sábado, 31 de agosto de 2013

Visconde de Taunay: "O Estorvo"

O ESTORVO

Muito, mas muito, contente sempre de si e consigo mesmo o Amaro Esteves, sobretudo agora que ganhara, por bambúrrio, não pouco dinheiro no  encilhamento. Por cima, o prêmio integral de cem contos de reis na loteria da Bahia.

Sim senhor, graças aos inesperados e meigos sorrisos da sorte, se tornara, nada mais, nada menos, um capitalista importante.

E rapaz ainda, bonitão, na casa dos 35, atirado ás mulheres, gostando de  roupagens claras, gravatas vermelhas com alfinetes de grande brilhante, pilhérico,  metido a contar anedotas engraçadas, picarescas.

A maçada era a Nicota, a mulher, tão franzina, desengonçada, chôchinha,  sem carnes, sempre retraída, muito acaipirada, cousa demais. Também fôra aquele  casamento uma bobagem, estopada de marca maior.

Mocinho, numa festa de roça, tolamente se embeiçara por ela, então  rapariga sem graça nenhuma, e, quando dera acordo de si,   záz,      traz, nó cego, estava casado, amarrado para todo o sempre pelo conjungo de um vigário de aldêa.  Que espiga!  

Não era, de certo, mazinha a Nicota, muito acomodada, calada, no fundo  nula, absolutamente nula. Dela não vinha nem bem, nem mal ao mundo. Incapaz de  matar uma mosca. Servira nos tempos de penúria e miséria, quando vegetara nuns empregos reles, de cacaracá;  mas agora que pretendia fazer figura na sociedade, frequentar teatros, concertos e bailes, receber e dar jantares, como se avir com semelhante pamonha?

Nada lhe assentava no corpo mal ajorcado, sem ondulações nem quadris.  Não havia chapéu que lhe quadrasse, e por mais jóias que pusesse ficava até pior.

Metia-lhe deveras vergonha, ela ao seu braço pela rua do Ouvidor afora.

Não sabia nem sequer aproveitar o cabelo que tinha comprido e abundante.  Penteava-o á china, puxando-o todo para traz e deixando a testa de bater roupa,  com uma cara muito feia, rechupada, faces encovadas, olhos empapuçados, beiços escados em ponta, como bico de chocolateira.

Por mais que lhe dissesse: “arranje-se melhor, Nicota; veja fulana, veja  sicrana”, não adiantava um passo, nem cousa alguma conseguia.

Tinha por vezes vontade de lhe empurrar a mão, dar-lhe pancada e até cabo  da pele, vê-la morta, metida no caixão e enterrada. Que alivio! Com mil bombas,  aquilo não era mulher para ele!

Ah! Fosse casado com alguma desempenada, que vida, que figurão! Alguém  que o compreendesse e estivesse na altura da posição conquistada, ele que pretendia agora abrir os seus salões, mandar até comprar um titulo em Portugal.

Vejam, porém, só a Nicota baronesa ou viscondessa; ninguém a tomaria a sério, ninguém; um varapau de saias, sem expressão, sem vida, nem peixe, nem carne. E a abrir a boca, era logo um xurrilho de asneiras “muié, havera, promóde,  teia, panhou, rancou”. Mal sabia ler e escrever.

Aquilo nunca se havia de desemburrar, escusado!

Só prestava para pregar botões ás camisas e ceroulas e coser na máquina,  assim mesmo tão vagarosa, desconsolada sempre, á mercê do marido, numa  pasmaceira enorme, desfibrada, atônica, inerte, atenta só á limpeza da casa, que trazia como um brinco.

Que maçada, que peso, a tal Nicota! Se ela pudesse esticar a canela, morrer de uma boa vez!... Não faria nada por isso, porque afinal não era nenhum criminoso,  desalmado e assassino. Só se a natureza se lembrasse de libertá-lo daquela lesma.  E devia merecer esse favor, porque estava mil furos acima de semelhante criatura chorótica, esgrovinhada, incapaz de lhe seguir os passos, sobretudo na vida nova  que a fortuna le proporcionara.

Com a breca, dispor de centenas de contos e estar de mãos e pés atados,  preso a um ente daqueles!

Lá podia pensar em viajar a Europa com Nicota? Por toda a parte provocaria  riso e chasco, bem merecidos, lá isso era verdade.

Nunca tivera filhos e felizmente. Haviam de ser uns apatetados da força da  mãe.

E de alguns anos a esta parte de continuo achacada; ora disto, ora daquilo outro, umas dores vagas, opressões, faltas de respiração, que a tornavam ainda  mais feia, obrigando-a a esturdias caretas.

Falara, um medico em moléstia do coração adiantada até. Qual! Já havia  disso um bom par de anos, e nada dela arrebentar. Mulher doente, mulher para sempre; o ditado tinha toda a razão. Mil raios!

Depois então das historias do  encilhamento, parecera melhorar, e muito.  Não se queixava, nem mesmo o pouco ou quase nada do costume.

Se, pelo menos, mostrasse ufania e admiração pelo marido! Nada! Incapaz  de qualquer movimento que não tivesse repetido na véspera, anteontem, uma semana, um mês, dez ou quinze anos atrás.

Também ele a socava sem a menor cerimônia em casa e, em todos os tempos, ia lá fora pagodear á grande. Agora não se fartava de ceiatas com francesas bem pandegas e de cabelo pintado de açafrão. E, no dia seguinte das  grossas patuscadas, encontrava sempre a mesma fisionomia, fria, impassível, sem a menor alteração.

Deveras atacava-lhes os nervos.

Ah! se a tal moléstia  de coração pudesse estar caminhando! Quem sabe? Qual! Ás vezes lhe perguntava com ar de interesse: “Então, Nicota, aquelas dores?”  “Estou bem mió, respondia ela a arrastar a voz esganiçada e chorosa. Nunca mais tive nada!”

Ele viuvo, que vidão! Tudo se havia de transformar, desligado daquela pesada poita. Montara casa rica, cheia de trastes dourados e numerosas criadagem, alguns até franceses. E não é que a Nicota se levantava quase de madrugada, como  nos tempos de amanuense da secretaria de policia, em que tinha de ir acender fogo e preparar café?

Que estúpida, afinal!

E não ter animo de largá-la de vez n’algum pasto de Minas ou Goiás! Não se tinha em conta de nenhum bárbaro, sem piedade ou canalha refinado. E que dirão  depois?

Só mesmo a morte. Nem podia tardar; tinha ela vivido quanto bastava.  Estevão casados, já uns 16 anos. Na tal festa da roça (maldita festa, sua desgraça) contava 20 feitos. Ora, 20 com 16, são 36; a sua idade, dele, vejam só. Que loucura,  que asneira aquele casamento! Nem um vintém de dote, nem olhos, nem cintura,  nada, nada, um pão seco! E isso era a mulher de um capitalista!

Por esse tempo sofreu Amaro Esteves um desgosto não pequeno; a noticia  da morte, em Caxambu, do Pantaleão, seu bom amigo de pagodeiras. O homem, sem saber, padecia do coração; foi ás águas, abusou delas e bumba! Botou-se de repente para o outro mundo! Ora, o Pantaleão, tão belo, moço, alegre e divertido,  morrer assim aos 32 anos, quando tinha tanto que gozar nesta vida!

Mas que perigo as tais águas! Qualquer cousa nos pulmões ou coração e toca a fugir. Nada de facilitar. Custa, ás vezes, tão pouco revirar de uma feita os  olhos!

Por esse tempo, começara também o nosso Amaro o namoro com a  baronesa da Silva Velho, no lírico; uma viuva quase quarentona, toda faceira, um  peixão em todo o caso. Chegarão as cousas a dar na vista de todos. “Ah, Sr. Manga não, lhe dissera o Santos Alves, o corretor, lembre-se de que é casado. “Diabo, Ter de lembrar-se logo disso!


Um pobre coitado, um pé rapado poucos anos antes, metido agora em  derriço, escandaloso com uma senhora do   high-life, uma titular! Tivesse a sua liberdade e jogava-se a seus pés, pedindo-lhe humildemente a mão de esposa. 

Mas o inferno de Nicota! Que trambolho...

Não, aquilo, não podia continuar assim, indefinidamente, até o demo dar com o basta!

E a idéia de Caxambu não o deixava um instante, não lhe saia mais da  cabeça, á toda a hora do dia e da noite, principalmente á noite, lá pela madrugada,  durante longas insônias.

Foi afinal consultar o Dr.Maria Meireles, um medico formado de fresco, seu vizinho, muito mocinho; indagou se uma estação de Caxambu não conviria á mulher.  Mostrava pouco apetite, supunha-a doente do estômago e fígado. Caxambu? Ótimo, excelente!  ão podia haver cousa melhor. 

Ai, meio conturbado, falou em pontadas do coração, receios de estar esse  órgão afetado.

Então convinha examinar, auscultar. Mas não, coração que dói é como cão que ladra. Ligavam-se os incômodos uns aos outros, e Caxambu daria conta de  tudo. Pagou generosamente e saio da consulta todo alegre, exultante quase. Estava salva a sua responsabilidade. Cobria-o a autoridade daquele profissional, que tinha obrigação de saber o seu oficio. Quanto a ele, nada ocultara; fôra até bem claro, pusera os pontos nos ii. Podia lavar as mãos pelo que desse e viesse.

Chegou a se ter em conta de marido exemplar. Afinal, buscava solicito a   saúde da mulher, sua companheira de tantos anos. Com certeza, Caxambu lhe faria  um bem enorme.

E a pensar em tudo isso, na mais singular amalgama, em que via combinada a vantagem de ambos, divisava futuro todo cor de rosa.

Aliás, com a breca, ainda quando a opinião do Dr. Meireles não o desculpasse bastante aos proprios olhos, absolviam-no plenamente as teorias modernas. Tinha o direito, como homem de resolução, de quebrar com coragem os  obstáculos que lhe impediam os passos.

Parafusou, parafusou e, afinal, partiu com a mulher para Caxambu.

E não é que as águas começaram a fazer sensível beneficio á Nicota?  Chegou até a engordar, fato que nunca lhe sucedera. Bom, a ele, é que as cousa saião ás avessas. Viera para um fim e o contrario é que se dava. Forte caipora!

E nos seus íntimos frenesins sentia ímpetos de esganar a mulher, ao vê-la dormir com os beiços cada vez mais bico de chocolateira. Que cara, que pele  amarelada e por cima ainda cheia de sardas! Metia nojo.

Não havia remédio; era resignar-se. Tinha que carregar aquela cruz até ao ultimo dia da vida, seu destino.

Certo dia, porém, á mesa do jantar, Nicota ergueu-se de repente, levou a mão ao peito, soltou um grito abafado de angustia e tombou no chão, redondamente morta.

Causou o caso no hotel imenso alarma, correrias, quedas, desmaios, um horror!

Desfez-se ele num pranto sem fim, consolado pelos amigos de ocasião.  “Tivesse paciência, a sorte de todos, D. Nicota fôra feliz até na morte.” “Com efeito,  mas era tão boa, companheira de tantos anos, assim de repente, agravante á sua dor.” E mais isto e mais aquilo.

E, não cessou de chorar e lamentar-se, ora mui leal e convencidamente, ora por simples comedia, até á volta do cemitério de Baependi, pois nesse tempo Caxambu não possuía ainda terreno para enterrar os seus mortos, ou hospedes, ou  moradores do lugar.

Essa volta de Baependi!... A tarde estava tão linda e serena, o céu tão puro  e risonho, a paisagem toda tão grata, iluminada pelos últimos raios do poente em fogo!

Amaro Esteves sentiu-se outro, o peito desafogado e dos lábios entreabertos deixou escapar expressivo e misterioso Enfim!

E sorrio-se ao recordar-se da baronesa da Silva Velho. Fala-ia viscondessa, não havia dúvida.

Recolheu-se, ao chegar, a um aposento qualquer, deitou-se cedo e dormiu largo e tranquilo sono.

De madrugada acordou assombrado, tiritando de horror.

Clamor imenso, sem nome, indizível, enchia aquele quartinho de hotel; mil clarins de Jericó, trompas infernais, repercussões medonhas, ecos terríficos, tudo dominado por uma voz pungente, um uivo de suprema agonia a bradar: Assassino! Assassino! Assassino!

Gélido suor inundou-lhe o corpo todo e os cabelos se lhe eriçaram no alto da cabeça... 

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Nota:
Visconde de Taunay: "Ao Entardecer" (1901)

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