terça-feira, 17 de setembro de 2013

Almachio Diniz: "O Velho Médico"

O VELHO MÉDICO
O mostruário exibia, garbosamente, os artigos da moda rigorosa.
ESTEFÂNIO e JUDITE—esta desprendendo-se de si no devotamento ao esposo, e aquele, dominador da mulher vencida em mais anos, como se lhe tivesse o corpo de cor, curvas e linhas, luzes e perfumes—gozavam o esplendor dos luxos, com que o artifício corrige os defeitos da Natureza e apaga os estragos do Tempo...
MARCO ANTÔNIO—o médico afamado—cofiando as enevoadas barbas em que se escondiam as ilusões do seu poder curador, arrancou os olhares dos dois esposos, e apoderou-se, com fascinante domínio, de suas atenções...
 —Bem pode a terapêutica dos homens... Vejo-o restituído ao fulgor da mocidade...
—É exato, doutor, passo agora sobre as moléstias como a insensível salamandra por sobre chamas... Descrendo da causa, não posso afetar-me com os seus efeitos: a sua medicina é a criadora das humanas torturas. Parece-me que já se disse: «Tirem os médicos e as enfermidades desaparecerão»... Mas, eu digo: fugi deles e estou curado. Dêem-me milhões de médicos e estarão formados trilhões de doenças.
—E quem te curou, meu caro?
—A natureza...
—O novo deus pagão...
—Assim diz o dr., mas, de fato, a inesgotável fonte de poderes curadores. Lembra-se de que o procurei exasperado com o que sofria?
—Lembro-me, sim.
—Foram tantos os diagnósticos que já perdi o direito de dar-lhes autorias.
—O sr. era verdadeiramente um doente.
—E o dr. escreveu uma longa lista de medicamentos para horas certas e invariáveis.
—Realmente.
—Pois confesso-lhe: não fiz uso de um só. Também o doutor não foi o ultimo medico que me assistiu. Ainda hoje louvo-lhe a sua acuidade na inspeção. Nada faltou à sua perspicácia, senão compreender que, no meu estado, as suas perguntas eram outras tantas sugestões e novos sintomas para a agravação de meu mal. Eu vivia desvairado na vontade de acusar males crescentes, e os meus assistentes porfiavam em ilustrar-me em torturas inéditas.
—Afinal... quem te curou?
—Dir-lhe-ei tudo, de começo. Hygia, a deusa da saúde, não é de todo má...
—A historia vai ser a mesma de todos os doentes restabelecidos: salvaram-se pela ação do dedo de Deus, como teriam morrido pela intervenção do doutor...
—Creio que o sr. adianta um mau conceito. Não me tenho na conta dos casos comuns.
—Desculpe-me.
—Pois não! Mas, a minha doença foi uma criação dos meus médicos, e a minha cura proveio de minha inabalável resolução de abandoná-los. Eu estava em ultimo grau de desengano quando o doutor foi chamado. Voltei assim às mãos de um alopata. Homeopatas e feiticeiros nada fizeram de resultado para minorar os meus padecimentos. Quando adoeci, aos vinte e três anos, foi numa convalescença de enfermidade efetivamente assassina: o amor. Eu tinha conseguido, pela vez primeira, objetivar uma paixão. E, não só isto: tivera, com todo o delírio próprio da idade, a posse fácil, e passageira contra a minha vontade, de uma mulher amada. O mundo inteiro concentrou-se, ao meu sentir, nos violentos pesadelos de minha carne inexperimentada. Foram sessenta dias, mil quatrocentas e quarenta horas, ou oitenta e seis mil e quatrocentos minutos de frenético jogo de instintos, durante os quais as paradas assediaram-me a alma, remontando as fichas do meu gozo ao máximo possível. O prazo desse amor fora, entretanto, fatal. Esgotou-se e a mulher fugiu-se-me dos braços como a espiral do fumo que procura as alturas. Ao depois disto, separado do entretenimento carnal, que me combalia as fibras, como a água que vai abalar as galerias subterrâneas para derribar as minas, tive a sensação do remorso de um grande crime...
—De um crime delicioso...
—Talvez, doutor.
—E então?
—Encegueirado pelo amor, o mundo ficou às escuras sem a luz do olhar dela. Quis correr nas suas pegadas, e senti-me tolhido como a voz na garganta do atormentado por um pesadelo. Vi em todos os convivas de minha existência, terríveis sombras fantásticas... E tudo findava sempre num choro convulso, durante o qual me punha a tremer com tanta violência quanta fazia estremecer todo o assoalho de minha alcova e soar fora de tempo a campainha do relógio sobre a mesa... Senti-me muitas vezes balançado como a esferazinha de madeira que anima o trilo dos apitos...
—É curioso, deveras, o seu caso.
—Foi, doutor.
—Sim! Foi! E hoje sinto não lhe ter visto nesse tempo originalíssimo.
—Mas viu-me um outro medico e diagnosticou-me: um paranóico.
—Paranóico?
—Exatamente, doutor, e vá vendo. Aconselhou que eu me tratasse com banhos de luzes. Escravos do sentimentalismo clinico desse primeiro medico, os meus pais esgotaram uma fortuna e eu fui enormemente banhado, a contragosto, com luzes de todas as cores. Era inócuo o tratamento para me fazer bem, mas foi uma agravante dos meus males Exacerbei-me. Os meus nervos polarizaram-se como se aguçados por alta dose, mas não tóxica, de estricnina. Veio um segundo medico—já a esta hora e ha muito tempo—vitimado por uma embolia cerebral. Olhou-me e disse, carrancudamente, diante de uma das minhas crises de saudade carnal: «são delírios epileptiformes»... E o tratamento passou a ser feito com altas doses de bromureto. A minha enervação deprimiu-se, e tornei-me um atoleimado, tanto que nem pranteei a morte de minha mãe, desgostosa com a minha trágica existência... Novo medico; vim a ser um simples neurastênico, com atonias nervosas. Reconstituintes, passeios, boas alimentações, prazeres, etc.: nada, porem, matava as saudades do meu instinto animal. Comecei de padecer do estomago, ora por excesso de alimentação, ou por escassez... Fui um dispéptico, padeci de insônias, tornei-me um narcoticomano. Na insônia, senti faltas de ar: novos médicos e fui um cardíaco, um artério-clerótico... Abusaram de iodetos e tive hemoptises. Um Esculápio chamado às pressas, levando em conta a minha magreza, o sangue esvaziado dos meus pulmões e o histórico dos meus sofrimentos, num rápido prognóstico, anunciou a minha morte breve, por força de adiantadíssima tuberculose. Quando os doutos senhores me interpelavam, nunca tiveram o escrúpulo de ouvir-me no que sofria somente: sugeriam-me cousas que só dali por diante eu começava de sentir. E veio um curador homeopata: os seus remédios ingeri com facilidade, pela falta de sabor. Cai num abatimento nervoso, e um vizinho, que se enforcou dias depois porque se sentiu arruinado nas suas forças comerciais, lembrou que os maus espíritos encostados aos corpos de pessoas novas, faziam artes do demo... E não só apresentou a conveniência de ser eu rezado, como também foi buscar uma velhinha, encarquilhada e brônzea, que, de sobre o meu corpo, deitado de bruços na cama, esconjurou o meu malfeitor, com um galho da famosa arrudeira...
—E nem rezado, sr. Estefânio?
—Para o doutor ver! Nem rezado!
—É única a sua historia.
—Creio que sim, mas verdadeira. Notou-se, ao depois, que eu tinha mau funcionamento renal... E foi quando o sr. foi chamado.
—Assim acaeceu.
—E inda pensa o doutor que eu tivesse afecção nos rins?
—Se me não falha a memória, efetivamente.
—Pois escute: logo depois de sua intervenção, repudiando eu os medicamentos que o doutor indicou largamente, dois colegas seus foram trazidos em conferencia.
—Que disseram eles?
—Discordaram preliminarmente do doutor, e discordaram entre eles mesmos. Do doutor discordaram reputando sãos os meus rins.
—Sãos, ou curados?
—Curados, não. Inatingidos até àquela data. E firmaram o diagnostico de uma hepatite aguda, um encontrando atrofia do órgão e o outro hipertrofia.
—Mas, afinal, acertaram?
—Supõem que sim, porque ao depois da assistência deles recuperei a saúde.
—É espantoso, meu caro senhor.
—Não é, não, doutor. Ao tempo em que descri dos médicos, tinha reaparecido a mulher que eu amara. Visitou-me. Inflamamo-nos, e... estamos casados, não foi assim, Judite?
—Parece-me!
Assim exclamou, apenas, a sedutora mulher, com os olhos espelhando o enfeitiçamento de um lindo manteau exposto no mostruário de modas e confecções... enquanto o velho Doutor enrugava solenemente a espaçosa fronte...

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Nota:
Almachio Diniz: "Mundanismos" (1911)
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Advertência:
Alguns termos inseridos neste conto podem apresentar sentidos obscuros, podendo ser o resultado de erros no processo de digitalização da obra ou mesmo  termos específicos  atreladas ao contexto histórico no qual viveu o autor. Assim, caso possa contribuir para o esclarecimento de algumas dessas dificuldades ortográficas, por gentileza entre em contato conosco, no e-mail: iba@ibamendes.com

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