segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Ana de Castro Osório: “Entardecer"

ENTARDECER

Uma tarde tristíssima.

Desde manhã que uma chuva miudinha e impertinente caía sem cessar. O céu, muito pesado, muito baixo, esmagava o meu espírito, fazia-me sofrer de quantas mágoas inconfessadas existem na vida—tão cruel, tão absurda ás vezes!

A lama na estrada chegava ao passeio; as arvores lamentavam-se desoladamente, todas gotejantes e trêmulas, chorando a primavera que tanto, tanto custava a chegar esse ano!

Bandos de andorinhas passavam arrevoando junto á terra, piando, friorentas, saudades do sol, que deixaram lá em baixo a dourar minaretes agudos, a acariciar palmeiras, que ondulam brandamente as suas folhas em leque, e graves mulheres que passam envolvidas em brancas musselinas transparentes.

Encostada aos vidros da minha janela, eu olhava distraída... Quem passaria por uma tarde assim?... A lama viscosa e pardacenta parecia querer subir, em maré cheia de tédio, a engolfar o mundo na sua moleza repugnante. Tardes enodoadas e longas que enoitam o nosso espírito, fazendo-nos perder a esperança de que jamais um raio de sol ou uma nesga de céu azul venha alvoroçar-nos em sonoridades de risos!

Uma rapariguinha passava, tão magra, tão palidasita... A saia, muito fina, a cingir-se-lhe ao pobre corpo de anêmica; agasalhava-se tremendo num pedaço de velho xale esfarrapado e nas mãositas roxas segurava um pequeno embrulho.

Talvez seis anos...

E as botinas cambadas, maiores do que os pés, a enterrarem-se na lama, a não a deixarem andar depressa...

E a noite caindo silenciosamente, e ela sozinha, no campo sombrio,[95] áquela hora e naquela tarde tão abandonado e triste como um cemitério.

Seguindo-a com o olhar, abstrata, quase inconsciente, pensei: quantas crianças da mesma idade brincariam alegres e palreiras, em casas confortáveis, bem vestidas, quentes?... Quantas, nessa hora vaga do cair da tarde, não correriam, sobraçando os arcos, rindo da chuva e do frio, por entre moitas verdejantes de lindos jardins, seguidas por loiras mestras altas e sérias? Bibes brancos a esvoaçar como azas de borboletas; finos cabelos encaracolados caindo em maciezas de luz, a nimbar de ouro Varezo cabecinhas graciosas... Belas crianças feitas de mimos e de beijos, rosadas e fortes, prontas para a vida sem mágoas nem canceiras.

E aquela! Uma infância miserável, a prepará-la para o longo e obscuro martírio que termina na vala comum passando pela fabrica e pelo hospital.

E a pequenita caminhava vagarosamente, com uma precoce gravidade destoante dos seus poucos anos. Mas...

Uma carroça vinha em doida desfilada, com barulho irritante de velhas molas ferrugentas e guisos casquinando sarcasmos na tarde chuvosa. Assustada, querendo fugir, a criança deixou cair o embrulho. O papel rasgou-se e todo o milho que levava se espalhou no chão lamacento. Nada mais pungente de ver; nada que mais esgarçasse a alma numa angustia — que a pálida figurinha da pequena contemplando aquele desastre!...

A carroça passou e ela foi apanhando, grão aqui, grão além, aqueles que a lama não tinha completamente perdido. Depois afastou-se lentamente, com um sorriso de infinita resignação na sua boquinha já sofredora.

Seis anos apenas — como ela aprendeu cedo a resignação amargurada da vida! Uma imensa piedade, uma dolorosa impressão de irremediável sofrimento, me invadiu o espírito, pensando em todas as anônimas desventuras que se acotovelam na vida.

A noite vinha descendo lentamente. Pesava como chumbo a tristeza arreliante desse fim de dia...

Março de 95.


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Nota:
Ana de Castro Osório: “Infelizes: Histórias Vividas”  (1898)

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