OS DOIS
ESPELHOS
Depois de
mandar retirar-se a criada, VIOLANTE foi, pé ante pé, fechar a porta do salão
de jantar que deitava para a copa, e veio sentar-se junto do esposo com um
olhar esbraseado e as mãos profundamente geladas.
SIMEÃO, o
esposo, estava transfigurado: um tremor esquivo no canto dos lábios e o
retorcer teimoso dos bigodes, iluminavam-lhe as feições com um clarão colérico.
Ao depois de
sentada ao seu flanco, impulsionando para traz a cadeirinha de balanços,
VIOLANTE provocou-o...
—Faze a tua cena.
—E não é sem
tempo.
—Porque te
deixaste enganar se sabias de ha muito e se não é sem tempo?
—Facilidades.
—Os grandes
generais perdem sempre as batalhas porque facilitam. E o homem casado não tem
direito a facilidades.
—Bem o
sei... Quando penso no erro do meu casamento, sofro mais do que Orestes no
remorso do seu crime lembrado sempre pelas erynias.
Uma existência inteira para passar escravizado aos laços de uma união
infeliz!... Maldita hora!
—Ah!...
ah!... ah!... ah!...
—Sorris...
—E então?
Hei de chorar para te sentires bem na opressão que me fazes?
—A minha
vida depois que me senti enganado...
—Não tem
sido menos nem mais infernal do que a minha depois que conheci o teu adultério...
—Insultas-me
ainda em cima, Violante?
—Não te
insulto. Repilo as tuas agressões, termo por termo. O que eu digo é que o mesmo
direito que tem o homem de trazer o corpo escarolado e perfumoso para agradar
às amantes, tem a mulher de...
—Não dize,
Violante, a indignidade!
—Porque não
dizer as cousas como elas devem ser? Só depois que senti a tua ausência do
lar...
—E confessas
o delito?!...
—... só
depois que conheci a tua amante...
—Mentes,
mulher!
—... só
depois que fui ver onde entras, todas as manhãs, quando daqui sais...
—É horrível,
Violante!
—... só
depois de ver-te partir de lá e a tua concubina despedir-se de ti com um olhar
de escândalo e tu com gestos de lastimável escravidão...
—Tu viste?
—Sim... só
depois de ter a certeza de possuíres uma amante...
—Poupa,
Violante, essa frase...
—...
rendi-me voluntariosamente a um dos muitos homens que me faziam a corte,
sabendo-me uma mulher, infeliz como outras muitas, esquecida no lar pelo marido
libertino...
—É demais!
—Porque tu o
quiseste. Abandonaste a tua casa. Dias inteiros passei num isolamento de
aborrecer. Entretanto, fora diverso o teu proceder nos primeiros tempos de
nosso casamento. Quando saías, mal eu te pensava na rua, mal eu começava a
sentir a tua ausência, estavas de volta. Fui-me habituando a essa Constância fictícia.
No dia em que te retardaste, pela primeira vez, chorei e nem soube, porque
nunca te perguntei, a hora em que tornaste da rua... Onde estiveste? Nunca quis
saber. E, até hoje, nunca te pedi a menor palavra sobre o teu procedimento...
—E como
homem, senhor pleno de seus atos, eu te negaria informações.
—Pois bem!
Para evitar essa negação, nunca tas pedi, ciente e consciente de que sobre o
meu procedimento, dentro do nosso lar, não te devo satisfações... São elas por
elas...
—Abusas...
—Corrige-me
se puderes... Não és o meu marido?... Toma conta dos meus atos! Soubeste que te
trair?... Mata-me, ou expulsa-me de teu lar. Faze o que entenderes, certo de
que atrás de mim haverá quem vingue as tuas incontinências e perversidades...
—E sabes
quem é a minha amante?
—Se sei,
Simeão?!...
—Crias um
conhecimento para justificares a tua falta. Mentes, pois: não conheces ninguém...
—Só com o riso!...
Ah!... ah!... ah!...
—Toma tento,
Violante: enveredas por um caminho em que a minha paciência se esgotara
afinal...
—Ainda em
cima me ameaças?
—Sou senhor
dos meus atos, dono de minha casa, e exijo que me confesses tudo... Quem te
mentiu que tenho uma amante?
— Ninguém!
—Ninguém,
como?
—Desconfiei
e fui ao teu encalço...
—Não falas a
verdade, Violante.
—A certeza
das coisas é adquirida quando nos abeiramos delas. Moléstias mortais, por
miasmas exalados dos paus, só as contrai quem lhes vai à beira. Acompanhei-te
os passos... Foste ao subúrbio... Olhas-me agora atravessado? Nega então que te
falo a verdade como ela é?!... Por favor, desmente-me, se és capaz...
—Juro-te que
não sei do que se trata.
—Perjuro!...
Então, toda a manhã não vais daqui à casa de Idália... Não me interrompas,
não... toda a manhã, não passas lá horas esquecidas, quando sais não fica ela
por traz da gelosia a acenar-te e tu a corresponderes-lhe os acenos de
apaixonada despedida?
—Ousada!
Alem do mais, injurias à mulher de um amigo da nossa família...
—E que é a
tua amante...
—Pois se é,
está tudo muito bem... Escolhi-a por minha muito livre vontade... Constou-te já
que eu tivesse desrespeitado o nosso lar? As minhas obrigações maritais
concluem-se, quando saio, na porta da rua, e começam, quando entro, no mesmo
ponto em que as deixei... Portas a dentro, estou eu casado, e arrependido de
ter renegado a Jessy a quem jurei culto eterno, alias, em tempos melhores...
Casei por uma suposição de momento: a solidão de solteiro era um suicídio de
todos os dias. E só não me enganei em supor que o matrimonio me facilitaria
relações difíceis antes de ter as qualidades de senhor duma mulher... O mundo
inteiro me foi pequeno sempre que tive em mente a tua companhia, e, inda hoje,
Violante, se me lembro de ti, o maior prado é um pequenino jardim, o maior céu
é a entrada de uma furna... A companheira é um tormento. Tomei uma amante...
mas, dentro desta casa, fui sempre o mesmo homem respeitador...
—Outro tanto
te alego eu... Mentirá aquele que disser me ter visto, sorrateira ou
clandestinamente, embuçada ou mascarada, penetrar em lugares escusos, ou ao
lado de algum homem que não fosses tu... Casei-me por inexperiência... Supus
ser inextinguível a paixão momentânea que ditou o ato de meu infortúnio...
Escravizei-me enquanto o meu marido também foi meu escravo... Libertou-se ele,
libertei-me eu... Adquiriu uma amante...
—Retém-te,
Violante!...
—Não! Hei de
dizer-te como tu me disseste... Ninguém pode viver longe do pecado depois que
pecou uma vez... Também tenho um amante, sr. meu marido!...
—Intolerável!
— Também tu
o és!
—Adultera!
—Deixemo-nos,
Simeão, de apodos... Tenho língua e liberdade para tos devolver todos, um por
um...
—Saber-me
traiu...
—Nada mais
natural: queimou-te a brasa com que me queimaste... Quando nada, não terás de
lastimar a alarvidade da tua esposa... Foi uma mulher digna do marido que lhe
deram...
—Sinto faltar-me
a luz da vista...
—Impressões,
Simeão.
—Pois é
justo que me consinta enganado?
—Não nos desonramos...
—É um
consolo ridículo.
—E que
dirias tu se traída eu não te traísse igualmente?
—Diversa é a
situação do homem, Violante.
—O casamento
nivela os direitos de ambos os sexos... Espontaneamente nos submetemos a esse regime
de igualdade...
—Doloroso!
—Assim
exclamei, Simeão! Agora, porem, me sinto melhor: não me enganaste, e isto deve
ser glorioso para ti, enganamo-nos...
—E o teu
amante?
—Dispensa
sabê-lo...
—Ah!...
Repilo a lembrança que me ocorre... Não, não é possível!... O massagista...
—Rende
justiça à tua mulher, Simeão! Pois não vês que eu me não vingaria de ti amando
um homem indigno por todos os títulos, que te fizesse corar perante a sociedade,
e que me fizesse enrubescer diante de ti?
—Então...
Desabafa-me!... Sê completa!
—Insistes em
conhecer tudo?
—Não duvides
que o quero de coração.
—É
Lourival...
—O marido de
Idália?...
—De certo.
—Ah! como
somos, do modo mais vil, dois espelhos que se refletem conjugadamente...
—Mas eu
estou vingada...
Interrompendo-os,
a criada de copa, do lado de fora do salão, perguntava aos harmonizados
esposos, se podia servir o jantar...
E quando a
sala se reabriu, reinava ali completa paz...
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Nota:
Almachio Diniz: "Mundanismos" (1911)
Almachio Diniz: "Mundanismos" (1911)
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Advertência:
Alguns termos inseridos neste conto podem apresentar sentidos obscuros, podendo ser o resultado de erros no processo de digitalização da obra ou mesmo termos específicos atreladas ao contexto histórico no qual viveu o autor. Assim, caso possa contribuir para o esclarecimento de algumas dessas dificuldades ortográficas, por gentileza entre em contato conosco, no e-mail: iba@ibamendes.com
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