RAPTO ORIGINAL
CAPÍTULO I
Namoravam-se a valer, de uns
meses atras; a vizinhança sabia de tudo, acompanhava curiosa, acesa, as
peripécias do derriço e tomava bons regabofes.
Ela, muito nevrótica, atirada a
romantismos, exaltada, amiga de leituras violentas, fin de siécle, tocando piano de modo quase
notável e gostando de despertar, alta
noite, o bairro com a valentia dos acordes que deferia, nem bonita, nem feia,
com esse viço da primeira mocidade que os italianos espirituosamente apelidam la beltá del’ásino, vivendo uma
atmosfera de perfumes entontencedores, exóticos, acre, a sofrer, quase todos os
dias, de enxaquecas, que a levavam a abusar
da antipirina e lhe davam desejos ardentes de se morfinisar, para cair em longos
torpôres e fruir sonhos paradisíacos.
Filha única de antigo negociante,
retirado rico do comercio, o comendador Jacinto Candelária fazia as suas quatro
mil vontades, criada, como fôra, sem mãe, e no meio de numerosas mucamas, que
beliscava forte, nos dias de mão humor e mais nervosismo. Num só ponto,
contudo, e ponto capital, desenvolvia o pai todas as energias de português
teimoso e embezerrado. Significara á filha, desde em menina, e incessantemente lh’e repetia, que só ele é
que havia de casá-la .Tivesse paciência e sobretudo confiança, pois lhe daria
para noivo, não nenhum velho ou qualquer figura estapafúrdia, porém sim rapaz novo,
sacudido, de boa presença, latagão de peso
e medida, mas que oferecesse, depois de cuidadosas provas, garantias seguras
para torná-la feliz no correr da existência.
Também soubera o zelo paterno
arredar já não poucos pintalegretes – uma sucia de bilontras! Berrava possesso
o comendador, — alguns patrícios até, que lhe rondavam a casa, ou melhor,
palacete das Laranjeiras, atraídos pelos dotes da rapariga, entre os quais sobressaía, mais que
os seus olhos e apimentado donaire ou o
talento do piano, o dote antenupcial, de que diziam maravilhas.
— De duzentos contos para cima,
era voz geral, e logo de pancada, antes de se agadanhar, por morte do velho,
cobre muito grosso.
Estava, pois, a moça, entre dores de cabeça,
noturnos ao piano, bocejos e manifestações histéricas, cada vez mais
acentuadas, esperando o pretendente patent, garantido pelo governo paternal,
quando ferrou n’esse namoro muito cerrado e sério — pois os pequenos á janela não
contavam — com o Arnaldo Gracias.
Gracias ou Garcia? Não, senhores,
Gracias, no plural — disso fazia questão — ele, proprietário único do nome.
Zangava-se deveras, ou fingia zangar-se, ao lhe não transporem, principalmente,
o tal característico, que a todos causava tamanha estranheza.
Boêmio aliás, até a medula dos
ossos.
Dotado de muito chiste natural,
talentoso, com estupendo poder de assimilação, sabendo tudo, e no fundo
ignorante chapado, verboso, e mais que isso eloqüente, com uma frase viva, faiscante,
imaginosa, colorida, entresachada de tropos,
verdadeiro fogo de artifício, em que, se havia muita fumaceira, fuzilavam, por vezes, alguns clarões.
Tinha a mania de inventar
palavras, locuções; e algumas entravam logo em circulação. Fôra quem pusera em giro o
estrambótico de quando em vez, tão em moda por algum tempo no Rio de Janeiro.
— Não me banalizem o nome, costumava
gritar nos cafés, batendo com a bengalinha
de junco no mármore das mesas, Gracias... Gracias; com mil milhões de diabos! Não sou qualquer Garcia da venda ou da
botica. Descendo de guerreiros espanhóis que costearam de rijo os mouros, os
infiéis. Atendam bem, tenho que zelar tradições, cousas até de religião.
E nas rodas de estudantes, que
aplaudiam e chasqueavam, lá vinham vibrantes
narrações das batalhas com a mourama, em que se haviam ilustrado os primitivos
Gracias.
E tanto era o fogo que a tudo
punha, como se assistira ás tremendas pelejas, pelo que, não raro, palmas
rompiam, sinceras, espontâneas.
A todo o instante, contava
historias do arco da velha, sua vida em Paris, seus triunfos no Quartier latin. Fôra até amigo de
Theofile Gautier, a eterna criança, o
poeta genial, o estilista impecável, e, com efeito, parecia haver tomado ao
mestre e companheiro de troças algumas centelhas do maravilhoso poder
descritivo.
Carioca da gema, e votando certa
ojeriza á gente nortista — “são trêfegos, invejosos, proclamava sem apelação possível —
tinha como obrigatório o ódio ao burguês em geral.
— Miseráveis! Exclamava com
indignação repassada de desprezo; corriqueiraram-me
o sublime Shakespeare! Babujaram-me de ignóbil baba o imenso Dante! Canalhas!
Entrego-lhes o Inferno e o Purgatório, já que não há ,a defesa possível; mas, com mil
bombardas e pelas cinzas dos meus avós, o Paraiso é meu.
Hei de zelar-lhe a alvinitente
pureza, custe o que custar, até a morte. Não consinto que n’ele toquem!...
E olhava para todos com ares de
quem acabara de receber a sagrada herança
por testamento do imenso Dante, com recomendações expressas acerca d’essa parte da Divina Comedia.
Lera ele jamais esse Paraíso, por
que quebrava tantas lanças, o Purgatório ou simplesmente o Inferno? Nunca se
soube.
Buscando abrigo, em refúgios
extremos do gosto e da originalidade, ainda não conspurcados pelo torpe vulgo,
entranhara-se, como um perseguido pelas literaturas
do Norte e citava com pasmosa profusão os nomes mais arrevesados, apregoando,
dos primeiros nos círculos da rua do Ouvidor, Dostoïewski, Pissenski, Arne Garborg, Ibsen, Bjoenstierne, Bjoernson, Ostrowski, Hastzembusch,
Ocienxdloeger e outros de igual calibre.
Alto, magro, muito claro, com o olhar
meio empanado sobre pálpebras empapuçadas,
cabelos em continuo desalinho, barba espetada perpendicularmente ao queixo,
distinguia-se, mais que tudo, por pés e mãos enormes. Calçava Clark 43 e luvas,
letra... não; luvas era superfluidade de que nunca usara. Em compensação, movia essas mãos em gestos contínuos, ora
largos, calmos e generosos, ora frenéticos, raivosos, ameaçadores, de quem ia
derrear meio mundo, com pancada de moer
ossos.
Vivia ao Deus dará, sempre em
vésperas de estrondosa colocação, já em alguma
das secretarias de Estado, onde distribuiria o santo e a senha, introduzindo reformas
estupendas de mais apurado cunho literário na feitura das peças oficiais, já a
frente de uma publicação periódica que havia impreterivelmente de desbancar a Revista
dos Dous Mundos — nada menos.
— Vocês verão, anunciava
exaltado, convicto, como ponho de pernas para o ar o tal Buloz e toda a sua
igrejinha carranca, pedantesca e jesuítica. Será o protesto do mundo pensante
contra aquela ridícula camarinha, que pretende avassalar o intelecto universal;. Preparem-se para
estourar de tanta gargalhada!
Por em quanto, porém, nem emprego
de secretaria, nem revista. Passava os dias
a pedir emprestadas a amigos e conhecidos umas miseráveis quantias, que considerava
favor ir embolsando; hospede dias, semanas ou meses seguidos, aqui, acolá; excelente rapaz no fundo, divertido,
serviçal e meigo, em meio de todas as bravatas
e objurgações.
Sempre pronto para a pandega. Lá
isso, contassem com ele; era dos fieis, dos
inabaláveis. Com a breca, até em patuscadas há deveres a cumprir. Demais, a vida
foi feita para desobrigar-se com honra e pontualidade dos compromissos tomados; curta e boa – a sua divisa.
E desfiava umas 8 a 10 horas inteirinhas do dia
na rua do Ouvidor que, percorria do
largo de S. Francisco á ria Primeiro de Março quinze ou vinte vezes, ora ás
carreiras como homem atarefadíssimo e que não podia perder um minuto. Ora parando
em cada botequim e nele chuchurreando café, licores, conhaque, leite, sorvetes,
sem absintosinho não raro, e quantos líquidos, inocentes ou não, todos de bom
grado lhe ofereciam. Pagava tudo com o seu verbo inflamado, multiforme, incansável,
já contando anedotas picarescas, engraçadíssimas, já vociferando, sempre em oposição violenta contra os homens
do poder; hoje niilista, comunista, anarquista, amanhã autocrático, déspota
feroz na desapiedada repressão e no ilimitado
rigorismo, tudo com inabalável convicção e grandes luzes de argumentos.
Á noite, teatros, onde achava
sempre meios de encaixar-se, sem jamais se entender com o bilheteiro. E, nos
entreatos, eram intermináveis catilinárias á propósito da decadência da arte dramática e
dos costumes públicos, adubada a preleção com olhares de indignação menosprezo
ás petulantes francesas e raparigas que
por ali se exibiam espevitadas, provocadoras. Ocasiões, porém, havia em que com
elas confabulava graciosamente.
— Boas criaturas em suma, estas
michelas e marafonas, dizia com um sorriso
bonacho, o que não impedia de declarar-se discípulo intransigente de Shopenhauer
e de pregar inflexível cruzada contra o eterno feminino, a perdição do homem ,
o seu instrumento de degradação e insanável vailania.
— Tirem-me a mulher do mundo,
urrava já muito escaldado com os bocks de cerveja e copinhos de cognac fine champagne, e faço de todos
os homens deuses, estes supernaturais!
Davam-se épocas, entretanto, em
que, de viseira alçada, com muita nobreza,
relembrando o cavalheirismo castelhano, se batia em prol do sexo fraco, vitima
e mártir da prepotência do forte, secularmente tirânico e maldoso, brutal e egoísta.
Nessa quadra de reivindicação, exigia. Em nome da justiça ultrajada, que a natureza
repartisse com igualdade os gravames da reprodução da espécie.
Bradava então imperioso:
— Uma vez a esposa, outra o
marido. Os tais senhores que experimentem o que é bom. Quero vê-los grávidos!
E com toda a seriedade chegava a
afirmar e prometer, que ele, Arnaldo Gracias,
á fé de gardingo e descendente de fidalgos wisigodos, de uma só palavra, de antes quebrar que torcer, havia afinal de
pôr cobro a tamanha iniquidade.
Boas surriadas e espirituosos
dichotes ia promovendo com tudo isso.
Morava não se sabia bem onde,
alcandorado em qualquer pouso mais á mão,
quase sempre republicas abarrotadas
de estudantes, onde discutia ciências, artes,
literatura, e lá se deixava ficar mais ou menos tempo, conforme o capricho, não se lhe dando absolutamente com a
amabilidade ou os mãos modos daqueles a quem
dispensava a honra da sua convivência.
É que estabelecia logo
incomodativo comunismo, e a aplicação d’esse sistema deveras modificava o prosear de
intermináveis e acaloradas palestras, em que gastava tanto fluido vital. Com
toda e sem cerimônia, tomava a roupa dos outros, vestindo camisas alheias, quer já
servidas , e enfiando-se sem o menor escrúpulo nas calças e nos paletós, que
encontrasse mais de jeito.
E por cima, se o apertavam mais
seriamente apuros de dinheiro, não punha duvida alguma em passar a mão nos
livros dos que o hospedavam, levando velhas gramáticas, compêndios de
matemáticas elementares, seletas latinas, ou até obras de preço, que truncava sem o mais leve
emba5raço de consciência, e ia vender a esses modestos belchiores, crismados
com a alcunha bem feia de ... caga-sebos.
Costumava, entretanto, que
incoerência! Esbravejar com sincero furor contra essa tímida classe, tão útil
aos seus hábitos, e propunha uma Saint Barthélemi implacável, que extinguisse
de vez a abominada raça.
— Há de chegar o dia, olé, se há
de! Anunciava ameaçador. Tenho de olho uns
cinco ou seis... Já os avisei... Esses ficam por minha conta... galegos todos –
uma bela bainha de toucinho para a adaga dos meus avós!
No fundo, incapaz de matar um
caçapo.
CAPÍTULO II
Tal era Arnaldo Gracias, por
enquanto todo entregue á sua paixão pela nevrótica Júlia Candelária.
Entabulara-se o caso, estando ele
de pousada na casa em comum de vários empregados
de comercio, seus amigos íntimos dessa temporada, como era de meio mundo em certas quadras, segundo a veneta,
pois não raro tinha também acessos de misantropia, e desaparecia, sem que
ninguém pudesse atinar onde ia encafuar-se.
Metidos a aristocratas e moços de
boa roda, habitavam os tais empregados do
comercio nas Laranjeiras, perto do palacete Candelária.
Pano para mangas forneceu o
publico namoro de Gracias, estampando-lhe as gazetas quase que diários sonetos
coruscantes, embora monótonos e impregnados de sentimento todo factício. O
autor porém e alguns adeptos fervorosos
os tinham em conta de indiscutíveis obras primas.
— É o Petrarca sul-americano,
decidia um dos discípulos na arte boemia; assombroso, um abismo!
Não cabia pois Júlia em si de
contente, dava escândalo, servindo-se das mucamas e dos molecotes da casa para,
a cada momento, enviar cartas e fitinhas, pontas de cabelo e flores alegóricas, ou
docesinhos e mais isto e mais aquilo, ao incansável trovador.
Teria, por cento, preferido mais
elegância e plástica no seu porte, barba menos hirsuta, cabelos mais
disciplinados e principalmente menos surrado um celebre sobretudo, de verão e
inverno; mas enfim, com um bocadinho de exaltação muito senão pode
transformar-se em qualidade estética.
— Que alma! Exclamava com
entusiástico fervor, e que talento, quanta imaginação!
Num belo dia, lembrou-se de
autorizar o nosso Gracias a ir pedir ao comendador a sua mão — uma tentativa.
“Perigosa cartada, a que jogamos,
dizia ela em carta, mas procurarei por todos
os meios e com o maior jeito preparar o terreno. Terei coragem; conto com a sua
resolução. Apresente-se afoutamente.”
E por ai ia, numas quatro longas
paginas.
Gracias, que não guardava
segredos com ninguém, e menos ainda com os amigos íntimos de ocasião, mostrou logo a
carta aos companheiros de estadia.
Foi um só brado.
— Olhem o felizardo! Então vai
meter-se em cobreira grossa, tornar-se do pá para a mão capitalista graúdo. Que
proteção escancarada da sorte! Duzentos contos de pancada!
Quedou-se o nosso herói não pouco
conturbado. Deveras a fortuna repentinamente lhe batia á porta, quando menos
pensava em dinheiro? Então iam Ter fim todas as misérias que curtira, ainda que
o não preocupassem lá muito, mesmo
nada?! Duzentos contos? Que faria de tanto dinheiro, de tantas notas de Tesouro Nacional?
Chegou a declarar muito
seriamente que, mal entrasse no dote da menina, mandaria construir vasto
hospício para cavalos e animais vagabundos, abandonados por doentes e imprestáveis.
— Palavra de honra, gritava,
fustigando os moveis com muita força. A humanidade lhes deve isto. Depois,
cuidarei de montar a minha grande revista. Preciso, desde logo, dignificar o
dinheiro do galego.
E falava já com o entono de um
milionário.
Em casa, porém, do comendador,
reinava muita agitação. A peito descoberto
e com ares de irrevogável resolução, denunciara Júlia a paixão que a dominava, batera o pé, tivera uma série de
fanicos, mas nada conseguia senão freqüentes:
“Ora bolas! Contenha-se menina!” “Tenha
paciência, estou já com noivo quase arranjado!” “Que maluca!” “Não seja tola”,
“vá bugiar” e outras frases de invencível
resistência, além de muitas descomposturas ao tal pelintra, que viera interpor-se entre pai e filha: “Um valdevinos;
conheço-o muito: chupador de cerveja da rua do Ouvidor, batedor de carteira”, e
mil outros deprimentes qualificativos, entre os quais voltava a cada passo o de “poeta
d’água doce”.
De tudo foi logo informado
Gracias, mas lá vinha a recomendação: “Não se importe; apresente-se em casa e
peça a minha mão. Precisamos Ter do nosso lado a razão. Papai gosta muito de mim mas lá a seu
modo.
E tal a insistência que, numa
tarde, ao escurecer, subiu o descendente dos guerreiros espanhóis, um tanto
comovido, força é confessar, as escadas do comendador Candelária, enfiado n’uma
casaca emprestada que, por sinal, não lhe assentava nada. Logo se denunciava roupa de
empréstimo. Casaca só? Qual, camisa,
d’este feita bem limpa, colete, gravata branca, calças, claque e luvas que segurava
da mão despretensiosa elegância – jamais as poderia calçar. Fizera vir da loja
botinas de verniz para essa entrevista decisiva.
— É o meu Covadonga, anunciara
ele, vou entestar frente a frente com o sanguinário
árabe Alkamah. Pelas barbas dos
Gracias, que não me mete medo o bronco Almoravide.
Recebeu-se o Candelária de cara
muito amarrada, todo vermelho, quase apopléctico.
Como, porém, se prezava de muito bem educado — uma das suas manias — fê-lo sentar, empertigado, casmurro,
deixou-o falar, expor ao que vinha.
Após breve hesitação, falou,
falou o rapaz quase a perder o fôlego, legitima conferencia, como se estivesse
de posse da tribuna da Glória. Não poupou os excelentíssimos.
Afinal o velho o interrompeu,
todo inchado de ira:
— Tudo isto é muito bom, declarou
com solenidade de pessoa de finíssimo trato;
mas o senhor, consinta-me a franqueza, não tem nem eira e está perdendo o seu
tempo. A minha filha não é para os seus beiços.
— Tenho diante de mim o futuro,
exclamou liricamente Gracias.
— Bom, bom, não admito conversas
fiadas.
E levantou-se para não
arrebentar. Fervia-lhe o sangue nas entumecidas veias.
Quis o pretendente replicar.
— Basta, basta, meu rico senhor.
Isto aqui não é ponto de bilontras. Queira retirar-se, quanto antes. Pão, pão,
queijo, queijo! Por ali é o caminho da rua.
Portou-se Gracias com
incontestável dignidade e calma.
— Pois bem, exclamou um tanto
melodramático, retiro-me, Sr. Comendador, mas lavro solene protesto. Hei de
vingar-me, espera pela pancada.
E descida a escada, ao chegar a
soleira da porta, voltou-se, fez das mãos em côncavo sonoro porta-voz e atirou aos ares
o mais formal desafio a todos os pais despóticos
e da velha escola.
— Ó sujo! Ó pé de chumbo.
Em vibrante epistola, sem mesmo
despir a casaca, contou logo á Júlia o resultado
da desastrada conferencia. “Fiquei, narrou ele, ofendido nos meus brios mais
sensíveis e melindrosos. Tudo suportei por seu esse brutalmente seu progenitor. Fôra outro homem, e a esta hora
estaria estrangulado, morto. Imagina quanto não sofri. Houve momentos em que
supus perder a razão com o esforço que fiz
por me conter e reprimir os marulhosos borbotões do meu sangue espanhol. Ainda
estou pasmo de ter tido tamanha poder sobre tantos avós, que, do fundo das minhas entranhas, bradavam ululantes:
“Vinga-te, mancebo; lembra-te de nós, não deixes que esse desalmado e vil
português zombe de Aragão e Castela!”
E, mais por leviandade, do que de
tenção feita, terminava propondo á amada imediata evasão d’aquela sinistra Bastilha:
“Fujamos, dizia arrebatado, é preciso pores termo a tão intenso padecer. Tudo
tem limites, a resignação, a paciência, a cordura, é doce paloma, estrela do meu amor,
vida da minha vida etc., etc.”
“Fujamos”, foi a resposta, sem a
menor vacilação.
E os dous trataram da pronta
realização do temerário projeto.
CAPÍTULO III
Muniu-se, desde logo, Arnaldo
Gracias de desabado sombreiro e vasto manto espanhol, que misteriosamente
arvorou, fizesse sol ou chuva, como símbolo de graves complicações e perigosas
incidências, em sua vida, o que a não poucos comunicou, exigindo, porém, rigorosíssimo sigilo
— questão de muito comprometimento.
Cuidou, em seguida, de lançar um
empréstimo na praça do Rio de Janeiro, cousa,
aliás, bem modesta, uns 200$, que, entretanto, não lhe foi fácil reunir, embora oferecesse aos emprestadores de
profissão juros positivamente fabulosos. Enfim, já como favor pessoal, já como
adiantamento para um livro a sair dos prelos e destinado a estrondosa aceitação — intitulado,
ora Novos aspectos de critica – ora A metempsicose é luz da ciência, ou então O
eureka nas letras e nas artes — aos
5, 10 e 20$ pode arranjar a soma precisa para ajustar e aluguel de um carro de cocheira
com cavalos pretos — velozes como o pampeiro, recomendara ele — ter um quarto melhor no Hotel dos Quatro Cantos —
e outras despesas indispensáveis. Aos,
criados, largas gorjetas prévias — era de obrigação no melindroso trecho.
Em poucos dias, tudo ficou
minuciosamente combinado.
Com a liberdade de vida que tinha
Júlia Candelária, nenhuma empresa difícil, aliás, e menos ainda de assombrar, o
sair de casa pelo portão do jardim, das 9 ½ ás 10 horas da noite, meter-se n’um
carro á espera ali perto e ... fouete
cocher! Nas vésperas do grande dia, ou antes da noite fatídica, sentiu-se
Gracias agitadíssimo. Não é graça, de certo, proceder-se ao rapto de uma menor,
apatacada ou não. E esta idéia de dinheiro pungia até o nosso boêmio de modo
especial. Havia momentos em que preferiras saber a amada paupérrima, filha de
necessitados operários, afim de tirar á
ventura em que ia meter-se qualquer caráter de vil interesse, como,
infalivelmente, não deixaria a malevolência de assoalhar, pérfida, viperina.
Além disto, por mais leviano e
despreocupado que se seja, por menos que se pense, representavam esse feito e as
imediatas conseqüências tal modificação de
hábitos na sua existência livre e descuidosa, que, de vez em quando, lhe girava
a cabeça como se fôra a perder os sentidos.
Mal podia dormir e passava as
noites a fumar cigarrinhos de palha, uns após outros, e a beber xícaras de café,
concentrado, apesar das reclamações dos donos da casa.
— Você põe-se doudo varrido com
esta historia de rapto, gritavam eles.
No dia então aprazado, não teve
um momento de descanso o alvoroçado Gracias.
Duas, três, dez, vinte vezes foi ao tatersal, repetiu as instruções, descreveu ao
cocheiro aprazado os lugares, todas as particularidades do ponto de espera, fez
d’ele seu confidente, gratificando-o com toda a antecedência. Do mesmo modo no Hotel
dos Quatro Cantos.
A rua do Ouvidor percorreu-a
febrilmente o dia todo. Aqui, ali, nas inúmeras
e vertiginosas passadas, a
consultar todos os relógios como se receasse perder a
hora solene, foi ingerindo
cálices e mais cálices de cognac, kisch e rum e xerez e
mais isto e mais aquilo, em
numero de todo o ponto incalculável, capaz de encher de
alto a baixo todo um obelisco
egípcio, consagrado a dados estatísticos sobre consumo de líquidos.
E, entretanto, não dava sinal de
ebriedade; a super-excitação nervosa o agüentava com valentia.
Não pôde jantar. Mal lambiscou
umas guloseimas.
Também, á hora em que, encafuado
no carro, se quedou á espreita da presa, á maneira de ardilosa aranha no centro
da teia, não podia mais de cansaço, os
membros todos alquebrados, numa lassidão inexprimível. Cochilava como um perdido e, embora quisesse impedir a conversa
do cocheiro com um caxeirinho da venda próxima á casa do comendador, não se
mexia, a cabecear, tolhido, inerte, estatelado, ouvindo, contudo, palavras que
deviam tê-lo sobressaltado: espera, rapto,
moça de bairro...
Só despertou com a chegada de
Júlia Candelária, toda de preto e envolvida em mantilha negra, mas muito senhora de si,
alegre, satisfeitíssima da sua proeza. Não
encontrara estorvo algum; não suscitara nenhuma desconfiança.
Soavam então 10 horas.
— Cocheiro, bradou Gracias saindo
do seu torpor; toque para o ponto que já sabe... Um relâmpago!
E lá se foi em disparada o
veiculo pelas ruas já silenciosas, com ares de mistério muito chique, baixas as
cortinas, fustigados valentemente os cavalos negros, encarregados de
representar de pampeiro naquele dramático episódio.
Enfim... enfim... exclamou
Gracias buscando chamar a si todo o entusiasmo das traições castelhanas, chegou
a nossa hora... chegou... chegou...
Qual! sono invencível lhe prendeu
a língua, fechou-lhe a boca com mão de ferro. Grande também o espanto de Júlia,
que a pouco e pouco se mostrou amuada, ofendida, e afinal se encolheu mal
humorada a um canto do carro.
Ao rápido balancear da tipóia
sonhava o mísero com uma cama larga, macia, perfumada, irresistível, em que
afinal tomava desforra completa das passadas
insônias! Como era bom dormir, dormir a farta, refazer as forças perdidas, estender e desentesar os nervos e músculos,
tantos e tantos dias contraídos, repuxados, hipertenizados! Não, deveras, nada
vale um bom conchego, quando a gente tem sonos atrasados, nada se lhe compara!
De repente acordou.
Era o carro que parava, alcançado
o Hotel dos Quatro Cantos.
E o criado á porta, gravibundo,
ainda que revestido de certo ar de condescendência, esperava os dous pombinhos
e os foi guiando com toda a discrição ao
quarto preparado.
Fecharem-se.
Gracias, acabada a momentânea
sacudidela da chegada, não compreendia mais
onde estava, o que fazia. Tudo entrava no domínio do sonho, E não era que o via
realizado? Como que lhe estirava amorosos braços uma cama, a puxá-lo com desapoderada atração na sua brancura,
deslumbrante a olhos fáceis, bem duvidosa, entretanto, mão grado todas as recomendações
mil vezes feitas. “Um ninho de cisnes!”
pedira instante ao hoteleiro, gostando, mais que tudo, da frase.
Como, pois, não se deitar logo e
logo a fio comprido? Como recusar-se a tão convidativos e suaves encantos? Impossível,
superior a forças humanas... naquela emergência!
— Ao tálamo nupcial, balbuciou
ele, Júlia... minha celeste Júlia!
E, dando o exemplo, tirou
depressa as celebres botinas de verniz e, vestido como estava, embrulhado no manto espanhol,
deixou-se ir, sem resistência, a um sono de chumbo, acabrunhador, intelutável.
D’ali a nada ressonava como um bem-aventurado.
Estava a imprudente Júlia
positivamente atônita, terrificada. Que significava tudo aquilo?
Lembrou-se de gritar, de pedir socorro,
bater nas paredes, mas não pode, sentia-se paralisada ao menor movimento, sem
voz, sem ação.
Deixou-se cair, envolvida em sua
mantilha negra, apatizada, longo tempo, talvez
horas, sem saber o que seria d’ela. Olhava sem ver para o singular raptor, cujo
corpo, á luz da mortiça estearina, se lhe afigurava simplesmente o de algum bicho monstruoso, repugnante; e lagrimas
compridas desfiavam-lhe amargas pelas faces
afogueadas.
Nem de propósito, numa sala
próxima, entre grandes berreiros, terminava-se uma ceia com proporções
orgiáticas, e os gritos descompassados de homens e mulheres, o espoucar
estrepitoso do champagne, as saúdes, os hips
e hurrhas, lhe imprimiam ao sistema
nervoso contrachoques elétricos, que a punham quase louca.
A pouco e pouco, porém, se iam
acalmando e esbatendo todos os barulhos da rua, e múltiplos ruidos do hotel,
quando a desventurada verificou, transida de horror, que a vela breve se
extinguiria. Como, ás escuras, em tão pavorosas circunstancias? Se aquele homem passasse do
sono á morte?
E esta idéia tanto a aterrou,
que, fazendo heróico esforço sobre si mesma, procurou na maior ansiedade e por toda a parte
meios de prolongar a claridade, prestes
a sumir-se.
Foi-lhe de grata impressão
encontrar na gaveta do lavatório um pacote de falsificado Clichi.
— Enfim! Não pode deixar de
exclamar.
Recuperando algum alento, depois
de reformar a vela, achegou-se a Gracias e chamou-o a principio com meiguice e bem
baixinho, depois com força, impaciência e raiva.
— Arnaldo... Arnaldo, estou com
medo..., acorda! Sr. Arnaldo... acorde!...
Mal se mexeu o desastrado.
Ergueu, num gesto inconsciente, as mãos imensas,
que puseram temerosas sombras na parede, e murmurou:
— Conversaremos amanhã...
temos... muito tempo.
Desanimou Júlia de vez,
instintivamente ofendida.
Enfim, não ficaria ás escuras,
não era pouco; acendeu até duas velas mais, e, de volta á sua cadeira de
braços, com a maior intensidade de luz, contemplou espaçadamente aquele novo Endimion, presa de
inquebrável dormir, o ideal do seu romance,
o pomo de discórdia com o seu velho pai, tão bom, pronto sempre a lhe fazer
todas as vontades, o causador da sua vergonha e irremediável desgraça.
Pois deveras era aquilo?! Que
nariz ridiculamente arrebitado, que barbas de piaçava, que cabelos e que tez esverdeadas,
baça! E a grotesca saliência dos olhos por
baixo das pálpebras inchadas? E as sobrancelhas em matagal, unidas como sombria e fatídica linha? Santo Deus, que pés
colossais, metidos em meias de branquidão
negativa!
Que seria dela, perdida para todo
sempre, depois de tamanho escândalo, travados
a sua existência inteira, o seu futuro, com o desse sedutor impossível?!
E de novo chorou copiosamente
quando a madrugada já vinha colorindo de rosicler uns pontos do espaço, anunciada pelo
estrídulo grito dos galhos matutinos.
Sorria-se todo feliz Gracias na
sua beatitude de largo repouso afinal conquistado;
mas nem por isto se mostrava menos feio e repulsivo, pelo contrario. Ah! Quanto
arrependimento, que intenso vexame, no peito de Júlia! Que acerbas reflexões!
Que horas ainda! Que anelo, para que aquela noite acabasse e ao mesmo tempo nunca pudesse ter fim, nunca, durasse
eternamente.
Afinal, vencida por mortal fadiga
e indizível angustia, pegou também no sono, na tal cadeira de balanço.
CAPÍTULO IV
Foi a triste e mesquinha heroina
acordada em sobressalto por enorme barulho. De todos os lados inundava o quarto
sol alegre, triunfante; deviam ser 8 horas
da manhã.
Batiam á porta com desabalada
violência, iam arrombá-la .
Gracias nem se mexeu.
Júlia Candelária fez um esforço
e, arrastando-se deu volta á chave.
Atiraram-se sôfregos para dentro
em bolo o comendador, o delegado de policia, soldados e curiosos. Frutificara a
palestra de véspera do indiscreto automedonte,
pondo a autoridade na pista imediata e certa dos fugidinhos.
Dominando a imensa conturbação,
viu a moça afinal a salvação. Agarrou-se ao pai que, em vão, buscou repeli-la .
— Juro, exclamou ela bem alto e
com acento de irrecusável verdade, que passei
a noite toda naquela cadeira de braços. Não me acabrunhe mais com a sua justa
cólera, meu pai... meu bom pai... minha proteção única nesta terra de misérias.
Tenha pena de mim, da sua filha tão infeliz! Fui... muito, muito culpada... mas
salvei- me...
E com tudo isso Gracias nem se
mexia.
Afinal sacudiu-o umas três ou
quatro vezes o delegado com energia por um braço, e o homem... despertou.
— Bom, disse ele com relativa
calma, esbugalhando quanto pode os estremunhados
olhos, temos agora historias com o senhora policia... era infalível!
E, sentando-se na cama, pegou com
as mãos os pés em atitude de quem estava
disposto a encetar conversa familiar e entrar em acordo amigável.
Fossem razoáveis, era só o que
pedia.
Não mostrava maior abalo.
— Aliás, continuou já um tanto
altivo, acatei esta donzela como se fora minha irmã. Ela que o diga... Sei
portar-me como cavalheiro. Raptei-a, para que o comendador, aqui presente e que
me merece estima e consideração, consentisse na eterna união de dous corações leais, que se
estremecem loucamente e anseiam um pelo outro!...
Júlia soluçava como uma perdida.
— Que vergonha! Que vergonha!...
Como é que se não morre nestes casos?
Candelária mostrava-se muito abatido.
— Deveras, minha... filha? Pode
ele a custo perguntar.
Teve a moça uma arrancada de
desespero e indignação.
— Casar-me com esse homem bradou
estancando de súbito o angustioso chorar,
antes a morte, mil vezes antes, na forca, diante do mundo inteiro!
E, numa explosão de bem sincera
dor, implorou humilde e meiga:
— Tenha dó, meu pai, da sua
desgraçada filha... Leve-me daqui já e já... Sofro como jamais pude imaginar
sofrer!... Nada lhe ocultarei!... Nunca mais lhe hei de desobedecer, mas vamos
nos embora... perdão, perdão.
Quinze dias depois, e muito á
capucha, efetuou-se o casamento de Júlia Candelária, com o desempenado rapagão que o
comendador tinha desde muito de olho, conforme avisara a filha.
Partiram os ditosos noivos sem
demora para a Europa, e, de certo, não acharam
motivo algum de estranheza e queixa um em relação ao outro. Fôra, ainda mais, o dote duplicado, acima de toda a
expectação...
Quanto a Arnaldo Gracias,
continuou na sua existência desorientada e solta, cada vez mais boemia e mais satisfeito consigo
mesmo.
Toda uma epopéia aquele momento
físico da turbulenta vida!
Pudera, qual outro arcanjo S.
Rafael conculcando aos pés o truculento Belzebu, subjugar vitorioso a
animalidade feroz e bramante, amordaçar a turgidez da desencadeada luxuria,
agrilhoar pela inacreditável possança do idealismo as tremendas e leoninas investidas da matéria, e
arcar, braço a braço, peito contra peito, em esforço titânico, com os ímpetos
vorazes da volúpia, tudo para quedar-se imóvel de joelhos, em êxtase de mística
homenagem, puro, continente, sem pecha, na mais adorável e santa vigília de
amor e de respeito, ante o símbolo da paixão etérea, seráfica, lírio virginal, a flor
sublime, que saíra de tão extraordinária prova imaculada, impoluta, intemerata,
adamantina, realçado o brilho ofuscador da incomparável confiança, candidez e
castidade!
E com todos esses elementos da
mais inspiradora subjetividade, em menos de meia hora e entre dous cálices de conhaque,
compôs, sublimando a virtude própria e o seu heroísmo, esplendido soneto nuns
sonoros alexandrinos, muito citados depois,
e que, nos grêmios literários da mocidade, provocavam sempre aplausos de fremente
entusiasmo e enternecida admiração.
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Nota:
Visconde de Taunay: "Ao Entardecer" (1901)
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Nota:
Visconde de Taunay: "Ao Entardecer" (1901)
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