O VELHO
MÉDICO
O mostruário exibia, garbosamente, os artigos da moda rigorosa.
ESTEFÂNIO e
JUDITE—esta desprendendo-se de si no devotamento ao esposo, e aquele, dominador
da mulher vencida em mais anos, como se lhe tivesse o corpo de cor, curvas e
linhas, luzes e perfumes—gozavam o esplendor dos luxos, com que o artifício
corrige os defeitos da Natureza e apaga os estragos do Tempo...
MARCO
ANTÔNIO—o médico afamado—cofiando as enevoadas barbas em que se escondiam as
ilusões do seu poder curador, arrancou os olhares dos dois esposos, e
apoderou-se, com fascinante domínio, de suas atenções...
—Bem pode a terapêutica dos homens... Vejo-o restituído
ao fulgor da mocidade...
—É exato,
doutor, passo agora sobre as moléstias como a insensível salamandra por sobre
chamas... Descrendo da causa, não posso afetar-me com os seus efeitos: a sua
medicina é a criadora das humanas torturas. Parece-me que já se disse: «Tirem
os médicos e as enfermidades desaparecerão»... Mas, eu digo: fugi deles e estou
curado. Dêem-me milhões de médicos e estarão formados trilhões de doenças.
—E quem te
curou, meu caro?
—A
natureza...
—O novo deus
pagão...
—Assim diz o
dr., mas, de fato, a inesgotável fonte de poderes curadores. Lembra-se de que o
procurei exasperado com o que sofria?
—Lembro-me,
sim.
—Foram
tantos os diagnósticos que já perdi o direito de dar-lhes autorias.
—O sr. era
verdadeiramente um doente.
—E o dr.
escreveu uma longa lista de medicamentos para horas certas e invariáveis.
—Realmente.
—Pois
confesso-lhe: não fiz uso de um só. Também o doutor não foi o ultimo medico que
me assistiu. Ainda hoje louvo-lhe a sua acuidade na inspeção. Nada faltou à sua
perspicácia, senão compreender que, no meu estado, as suas perguntas eram
outras tantas sugestões e novos sintomas para a agravação de meu mal. Eu vivia
desvairado na vontade de acusar males crescentes, e os meus assistentes
porfiavam em ilustrar-me em torturas inéditas.
—Afinal...
quem te curou?
—Dir-lhe-ei
tudo, de começo. Hygia, a deusa da saúde, não é de todo má...
—A historia
vai ser a mesma de todos os doentes restabelecidos: salvaram-se pela ação do
dedo de Deus, como teriam morrido pela intervenção do doutor...
—Creio que o
sr. adianta um mau conceito. Não me tenho na conta dos casos comuns.
—Desculpe-me.
—Pois não!
Mas, a minha doença foi uma criação dos meus médicos, e a minha cura proveio de
minha inabalável resolução de abandoná-los. Eu estava em ultimo grau de
desengano quando o doutor foi chamado. Voltei assim às mãos de um alopata. Homeopatas
e feiticeiros nada fizeram de resultado para minorar os meus padecimentos.
Quando adoeci, aos vinte e três anos, foi numa convalescença de enfermidade efetivamente
assassina: o amor. Eu tinha conseguido, pela vez primeira, objetivar uma
paixão. E, não só isto: tivera, com todo o delírio próprio da idade, a posse fácil,
e passageira contra a minha vontade, de uma mulher amada. O mundo inteiro
concentrou-se, ao meu sentir, nos violentos pesadelos de minha carne
inexperimentada. Foram sessenta dias, mil quatrocentas e quarenta horas, ou
oitenta e seis mil e quatrocentos minutos de frenético jogo de instintos,
durante os quais as paradas assediaram-me a alma, remontando as fichas do meu
gozo ao máximo possível. O prazo desse amor fora, entretanto, fatal. Esgotou-se
e a mulher fugiu-se-me dos braços como a espiral do fumo que procura as
alturas. Ao depois disto, separado do entretenimento carnal, que me combalia as
fibras, como a água que vai abalar as galerias subterrâneas para derribar as
minas, tive a sensação do remorso de um grande crime...
—De um crime
delicioso...
—Talvez,
doutor.
—E então?
—Encegueirado
pelo amor, o mundo ficou às escuras sem a luz do olhar dela. Quis correr nas
suas pegadas, e senti-me tolhido como a voz na garganta do atormentado por um
pesadelo. Vi em todos os convivas de minha existência, terríveis sombras fantásticas...
E tudo findava sempre num choro convulso, durante o qual me punha a tremer com
tanta violência quanta fazia estremecer todo o assoalho de minha alcova e soar fora
de tempo a campainha do relógio sobre a mesa... Senti-me muitas vezes balançado
como a esferazinha de madeira que anima o trilo dos apitos...
—É curioso,
deveras, o seu caso.
—Foi,
doutor.
—Sim! Foi! E
hoje sinto não lhe ter visto nesse tempo originalíssimo.
—Mas viu-me
um outro medico e diagnosticou-me: um paranóico.
—Paranóico?
—Exatamente,
doutor, e vá vendo. Aconselhou que eu me tratasse com banhos de luzes. Escravos
do sentimentalismo clinico desse primeiro medico, os meus pais esgotaram uma
fortuna e eu fui enormemente banhado, a contragosto, com luzes de todas as cores.
Era inócuo o tratamento para me fazer bem, mas foi uma agravante dos meus males
Exacerbei-me. Os meus nervos polarizaram-se como se aguçados por alta dose, mas
não tóxica, de estricnina. Veio um segundo medico—já a esta hora e ha muito
tempo—vitimado por uma embolia cerebral. Olhou-me e disse, carrancudamente, diante
de uma das minhas crises de saudade carnal: «são delírios epileptiformes»... E
o tratamento passou a ser feito com altas doses de bromureto. A minha enervação
deprimiu-se, e tornei-me um atoleimado, tanto que nem pranteei a morte de minha
mãe, desgostosa com a minha trágica existência... Novo medico; vim a ser um
simples neurastênico, com atonias nervosas. Reconstituintes, passeios, boas
alimentações, prazeres, etc.: nada, porem, matava as saudades do meu instinto
animal. Comecei de padecer do estomago, ora por excesso de alimentação, ou por
escassez... Fui um dispéptico, padeci de insônias, tornei-me um narcoticomano.
Na insônia, senti faltas de ar: novos médicos e fui um cardíaco, um artério-clerótico...
Abusaram de iodetos e tive hemoptises. Um Esculápio chamado às pressas, levando
em conta a minha magreza, o sangue esvaziado dos meus pulmões e o histórico dos
meus sofrimentos, num rápido prognóstico, anunciou a minha morte breve, por
força de adiantadíssima tuberculose. Quando os doutos senhores me interpelavam,
nunca tiveram o escrúpulo de ouvir-me no que sofria somente: sugeriam-me cousas
que só dali por diante eu começava de sentir. E veio um curador homeopata: os
seus remédios ingeri com facilidade, pela falta de sabor. Cai num abatimento
nervoso, e um vizinho, que se enforcou dias depois porque se sentiu arruinado
nas suas forças comerciais, lembrou que os maus espíritos encostados aos corpos
de pessoas novas, faziam artes do demo... E não só apresentou a conveniência de
ser eu rezado, como também foi buscar uma velhinha, encarquilhada e brônzea,
que, de sobre o meu corpo, deitado de bruços na cama, esconjurou o meu
malfeitor, com um galho da famosa arrudeira...
—E nem
rezado, sr. Estefânio?
—Para o
doutor ver! Nem rezado!
—É única a
sua historia.
—Creio que
sim, mas verdadeira. Notou-se, ao depois, que eu tinha mau funcionamento
renal... E foi quando o sr. foi chamado.
—Assim
acaeceu.
—E inda
pensa o doutor que eu tivesse afecção nos rins?
—Se me não
falha a memória, efetivamente.
—Pois
escute: logo depois de sua intervenção, repudiando eu os medicamentos que o
doutor indicou largamente, dois colegas seus foram trazidos em conferencia.
—Que
disseram eles?
—Discordaram
preliminarmente do doutor, e discordaram entre eles mesmos. Do doutor
discordaram reputando sãos os meus rins.
—Sãos, ou
curados?
—Curados,
não. Inatingidos até àquela data. E firmaram o diagnostico de uma hepatite
aguda, um encontrando atrofia do órgão e o outro hipertrofia.
—Mas,
afinal, acertaram?
—Supõem que
sim, porque ao depois da assistência deles recuperei a saúde.
—É
espantoso, meu caro senhor.
—Não é, não,
doutor. Ao tempo em que descri dos médicos, tinha reaparecido a mulher que eu
amara. Visitou-me. Inflamamo-nos, e... estamos casados, não foi assim, Judite?
—Parece-me!
Assim
exclamou, apenas, a sedutora mulher, com os olhos espelhando o enfeitiçamento
de um lindo manteau exposto no mostruário
de modas e confecções... enquanto o velho Doutor enrugava solenemente a espaçosa
fronte...
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Nota:
Almachio Diniz: "Mundanismos" (1911)
Almachio Diniz: "Mundanismos" (1911)
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Advertência:
Alguns termos inseridos neste conto podem apresentar sentidos obscuros, podendo ser o resultado de erros no processo de digitalização da obra ou mesmo termos específicos atreladas ao contexto histórico no qual viveu o autor. Assim, caso possa contribuir para o esclarecimento de algumas dessas dificuldades ortográficas, por gentileza entre em contato conosco, no e-mail: iba@ibamendes.com
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