ENTARDECER
Uma tarde tristíssima.
Desde manhã que uma chuva miudinha
e impertinente caía sem cessar. O céu, muito pesado, muito baixo, esmagava o
meu espírito, fazia-me sofrer de quantas mágoas inconfessadas existem na
vida—tão cruel, tão absurda ás vezes!
A lama na estrada chegava ao
passeio; as arvores lamentavam-se desoladamente, todas gotejantes e trêmulas,
chorando a primavera que tanto, tanto custava a chegar esse ano!
Bandos de andorinhas passavam
arrevoando junto á terra, piando, friorentas, saudades do sol, que deixaram lá
em baixo a dourar minaretes agudos, a acariciar palmeiras, que ondulam
brandamente as suas folhas em leque, e graves mulheres que passam envolvidas em
brancas musselinas transparentes.
Encostada aos vidros da minha
janela, eu olhava distraída... Quem passaria por uma tarde assim?... A lama
viscosa e pardacenta parecia querer subir, em maré cheia de tédio, a engolfar o
mundo na sua moleza repugnante. Tardes enodoadas e longas que enoitam o nosso espírito,
fazendo-nos perder a esperança de que jamais um raio de sol ou uma nesga de céu
azul venha alvoroçar-nos em sonoridades de risos!
Uma rapariguinha passava, tão
magra, tão palidasita... A saia, muito fina, a cingir-se-lhe ao pobre corpo de
anêmica; agasalhava-se tremendo num pedaço de velho xale esfarrapado e nas
mãositas roxas segurava um pequeno embrulho.
Talvez seis anos...
E as botinas cambadas, maiores do
que os pés, a enterrarem-se na lama, a não a deixarem andar depressa...
E a noite caindo silenciosamente,
e ela sozinha, no campo sombrio,[95] áquela hora e naquela tarde tão abandonado
e triste como um cemitério.
Seguindo-a com o olhar, abstrata,
quase inconsciente, pensei: quantas crianças da mesma idade brincariam alegres
e palreiras, em casas confortáveis, bem vestidas, quentes?... Quantas, nessa
hora vaga do cair da tarde, não correriam, sobraçando os arcos, rindo da chuva
e do frio, por entre moitas verdejantes de lindos jardins, seguidas por loiras
mestras altas e sérias? Bibes brancos a esvoaçar como azas de borboletas; finos
cabelos encaracolados caindo em maciezas de luz, a nimbar de ouro Varezo
cabecinhas graciosas... Belas crianças feitas de mimos e de beijos, rosadas e
fortes, prontas para a vida sem mágoas nem canceiras.
E aquela! Uma infância miserável,
a prepará-la para o longo e obscuro martírio que termina na vala comum passando
pela fabrica e pelo hospital.
E a pequenita caminhava
vagarosamente, com uma precoce gravidade destoante dos seus poucos anos. Mas...
Uma carroça vinha em doida
desfilada, com barulho irritante de velhas molas ferrugentas e guisos
casquinando sarcasmos na tarde chuvosa. Assustada, querendo fugir, a criança
deixou cair o embrulho. O papel rasgou-se e todo o milho que levava se espalhou
no chão lamacento. Nada mais pungente de ver; nada que mais esgarçasse a alma numa
angustia — que a pálida figurinha da pequena contemplando aquele desastre!...
A carroça passou e ela foi
apanhando, grão aqui, grão além, aqueles que a lama não tinha completamente
perdido. Depois afastou-se lentamente, com um sorriso de infinita resignação na
sua boquinha já sofredora.
Seis anos apenas — como ela
aprendeu cedo a resignação amargurada da vida! Uma imensa piedade, uma dolorosa
impressão de irremediável sofrimento, me invadiu o espírito, pensando em todas
as anônimas desventuras que se acotovelam na vida.
A noite vinha descendo
lentamente. Pesava como chumbo a tristeza arreliante desse fim de dia...
Março de 95.
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Nota:
Ana de Castro Osório: “Infelizes: Histórias Vividas” (1898)
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