segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Ana de Castro Osório: “A Ama"

A AMA

Quando a Rosita do Simão casou, foi um desconsolo pela rapaziada. Pudera, se ela e a irmã eram das mais bonitas caras da aldeia! Claro que não se poderiam chamar belezas em qualquer terra de formosuras, mas ali, entre a fealdade quase geral, pareciam duas flores. Decerto que era pena vê-la casar com o bruto do Antonio Marques!

A Mariquinhas estava a servir em Lisboa, numa bela casa arranjada pelo sr. vigário, e vinha á terra de anos a anos, toda senhora, toda posta no seu serio — boas mantilhas, bons fatos, uma figurona! E á Rosa, a ter que casar com o Marques, mais lhe valera ir também servir...

Ela é que se não importou com os comentários, e lá foi toda contente, com o seu vestido preto, o lenço de seda, o xale de ver a Deus, dar a mão de esposa ao sr. Antonio Marques, que ia todo taful, de capote ás costas e chapéu novo. Foi uma festa.

No poente rubro, tépido, da primavera que ia no fim, a passarada cantava umas alegres canções — coisas deles, desses vadios sem futuro. Umas péssimas cabeças, as da passarada!

E o Leandro, amigalhaço do Antonio Marques e convidado para o arroz doce, tocava os sinos todos num desaforo de repiques.

O velho campanário tremia entre os braços da hera. A pobre igrejita enchia-se do ouro mordente que o sol enfiava pela rosácea do coro. A vinha do passal perfumava a atmosfera como uma enorme corbelha de reseda e os pinhais, os soutos e os olivedos reviveciam numa vida fresca, novinha em folha. Errava no ar uma tal expressão de vida natural, que inconscientemente todas as bocas se abriam em risos. O sr. vigário, muito solene, fez uma bela prédica á Rosita; as palavras caiam-lhe dos lábios, sérias, claras e precisas como se viessem classificadas, numeradas, sabendo de antemão o lugar que ocupariam na vida. O latim era tão explicado, que fazia gosto ouvi-lo... «Ser casada por ele — dizia a Rosita — até dá felicidade. Parece que fica a gente mais bem casada!...»

Passados tempos, já não dizia o mesmo. O Antonio era um bruto, um avarento; tudo o que ganhava enterrava na fazenda. Em casa, a Rosa mortificava-se, com três criancitas entanguidas de frio e fome — dizia mal da sua cabeça tonta. Ir casar com um trabalhador da enxada já fora uma tolice — e sair-lhe ele assim!... Louvado seja Deus, que tão pouco juízo dá ás raparigas! Porque não fizera ela como a Mariquinhas, que vinha á terra tão bem vestida, que era a inveja de todos?!...

No batizado do terceiro sobrinho foi ela ser madrinha, com incumbência de uma ama para Lisboa. O ordenado era bom e o Antonio Marques, muito avarento, lembrou a mulher. Lá por saudável e bonita não havia outra nos arredores. Os pequenos ficavam com a avó e haviam de se criar como os mais, á graça de Deus!

Falou-se ao sr. Vigário — que dissesse ele a sua opinião. A Mariquinhas explicava —que era para casa da sr.ª viscondessa, prima da sua senhora, o sr. vigário sabia...

— «Óra se sabia! Perfeitamente. Ia muito bem; que fosse, que fosse!...»

Custou-lhe muito separar-se dos filhos, á pobre da Rosita. Chorava inconsolável pedindo á mãe que lhos tratasse bem, que ela mandaria dinheiro para isso; nada de o entregar ao homem que tudo iria enterrar na fazenda e deixaria morrer os pobres anjinhos.
Dois anos que a Rosa esteve por lá, mandou sempre bom dinheiro, que o marido guardava. Os garotos iam-se criando pelas portas, negros e sujos, tristonhos — uns selvagens. Acabada a criação chegou ela, esperada em triunfo por todos os parentes, que de fora da gare lhe acenavam com os lenços chamando-a alegremente. Nem parecia a mesma! Mais bonita que nunca, a rapariga. Os filhos fugiam dela, enrodilhavam-se na saia da avó, choravam confundidos por se verem acariciados por mãe tão de grande gala. E ela olhava-os lacrimejante, sem grandes esforços de ternura, que os conquistasse. Achava-os tão feios no fim de contas!... Mostrava o retrato do seu menino — recostado entre almofadas e rendas, risonho e expressivo como se da fotografia fosse estender os braços roliços á boa ama.

— «Que lindo menino, se vissem! Uma gracinha de criança, que tudo lhe ficava bem. Quando o levava pela rua toda a gente se voltava enlevada na sua beleza. Um amor! Nunca poderia esquecer o seu menino, o querido anjo que criara ao peito...

Aprendera a falar, a Rosita. Estava outra. Até já sabia escrever e passava horas a rabiscar umas cartas ininteligíveis, que mandava á sua senhora. «Não podia esquecer o menino, o seu querido menino! O seu lindíssimo Gut, tão branco e rosado como uma flor...»

Com a vinda da mãe os pequenos andavam mais limpinhos, isso andavam. A casa estava outra—alteada, janelas abertas, branca de cal. Um palácio. Mas, dizia-lhe um dia o sr. vigário: — «andas tão triste, Rosa! Parece que tens saudades de Lisboa...»

Desatou a chorar.

«Oh! muitas, muitas, do meu menino! Tinha-lhe um amor... Não lhe passava dali!» — E apontava para a garganta intumescida pelos soluços.

—«Cá, tens os teus filhos, Rosa. Há de dizer-se que não gostas deles!... Isso é tentar a Deus, rapariga!»

— O sr. vigário que perdoasse; ela gostava dos filhos — pois se eram seus filhos, não havia de gostar!—mas o seu menino era outra coisa! Tão lindo, tão esperto, tão bem vestido!... Que Deus lhe perdoasse, mas tinha-lhe tanta afeição, que o não podia esquecer!... E beijava o seu retrato, chorando.

O vigário, depois de dar os seus conselhos, afastou-se resmungando: — «o demo da mulher! Se não conhecesse a casa onde esteve e não soubesse que foi sempre uma boa rapariga, até desconfiava daquelas lágrimas! Enfim... Decerto que o filho da viscondessa é bem mais bonito do que os negritos do Antonio Marques, mas são filhos, afinal!...» — E rematava sentencioso — o demônio são as mulheres! Umas adoram os filhos mais do que ao próprio Deus; outras até os matam; esta quer mais aos alheios que aos dela!... Ha de tudo cá por este mundo!» — E lá se ia á missa primeira, esfregando as mãos geladas pelo nordeste, levantando, a gola de peles do casaco, batendo com as botas-tamancos na calçada, para aquecer os pés.

 Outubro de 96.


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Nota:
Ana de Castro Osório: “Infelizes: Histórias Vividas”  (1898)

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