O ESTORVO
Muito, mas muito, contente sempre
de si e consigo mesmo o Amaro Esteves, sobretudo agora que ganhara, por
bambúrrio, não pouco dinheiro no encilhamento.
Por cima, o prêmio integral de cem contos de reis na loteria da Bahia.
Sim senhor, graças aos
inesperados e meigos sorrisos da sorte, se tornara, nada mais, nada menos, um
capitalista importante.
E rapaz ainda, bonitão, na casa
dos 35, atirado ás mulheres, gostando de roupagens claras, gravatas vermelhas com
alfinetes de grande brilhante, pilhérico, metido a contar anedotas engraçadas,
picarescas.
A maçada era a Nicota, a mulher,
tão franzina, desengonçada, chôchinha, sem
carnes, sempre retraída, muito acaipirada, cousa demais. Também fôra aquele casamento uma bobagem, estopada de marca
maior.
Mocinho, numa festa de roça,
tolamente se embeiçara por ela, então rapariga
sem graça nenhuma, e, quando dera acordo de si, záz, traz, nó cego, estava casado, amarrado
para todo o sempre pelo conjungo de um vigário de aldêa. Que espiga!
Não era, de certo, mazinha a
Nicota, muito acomodada, calada, no fundo nula, absolutamente nula. Dela não vinha nem
bem, nem mal ao mundo. Incapaz de matar
uma mosca. Servira nos tempos de penúria e miséria, quando vegetara nuns empregos
reles, de cacaracá; mas agora que
pretendia fazer figura na sociedade, frequentar teatros, concertos e bailes,
receber e dar jantares, como se avir com semelhante pamonha?
Nada lhe assentava no corpo mal
ajorcado, sem ondulações nem quadris. Não
havia chapéu que lhe quadrasse, e por mais jóias que pusesse ficava até pior.
Metia-lhe deveras vergonha, ela
ao seu braço pela rua do Ouvidor afora.
Não sabia nem sequer aproveitar o
cabelo que tinha comprido e abundante. Penteava-o
á china, puxando-o todo para traz e deixando a testa de bater roupa, com uma cara muito feia, rechupada, faces
encovadas, olhos empapuçados, beiços escados em ponta, como bico de
chocolateira.
Por mais que lhe dissesse:
“arranje-se melhor, Nicota; veja fulana, veja sicrana”, não adiantava um passo, nem cousa
alguma conseguia.
Tinha por vezes vontade de lhe
empurrar a mão, dar-lhe pancada e até cabo da pele, vê-la morta, metida no caixão e
enterrada. Que alivio! Com mil bombas, aquilo
não era mulher para ele!
Ah! Fosse casado com alguma desempenada,
que vida, que figurão! Alguém que o
compreendesse e estivesse na altura da posição conquistada, ele que pretendia
agora abrir os seus salões, mandar até comprar um titulo em Portugal.
Vejam, porém, só a Nicota
baronesa ou viscondessa; ninguém a tomaria a sério, ninguém; um varapau de
saias, sem expressão, sem vida, nem peixe, nem carne. E a abrir a boca, era
logo um xurrilho de asneiras “muié, havera, promóde, teia, panhou, rancou”. Mal sabia ler e
escrever.
Aquilo nunca se havia de
desemburrar, escusado!
Só prestava para pregar botões ás
camisas e ceroulas e coser na máquina, assim
mesmo tão vagarosa, desconsolada sempre, á mercê do marido, numa pasmaceira enorme, desfibrada, atônica,
inerte, atenta só á limpeza da casa, que trazia como um brinco.
Que maçada, que peso, a tal
Nicota! Se ela pudesse esticar a canela, morrer de uma boa vez!... Não faria
nada por isso, porque afinal não era nenhum criminoso, desalmado e assassino. Só se a natureza se
lembrasse de libertá-lo daquela lesma. E
devia merecer esse favor, porque estava mil furos acima de semelhante criatura chorótica,
esgrovinhada, incapaz de lhe seguir os passos, sobretudo na vida nova que a fortuna le proporcionara.
Com a breca, dispor de centenas
de contos e estar de mãos e pés atados, preso
a um ente daqueles!
Lá podia pensar em viajar a
Europa com Nicota? Por toda a parte provocaria riso e chasco, bem merecidos, lá isso era
verdade.
Nunca tivera filhos e felizmente.
Haviam de ser uns apatetados da força da mãe.
E de alguns anos a esta parte de
continuo achacada; ora disto, ora daquilo outro, umas dores vagas, opressões,
faltas de respiração, que a tornavam ainda mais feia, obrigando-a a esturdias caretas.
Falara, um medico em moléstia do
coração adiantada até. Qual! Já havia disso
um bom par de anos, e nada dela arrebentar. Mulher doente, mulher para sempre;
o ditado tinha toda a razão. Mil raios!
Depois então das historias do encilhamento, parecera melhorar, e
muito. Não se queixava, nem mesmo o
pouco ou quase nada do costume.
Se, pelo menos, mostrasse ufania
e admiração pelo marido! Nada! Incapaz de
qualquer movimento que não tivesse repetido na véspera, anteontem, uma semana,
um mês, dez ou quinze anos atrás.
Também ele a socava sem a menor cerimônia
em casa e, em todos os tempos, ia lá fora pagodear á grande. Agora não se
fartava de ceiatas com francesas bem pandegas e de cabelo pintado de açafrão.
E, no dia seguinte das grossas
patuscadas, encontrava sempre a mesma fisionomia, fria, impassível, sem a menor
alteração.
Deveras atacava-lhes os nervos.
Ah! se a tal moléstia de coração pudesse estar caminhando! Quem
sabe? Qual! Ás vezes lhe perguntava com
ar de interesse: “Então, Nicota, aquelas dores?” “Estou bem mió, respondia ela a arrastar a voz
esganiçada e chorosa. Nunca mais tive nada!”
Ele viuvo, que vidão! Tudo se
havia de transformar, desligado daquela pesada poita. Montara casa rica, cheia
de trastes dourados e numerosas criadagem, alguns até franceses. E não é que a
Nicota se levantava quase de madrugada, como nos tempos de amanuense da secretaria de
policia, em que tinha de ir acender fogo e preparar café?
Que estúpida, afinal!
E não ter animo de largá-la de
vez n’algum pasto de Minas ou Goiás! Não se tinha em conta de nenhum bárbaro,
sem piedade ou canalha refinado. E que dirão depois?
Só mesmo a morte. Nem podia
tardar; tinha ela vivido quanto bastava. Estevão casados, já uns 16 anos. Na tal festa
da roça (maldita festa, sua desgraça) contava 20 feitos. Ora, 20 com 16, são
36; a sua idade, dele, vejam só. Que loucura, que asneira aquele casamento! Nem um vintém de
dote, nem olhos, nem cintura, nada,
nada, um pão seco! E isso era a mulher de um capitalista!
Por esse tempo sofreu Amaro
Esteves um desgosto não pequeno; a noticia da morte, em Caxambu, do Pantaleão, seu bom
amigo de pagodeiras. O homem, sem saber, padecia do coração; foi ás águas,
abusou delas e bumba! Botou-se de repente para o outro mundo! Ora, o Pantaleão,
tão belo, moço, alegre e divertido, morrer
assim aos 32 anos, quando tinha tanto que gozar nesta vida!
Mas que perigo as tais águas!
Qualquer cousa nos pulmões ou coração e toca a fugir. Nada de facilitar. Custa,
ás vezes, tão pouco revirar de uma feita os olhos!
Por esse tempo, começara também o
nosso Amaro o namoro com a baronesa da
Silva Velho, no lírico; uma viuva quase quarentona, toda faceira, um peixão em todo o caso. Chegarão as cousas a
dar na vista de todos. “Ah, Sr. Manga não, lhe dissera o Santos Alves, o
corretor, lembre-se de que é casado. “Diabo, Ter de lembrar-se logo disso!
Um pobre coitado, um pé rapado
poucos anos antes, metido agora em derriço,
escandaloso com uma senhora do high-life,
uma titular! Tivesse a sua liberdade e jogava-se a seus pés, pedindo-lhe
humildemente a mão de esposa.
Mas o inferno de Nicota! Que
trambolho...
Não, aquilo, não podia continuar
assim, indefinidamente, até o demo dar com o basta!
E a idéia de Caxambu não o
deixava um instante, não lhe saia mais da cabeça, á toda a hora do dia e da noite,
principalmente á noite, lá pela madrugada, durante longas insônias.
Foi afinal consultar o Dr.Maria
Meireles, um medico formado de fresco, seu vizinho, muito mocinho; indagou se
uma estação de Caxambu não conviria á mulher. Mostrava pouco apetite, supunha-a doente do
estômago e fígado. Caxambu? Ótimo, excelente! ão podia haver cousa melhor.
Ai, meio conturbado, falou em
pontadas do coração, receios de estar esse órgão afetado.
Então convinha examinar,
auscultar. Mas não, coração que dói é como cão que ladra. Ligavam-se os
incômodos uns aos outros, e Caxambu daria conta de tudo. Pagou generosamente e saio da consulta
todo alegre, exultante quase. Estava salva a sua responsabilidade. Cobria-o a
autoridade daquele profissional, que tinha obrigação de saber o seu oficio.
Quanto a ele, nada ocultara; fôra até bem claro, pusera os pontos nos ii. Podia
lavar as mãos pelo que desse e viesse.
Chegou a se ter em conta de
marido exemplar. Afinal, buscava solicito a
saúde da mulher, sua companheira
de tantos anos. Com certeza, Caxambu lhe faria um bem enorme.
E a pensar em tudo isso, na mais
singular amalgama, em que via combinada a vantagem de ambos, divisava futuro
todo cor de rosa.
Aliás, com a breca, ainda quando
a opinião do Dr. Meireles não o desculpasse bastante aos proprios olhos,
absolviam-no plenamente as teorias modernas. Tinha o direito, como homem de
resolução, de quebrar com coragem os obstáculos
que lhe impediam os passos.
Parafusou, parafusou e, afinal,
partiu com a mulher para Caxambu.
E não é que as águas começaram a
fazer sensível beneficio á Nicota? Chegou
até a engordar, fato que nunca lhe sucedera. Bom, a ele, é que as cousa saião
ás avessas. Viera para um fim e o contrario é que se dava. Forte caipora!
E nos seus íntimos frenesins
sentia ímpetos de esganar a mulher, ao vê-la dormir com os beiços cada vez mais
bico de chocolateira. Que cara, que pele amarelada e por cima ainda cheia de sardas!
Metia nojo.
Não havia remédio; era
resignar-se. Tinha que carregar aquela cruz até ao ultimo dia da vida, seu
destino.
Certo dia, porém, á mesa do
jantar, Nicota ergueu-se de repente, levou a mão ao peito, soltou um grito
abafado de angustia e tombou no chão, redondamente morta.
Causou o caso no hotel imenso
alarma, correrias, quedas, desmaios, um horror!
Desfez-se ele num pranto sem fim,
consolado pelos amigos de ocasião. “Tivesse
paciência, a sorte de todos, D. Nicota fôra feliz até na morte.” “Com efeito, mas era tão boa, companheira de tantos anos,
assim de repente, agravante á sua dor.” E mais isto e mais aquilo.
E, não cessou de chorar e
lamentar-se, ora mui leal e convencidamente, ora por simples comedia, até á
volta do cemitério de Baependi, pois nesse tempo Caxambu não possuía ainda
terreno para enterrar os seus mortos, ou hospedes, ou moradores do lugar.
Essa volta de Baependi!... A
tarde estava tão linda e serena, o céu tão puro e risonho, a paisagem toda tão grata,
iluminada pelos últimos raios do poente em fogo!
Amaro Esteves sentiu-se outro, o
peito desafogado e dos lábios entreabertos deixou escapar expressivo e
misterioso Enfim!
E sorrio-se ao recordar-se da
baronesa da Silva Velho. Fala-ia viscondessa, não havia dúvida.
Recolheu-se, ao chegar, a um
aposento qualquer, deitou-se cedo e dormiu largo e tranquilo sono.
De madrugada acordou assombrado,
tiritando de horror.
Clamor imenso, sem nome,
indizível, enchia aquele quartinho de hotel; mil clarins de Jericó, trompas
infernais, repercussões medonhas, ecos terríficos, tudo dominado por uma voz
pungente, um uivo de suprema agonia a bradar: Assassino! Assassino! Assassino!
Gélido suor inundou-lhe o corpo
todo e os cabelos se lhe eriçaram no alto da cabeça...
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Nota:
Visconde de Taunay: "Ao Entardecer" (1901)
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Nota:
Visconde de Taunay: "Ao Entardecer" (1901)
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