva procede diretamente da sua quinta avó e respectivo avô, sem
travessia. Tal avó tal neta. Indaga que frades, e de qual ordem, entravam em
casa das avoengas do teu namoro; e não será demasiada pesquiza esquadrinhar se
a mãe dela ainda alcançou os bernardos.
«Sabido e provado que a menina é
de boa linhagem, observa se isto de fundilhar ceroulas e apontar peúgas não são
para ela coisas mero legendarias, tradições míticas de Penélope e da rainha
Bertha. Bom será que ela seja caroável da criação de parrecos e galinhas, e
outros «lances caseiríssimos» ao modo de falar de D. Francisco Manoel de Mello.
«Que não se te olvide de
espiar-lhe com aturada vigilância o temperamento, como clausula em que muito
bate o ponto. Se te sair sanguínea,-alimentação vegetal, legumes, muita
chicória, frutas e macarrão. Se linfática, não privo que a faças quinhoeiro de
substancias fibrosas. Se os nervos predominarem, subordina-lhe a alimentação
calmante aos banhos de chuva. Em suma, pelo que é de temperamentos, entende-te
com Alberto Pimentel, autor dos Sanguíneos, linfáticos e nervosos , amável
escritor que todos os noivos devem convidar para lhes tirar o horóscopo da
systole-dyastole, e da espinal medula.
«Estás, pois, casado, meu filho.
Tens outra alma no âmago da tua, uma segunda consciência a dirigir, como pai,
esposo e sacerdote. Na qualidade de padre da tua mulher, não me admitas
acolito, percebes?
«Serás fiel a tua mulher;
levá-la-ás ao Circo de quando em vez; e de tempo a tempo à musica do
quartel-general, e ás Figuras de cera, autorizadas pelo chefe da policia, por
causa das Vênus. De comedias chamadas «de casaca», e dramas lardeados de
can-can, e Quadros-vivos, livra como de peste.
«Irás onde ela for; passarás à
sua beira as noites de Janeiro, fazendo «paciências» ou jogando o burro: isto
enquanto não há prole. Quando houver pequenos, andarás com eles ás cavaleiras,
enquanto a mãe jubilosa lhes está costurando os atafais.
«Visitas de casta nenhuma, sem
ressalva de sexo ou idade. Diz o esperto Rosado nas Lagrimas de Jerusalém :
«Está o mundo cheio de velhos e velhas que leem de cadeira vícios aos rapazes e
ás raparigas.» Foi isto estampado há duzentos e cinquenta anos! Que diria ele
hoje? O que escreveu em outro lanço: «Já não há virtudes nem cerume delas».
«Ora bem: conjeturemos agora, meu
filho, que a tua mulher, lealmente amada, farta e cheia, querida e acariciada,
pega de sentir-se invadida ob e sub-repticiamente pela imagem de certo homem
que viu no Circo ou nas Figuras de Cera. Considera, ó misero, que o freguês da
Grã-duquesa é um desses cachorros da raça funesta dos citados «leões», que,
através das lentes do binoculo, despede coriscos à alma da tua consorte,
queimando-lhe as grandes artérias, as medias, as filamentosas, os vasos
capilares, tudo em que há sangue e palpitar na economia animal. Considera,
outrossim, que ela, ouvindo a cavilosa natureza, mãe dos escândalos, em vez de
confessar-se a ti, que és o seu padre lareiro, manifesta-se à cozinheira; e,
por entre os soluços da honestidade moribunda, abre-lhe o peito onde a sua má
sina lhe fotografou a terníssima cara do Saint-Preux do Circo.
«Por te não polear
inquisitorialmente com hipóteses, vamos à ultima. A cozinheira entrou no
triangulo. A tua mulher recebeu cartas, e respondeu-lhes, servindo-se dos teus
dicionários, do teu papel pautado, dos teus envelopes, e, para remate da
afronta, da pena com que tu enriquecias de glossas o Cozinheiro dos cozinheiros
, ou esboçavas narizes tortos para entreter os rapazes.
«Neste tempo,-vá outra conjetura
desgraçada-supõe tu que eras socio prendado, como eu, de varias filarmônicas
aonde ias, uma noite por outra, prestar a Offenbach o preito da tua corneta de
chaves. Com refece sorriso, tua mulher dava-te à saída o osculo do costume, e
esperava-te de volta, perguntando-te com a voz convulsa da consciência
irrequieta se foras feliz nos bemoes, e tiveras palmas no solo do 2.° ato da
«Ilha de Jafanapatão.»
«Ah! filho! Estavas traído como
todos os músicos incautos, traído como todas as vitimas generosas das belas
artes, quando a alma entusiasta as eteriza acima do capacho onde as esposas se
amesendram com as suas palavras. Atraiçoado, pois! E, por tanto, se essa
mulher, que tanto amavas, te cravou o punhal herdado da desonra no intimo seio
onde lhe tinhas a imagem;-se te coou mortal peçonha no beijo que te deu com os
lábios crestados da lava de outros lubricíssimos;-se te fez a fabula dos
vizinhos, e te plantou na praça onde há o gargalhar dilacerante, e aí te pôs ao
cevo dos corvos que crocitam à volta do corpo onde farejam morta uma alma;-se
te levou o nome pelos seus muladares, a rojo da cauda dos seus vestidos
mercadejados com o corpo;-se te acalcanhou o coração, e te matou no cérebro o
rouxinol dos teus cantares;-se te incutiu no eu objetivo a dispepsia, a
hepatite, a hipocondria, a cacoquimia, e enfim te pôs a honra e os intestinos
entre o suicídio e o inevitável opróbrio: sabes o que hás de fazer? Sabes o que
hás de fazer a essa macaca, meu filho?-Não lhe faças nada: deixa correr o
marfim».
Isto é o que eu diria ao meu
filho; vossa excelência, porém, faça o que bem lhe parecer: eu não aconselho
ninguém.
Vizinho, se a questão do
Homem-mulher não está assim resolvida, sou eu mais lorpa do que penso, ou a
questão é mais infame que o ato que ela discute.
Seja como for, Pax Domini sit temper tecum, e boas
noites.
10 de setembro, Ano da Graça
1872.
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Nota:
Camilo Castelo Branco: "A Espada de Alexandre" (1872)
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