A AMA
Quando a Rosita do Simão casou,
foi um desconsolo pela rapaziada. Pudera, se ela e a irmã eram das mais bonitas
caras da aldeia! Claro que não se poderiam chamar belezas em qualquer terra de
formosuras, mas ali, entre a fealdade quase geral, pareciam duas flores.
Decerto que era pena vê-la casar com o bruto do Antonio Marques!
A Mariquinhas estava a servir em
Lisboa, numa bela casa arranjada pelo sr. vigário, e vinha á terra de anos a anos,
toda senhora, toda posta no seu serio — boas mantilhas, bons fatos, uma
figurona! E á Rosa, a ter que casar com o Marques, mais lhe valera ir também
servir...
Ela é que se não importou com os comentários,
e lá foi toda contente, com o seu vestido preto, o lenço de seda, o xale de ver
a Deus, dar a mão de esposa ao sr. Antonio Marques, que ia todo taful, de
capote ás costas e chapéu novo. Foi uma festa.
No poente rubro, tépido, da
primavera que ia no fim, a passarada cantava umas alegres canções — coisas deles,
desses vadios sem futuro. Umas péssimas cabeças, as da passarada!
E o Leandro, amigalhaço do
Antonio Marques e convidado para o arroz doce, tocava os sinos todos num
desaforo de repiques.
O velho campanário tremia entre
os braços da hera. A pobre igrejita enchia-se do ouro mordente que o sol enfiava
pela rosácea do coro. A vinha do passal perfumava a atmosfera como uma enorme corbelha
de reseda e os pinhais, os soutos e os olivedos reviveciam numa vida fresca,
novinha em folha. Errava no ar uma tal expressão de vida natural, que
inconscientemente todas as bocas se abriam em risos. O sr. vigário, muito solene,
fez uma bela prédica á Rosita; as palavras caiam-lhe dos lábios, sérias, claras
e precisas como se viessem classificadas, numeradas, sabendo de antemão o lugar
que ocupariam na vida. O latim era tão explicado, que fazia gosto ouvi-lo...
«Ser casada por ele — dizia a Rosita — até dá felicidade. Parece que fica a
gente mais bem casada!...»
Passados tempos, já não dizia o
mesmo. O Antonio era um bruto, um avarento; tudo o que ganhava enterrava na
fazenda. Em casa, a Rosa mortificava-se, com três criancitas entanguidas de
frio e fome — dizia mal da sua cabeça tonta. Ir casar com um trabalhador da enxada
já fora uma tolice — e sair-lhe ele assim!... Louvado seja Deus, que tão pouco juízo
dá ás raparigas! Porque não fizera ela como a Mariquinhas, que vinha á terra
tão bem vestida, que era a inveja de todos?!...
No batizado do terceiro sobrinho
foi ela ser madrinha, com incumbência de uma ama para Lisboa. O ordenado era
bom e o Antonio Marques, muito avarento, lembrou a mulher. Lá por saudável e
bonita não havia outra nos arredores. Os pequenos ficavam com a avó e haviam de
se criar como os mais, á graça de Deus!
Falou-se ao sr. Vigário — que
dissesse ele a sua opinião. A Mariquinhas explicava —que era para casa da sr.ª
viscondessa, prima da sua senhora, o sr. vigário sabia...
— «Óra se sabia! Perfeitamente.
Ia muito bem; que fosse, que fosse!...»
Custou-lhe muito separar-se dos
filhos, á pobre da Rosita. Chorava inconsolável pedindo á mãe que lhos tratasse
bem, que ela mandaria dinheiro para isso; nada de o entregar ao homem que tudo
iria enterrar na fazenda e deixaria morrer os pobres anjinhos.
Dois anos que a Rosa esteve por
lá, mandou sempre bom dinheiro, que o marido guardava. Os garotos iam-se criando
pelas portas, negros e sujos, tristonhos — uns selvagens. Acabada a criação
chegou ela, esperada em triunfo por todos os parentes, que de fora da gare lhe
acenavam com os lenços chamando-a alegremente. Nem parecia a mesma! Mais bonita
que nunca, a rapariga. Os filhos fugiam dela, enrodilhavam-se na saia da avó,
choravam confundidos por se verem acariciados por mãe tão de grande gala. E ela
olhava-os lacrimejante, sem grandes esforços de ternura, que os conquistasse.
Achava-os tão feios no fim de contas!... Mostrava o retrato do seu menino — recostado
entre almofadas e rendas, risonho e expressivo como se da fotografia fosse
estender os braços roliços á boa ama.
— «Que lindo menino, se vissem!
Uma gracinha de criança, que tudo lhe ficava bem. Quando o levava pela rua toda
a gente se voltava enlevada na sua beleza. Um amor! Nunca poderia esquecer o
seu menino, o querido anjo que criara ao peito...
Aprendera a falar, a Rosita.
Estava outra. Até já sabia escrever e passava horas a rabiscar umas cartas ininteligíveis,
que mandava á sua senhora. «Não podia esquecer o menino, o seu querido menino!
O seu lindíssimo Gut, tão branco e rosado como uma flor...»
Com a vinda da mãe os pequenos
andavam mais limpinhos, isso andavam. A casa estava outra—alteada, janelas
abertas, branca de cal. Um palácio. Mas, dizia-lhe um dia o sr. vigário: — «andas
tão triste, Rosa! Parece que tens saudades de Lisboa...»
Desatou a chorar.
«Oh! muitas, muitas, do meu
menino! Tinha-lhe um amor... Não lhe passava dali!» — E apontava para a
garganta intumescida pelos soluços.
—«Cá, tens os teus filhos, Rosa.
Há de dizer-se que não gostas deles!... Isso é tentar a Deus, rapariga!»
— O sr. vigário que perdoasse; ela
gostava dos filhos — pois se eram seus filhos, não havia de gostar!—mas o seu
menino era outra coisa! Tão lindo, tão esperto, tão bem vestido!... Que Deus
lhe perdoasse, mas tinha-lhe tanta afeição, que o não podia esquecer!... E
beijava o seu retrato, chorando.
O vigário, depois de dar os seus
conselhos, afastou-se resmungando: — «o demo da mulher! Se não conhecesse a
casa onde esteve e não soubesse que foi sempre uma boa rapariga, até
desconfiava daquelas lágrimas! Enfim... Decerto que o filho da viscondessa é
bem mais bonito do que os negritos do Antonio Marques, mas são filhos, afinal!...»
— E rematava sentencioso — o demônio são as mulheres! Umas adoram os filhos
mais do que ao próprio Deus; outras até os matam; esta quer mais aos alheios
que aos dela!... Ha de tudo cá por este mundo!» — E lá se ia á missa primeira,
esfregando as mãos geladas pelo nordeste, levantando, a gola de peles do
casaco, batendo com as botas-tamancos na calçada, para aquecer os pés.
Outubro de 96.
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Nota:
Ana de Castro Osório: “Infelizes: Histórias Vividas” (1898)
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