sábado, 24 de agosto de 2013

João Simões Lopes Neto: "Penar de Velho"

PENAR DE VELHO

— Conheci, sim, sr., o Binga Cruz, desde assinzinho...

Guri levado da casqueira!. .

E teve um fim que nunca se soube... Pobrezinho... Andaria nos doze anos. Filho único.

O  pai  dele,  o  velho,  recebeu  de  regalo  um  bagual  picaço  sãozito  das  quatro  patas,  sem  uma basteira; e de rédea, um pensamento. E era mesmo para o andar dele.

Pois, amigo, se lhe conto!. .

Um  dia,  dezembro,  sol  de  rachar,  com  trovoada  armada,  andara  o  guri  ninhando  numas restingas que havia sobre o fundo da roça, por detrás das casas. O chapéu estava já abarrotado de ovos  de  tico-tico,  de  alma-de-gato,  de  corruíras,  canarinhos,  sabiás...;  era  um  entrevero  bonito  de cores e feitios diferentes.

De  calcita  arregaçada,  mui  espinhado  nas  canelas  e  nos  braços,  o  rosto  vermelho  e  a  cabeça ardendo, o diabinho ainda gateava um ninho de tesouras, quando, do outro lado da cerca, ouviu o assobio das avestruzes, pastando.

Ouviu, e fura daqui, fura dali, varou a cerca para dar fé, bem à sua vontade.

Entre  a  roça  e  um  braço  de  banhado,  que  havia,  formava-se  uma  rinconada  mui  boa  para volteada: e foi nisso que o guri pensou. As avestruzes seriam umas oito e uma tropilha de filhotes, já emplumaditos.

Não se conteve, o miúdo: pulou para o lado de fora, perto da bandada, e já correu sobre ela, de braços  abertos,  aos  pulos,  aos  gritos:  os  bichos  se  arrolharam,  assustados,  mas  logo  o  macho  do bando ponteou para o rincão e tudo acompanhou.

Era o que o guri esperava mesmo; ele queria, de por força, pegar uma, viva; mas só laçando...

Foi quando lhe coriscou na idéia bancar-se no bagual picaço, do velho...

Se estava tão delgado e lindo.., aquilo seria só amagar o corpo, chupar no beiço e rebolear o laço... Nem era tento! Num — vá! — era avestruz a cabresto!

E correndo para o galpão, enfrenou o pingo, atirou-lhe um pelego no lombo, passou a mão no seu lacito e se foi a arriba!

Espiou  para  os  lados  e  mui  de  manso,  a  passo,  saiu,  sobre  a  cacimba,  a  encobrir-se  numa reboleira de chorões, que fazia uma sombra fresca, onde as galinhas se rebolcavam, arrepiando as penas, assoleadas.

Mas tudo isto levou seu tempo, de maneira que quando ele chegou ao rincão já as avestruzes haviam-se atirado no banhado e bandeado; apenas, por descuidada ou mais esfomeada, apenas uma se deixou ficar e agora não atinava com a passagem, e quando o Binga, gineteando, deu em cima dela, então é que o bicho ficou mesmo atarantado, e começou a gambetear zonzo, na enrascada.

O  guri se esqueceu do mundo!

Tocava o picaço em cima do nhandu e atirava o laço… o bicho negaceava, e o laçador errava o tiro... E vá outro, e outro... mas errando sempre, só de apurado!

Mas nisto o nhandu deu com a boca do rincão, viu o campo largo, e fazendo umas gambetas fortes, esparramando as asas, por fim aprumou o corpo e cravou a unha, num trotão galopeado, de comer quadras!...

Mas o rapazinho estava encanzinado: levantou o picaço no freio e bateu de trás!

Amigo!  Que  disparada!  Por  tacuruzais  e  buracama  de  tuco-tuco,  por  cima  das  panelas  de caranguejo, por lançantes de coxilhas e moles das canhadas, salvando sangas e arrancando no barral das lagoas, tudo era várzea lisa para aquela alminha de gaúcho!

Despistada  pela  perseguição,  a  avestruz  corria  à  toa.  Corria.  Depois  foi  mermando;  e  foi afrouxando, até que se enredou numas macegas e caiu numa cova de touro. E conforme caiu, já o guri estava-lhe em cima, atracado com ela, passando-lhe o laço, maneando-a, vencedor, afinal!

E respirou, aliviado; olhou o campo, silencioso, viu a casa lá longe, branqueando no verde do arvoredo.

Como diabo ia ele levar a caça, aquela?... E quando estava botando as suas contas, o nhandu deu em patear, a se revirar todo e mal apanhou livre uma perna, priscou e se foi a la cria, deixando o caçador no ora-veja!...

Aí o Binga fez um jeito de choro de raiva, e mui desconsolado montou de novamente.

E voltou para casa, a passo, porque o picaço vinha meio estaqueado, de quartos duros.

Com mil cuidados, aproveitando ainda a hora da sesta tornou a meter o flete no galpão e mui concho da sua vida foi para dentro, pedir à mãe — uma santa senhora, aquela dona! — pedir uma tigela de coalhada, pra refrescar.

Na manhã seguinte o picaço apareceu esticado na estrebaria: derreteu a graxa dos rins; morreu arreganhado.

O  velho  ficou  buzina!...  Quem  foi,  quem  não  foi. .;  afinal  o  próprio  Binga,  meio  de  orelha murcha mas decidido, relatou a criançada, tintim por tintim.

Aí o velho andou mal… ali no mais, à vista da peonada, quis sovar o filho… e quando o guri viu o rabo-de-tatu no ar... quebrou o corpo, disparou e de vereda encarapitou-se num matungo que estava de piquete, encilhado, e abriu campo fora, sem rumo certo, ao deus-dará... Debalde o velho gritou-lhe — Pára aí, menino! Pára aí, menino!

Qual! No peito do gauchinho não cabia a vergonha daquele guascaço do rabo-de-tatu, que caía-lhe em cima, se ele não foge...

A sia-dona não viu nada deste passo; andava lá pra dentro, nos seus arranjos.

Passou o tempo.

Nunca mais houve notícias do menino.

Campeou-se pelo vizindário, saíram chasques a vários rumos e... nada!

O velho foi descuidando das lavouras; já não ia ao rodeio nem montava a cavalo; nas marcações ficava na porteira da mangueira, calado; pitava muito e passava os dias passeando na quinta, na rua das laranjeiras, de chapéu nos olhos e de mãos atrás das costas.

A peonada já nem podia arranhar nas violas, porque o velho se enquizilava e mandava logo um piazito dizer lá fora que não queria bochinchadas em casa.

Outras vezes dava-lhe para arranjar alguma trança prendia a lonca e começava a tirar os tentos... e  de  repente  parava,  suspirava…  e  torcia  a  mão,  cortando  ou  fazendo  entradas  no  couro,  e  afinal picava tudo e não fazia nada, nem um botão, nem um passador qualquer, de cacaracá...

Ou  ficava  horas  e  horas,  com  os  olhos  perdidos  naqueles  descampados...  olhando,  olhando sempre,  mas  sem  ver  nada...  nem  as  pontas  de  gado  nem  os  mesmos  andantes,  que  às  vezes chegavam, pedindo pousada...

A velhita, essa, então, dava lástima a gente se fixar nela...

Não  se  riu,  nunca  mais,  aquela  senhora-dona.  Chorar  eu  não  vi:  mas  devia  de  chorar  muito, porque quando vinha pra mesa servir os hospes, trazia sempre os olhos vermelhos e algo inchados.

Ajuntou num canto da sala todas as cousas do Binga; os aperos, o laço: umas tamanquinhas já gastas; um carretão de brinquedos, enfiadas de ovos, uma chuspa cheia de pelotas de barro, argolas e ossinhos de mocotós; enfim não sei quantas mais bobages de criança.., mas que tocavam no coração quando  a  gente  pensava  que  o  doninho  andava  por  esse  mundo,  de  gaudério  e  teatino...  como cachorro chimarrão, comendo de esmola algum soquete ordinário e tinindo de frio, sem ao menos um bichará esburacado...

E sempre buenaça; mal chegava um andante, mandava logo um piá levar-lhe um mate, e ainda, à noite, água para os pés; e de manhã, quando a gente ia agradecer a pousada, lá vinha um naco de queijo ou meia vara de lingüiça, para fiambre, e outro amargo, pra o estribo...

Quem sabia do caso até nem falava nele… era tão penaroso o sofrer daqueles velhos, que não diziam nada, que a gente entendia tudo...

E não havia hospe que tivesse comido daquela mesa ou dormido naquele teto, que não desejasse ser ele que pudesse um dia topar o guri desguaritado e trazê-lo, para o colo que esperava sempre e que rezava sempre ao Nosso Senhor Jesus-Cristo, que, sendo Deus, morreu perto da sua mãe...

A velhita finou-se primeiro, e de pura pena foi por certo.

O vizindário em peso acudiu ao velório; o enterro se fez na vila.

Pois desde a estância até o cemitério — umas quantas léguas — o caixão veio sempre à mão. Mas não pesava nada. Também — pobrezinha! — que pecados podia ela ter?...

E quando foi a hora de o corpo cair na cova, que cada um atirou um punhado de terra, e que as crianças quase todas suas afilhadas — e as mulheres desataram num pranto de choro e até o coveiro se entreparou atristado, aí vi mais de um gaúcho colmilhudo manoteando nas lágrimas que dos olhos lhes caíam, grandes e claras, como as gotas d’água que caem do cartucho dos caetés...

Meses depois o velho seguiu o mesmo caminho de nós todos; mas antes de morrer, engambelado por um padre gringo que apareceu aqui pelos pagos, lá fez uns papéis… e papéis foram que tudo o que era dele passou para missas e outros engrólios que ninguém sabia o que eram. Nem um tambeiro saiu para um afilhado!…

Os parentes meteram demanda… foi um arranca-rabo que durou anos...

E enquanto isso... vancê sabe o que é casa sem dono!...

O Binga... quem sabe lá. o que foi feito dele, por esse mundo de Deus, tão grande!...

Cuê-pucha!... Eu desejava que ele aparecesse, só por causa do padre gringo!... Que sumanta o guri lhe não havia de encostar!...

E... por Deus e um patacão!... Eu dava as guascas e ainda ajudava a atar!...

Ora se não!...


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Nota:
João Simões Lopes Neto: "Contos Gauchescos" (1912) 

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