PENAR DE VELHO
— Conheci, sim, sr., o Binga
Cruz, desde assinzinho...
Guri levado da casqueira!. .
E teve um fim que nunca se
soube... Pobrezinho... Andaria nos doze anos. Filho único.
O
pai dele, o
velho, recebeu de
regalo um bagual
picaço sãozito das
quatro patas, sem
uma basteira; e de rédea, um pensamento. E era mesmo para o andar dele.
Pois, amigo, se lhe conto!. .
Um dia,
dezembro, sol de
rachar, com trovoada
armada, andara o
guri ninhando numas restingas que havia sobre o fundo da
roça, por detrás das casas. O chapéu estava já abarrotado de ovos de
tico-tico, de alma-de-gato,
de corruíras, canarinhos,
sabiás...; era um
entrevero bonito de cores e feitios diferentes.
De calcita
arregaçada, mui espinhado
nas canelas e
nos braços, o
rosto vermelho e
a cabeça ardendo, o diabinho
ainda gateava um ninho de tesouras, quando, do outro lado da cerca, ouviu o
assobio das avestruzes, pastando.
Ouviu, e fura daqui, fura dali,
varou a cerca para dar fé, bem à sua vontade.
Entre a
roça e um
braço de banhado,
que havia, formava-se
uma rinconada mui
boa para volteada: e foi nisso
que o guri pensou. As avestruzes seriam umas oito e uma tropilha de filhotes,
já emplumaditos.
Não se conteve, o miúdo: pulou para
o lado de fora, perto da bandada, e já correu sobre ela, de braços abertos,
aos pulos, aos
gritos: os bichos
se arrolharam, assustados,
mas logo o
macho do bando ponteou para o
rincão e tudo acompanhou.
Era o que o guri esperava mesmo;
ele queria, de por força, pegar uma, viva; mas só laçando...
Foi quando lhe coriscou na idéia
bancar-se no bagual picaço, do velho...
Se estava tão delgado e lindo..,
aquilo seria só amagar o corpo, chupar no beiço e rebolear o laço... Nem era
tento! Num — vá! — era avestruz a cabresto!
E correndo para o galpão,
enfrenou o pingo, atirou-lhe um pelego no lombo, passou a mão no seu lacito e
se foi a arriba!
Espiou para
os lados e
mui de manso,
a passo, saiu,
sobre a cacimba,
a encobrir-se numa reboleira de chorões, que fazia uma
sombra fresca, onde as galinhas se rebolcavam, arrepiando as penas, assoleadas.
Mas tudo isto levou seu tempo, de
maneira que quando ele chegou ao rincão já as avestruzes haviam-se atirado no
banhado e bandeado; apenas, por descuidada ou mais esfomeada, apenas uma se
deixou ficar e agora não atinava com a passagem, e quando o Binga, gineteando,
deu em cima dela, então é que o bicho ficou mesmo atarantado, e começou a
gambetear zonzo, na enrascada.
O
guri se esqueceu do mundo!
Tocava o picaço em cima do nhandu
e atirava o laço… o bicho negaceava, e o laçador errava o tiro... E vá outro, e
outro... mas errando sempre, só de apurado!
Mas nisto o nhandu deu com a boca
do rincão, viu o campo largo, e fazendo umas gambetas fortes, esparramando as
asas, por fim aprumou o corpo e cravou a unha, num trotão galopeado, de comer
quadras!...
Mas o rapazinho estava
encanzinado: levantou o picaço no freio e bateu de trás!
Amigo! Que
disparada! Por tacuruzais
e buracama de
tuco-tuco, por cima
das panelas de caranguejo, por lançantes de coxilhas e
moles das canhadas, salvando sangas e arrancando no barral das lagoas, tudo era
várzea lisa para aquela alminha de gaúcho!
Despistada pela
perseguição, a avestruz
corria à toa.
Corria. Depois foi
mermando; e foi afrouxando, até que se enredou numas
macegas e caiu numa cova de touro. E conforme caiu, já o guri estava-lhe em
cima, atracado com ela, passando-lhe o laço, maneando-a, vencedor, afinal!
E respirou, aliviado; olhou o
campo, silencioso, viu a casa lá longe, branqueando no verde do arvoredo.
Como diabo ia ele levar a caça,
aquela?... E quando estava botando as suas contas, o nhandu deu em patear, a se
revirar todo e mal apanhou livre uma perna, priscou e se foi a la cria,
deixando o caçador no ora-veja!...
Aí o Binga fez um jeito de choro
de raiva, e mui desconsolado montou de novamente.
E voltou para casa, a passo,
porque o picaço vinha meio estaqueado, de quartos duros.
Com mil cuidados, aproveitando
ainda a hora da sesta tornou a meter o flete no galpão e mui concho da sua vida
foi para dentro, pedir à mãe — uma santa senhora, aquela dona! — pedir uma
tigela de coalhada, pra refrescar.
Na manhã seguinte o picaço
apareceu esticado na estrebaria: derreteu a graxa dos rins; morreu arreganhado.
O
velho ficou buzina!...
Quem foi, quem
não foi. .; afinal
o próprio Binga,
meio de orelha murcha mas decidido, relatou a
criançada, tintim por tintim.
Aí o velho andou mal… ali no
mais, à vista da peonada, quis sovar o filho… e quando o guri viu o
rabo-de-tatu no ar... quebrou o corpo, disparou e de vereda encarapitou-se num
matungo que estava de piquete, encilhado, e abriu campo fora, sem rumo certo,
ao deus-dará... Debalde o velho gritou-lhe — Pára aí, menino! Pára aí, menino!
Qual! No peito do gauchinho não
cabia a vergonha daquele guascaço do rabo-de-tatu, que caía-lhe em cima, se ele
não foge...
A sia-dona não viu nada deste
passo; andava lá pra dentro, nos seus arranjos.
Passou o tempo.
Nunca mais houve notícias do
menino.
Campeou-se pelo vizindário,
saíram chasques a vários rumos e... nada!
O velho foi descuidando das
lavouras; já não ia ao rodeio nem montava a cavalo; nas marcações ficava na
porteira da mangueira, calado; pitava muito e passava os dias passeando na
quinta, na rua das laranjeiras, de chapéu nos olhos e de mãos atrás das costas.
A peonada já nem podia arranhar
nas violas, porque o velho se enquizilava e mandava logo um piazito dizer lá
fora que não queria bochinchadas em casa.
Outras vezes dava-lhe para
arranjar alguma trança prendia a lonca e começava a tirar os tentos... e de
repente parava, suspirava…
e torcia a
mão, cortando ou
fazendo entradas no
couro, e afinal picava tudo e não fazia nada, nem um
botão, nem um passador qualquer, de cacaracá...
Ou ficava
horas e horas,
com os olhos
perdidos naqueles descampados... olhando,
olhando sempre, mas sem
ver nada... nem
as pontas de
gado nem os
mesmos andantes, que
às vezes chegavam, pedindo
pousada...
A velhita, essa, então, dava
lástima a gente se fixar nela...
Não se
riu, nunca mais,
aquela senhora-dona. Chorar
eu não vi:
mas devia de
chorar muito, porque quando vinha
pra mesa servir os hospes, trazia sempre os olhos vermelhos e algo inchados.
Ajuntou num canto da sala todas
as cousas do Binga; os aperos, o laço: umas tamanquinhas já gastas; um carretão
de brinquedos, enfiadas de ovos, uma chuspa cheia de pelotas de barro, argolas
e ossinhos de mocotós; enfim não sei quantas mais bobages de criança.., mas que
tocavam no coração quando a gente
pensava que o
doninho andava por
esse mundo, de
gaudério e teatino...
como cachorro chimarrão, comendo de esmola algum soquete ordinário e
tinindo de frio, sem ao menos um bichará esburacado...
E sempre buenaça; mal chegava um
andante, mandava logo um piá levar-lhe um mate, e ainda, à noite, água para os
pés; e de manhã, quando a gente ia agradecer a pousada, lá vinha um naco de
queijo ou meia vara de lingüiça, para fiambre, e outro amargo, pra o estribo...
Quem sabia do caso até nem falava
nele… era tão penaroso o sofrer daqueles velhos, que não diziam nada, que a
gente entendia tudo...
E não havia hospe que tivesse comido
daquela mesa ou dormido naquele teto, que não desejasse ser ele que pudesse um
dia topar o guri desguaritado e trazê-lo, para o colo que esperava sempre e que
rezava sempre ao Nosso Senhor Jesus-Cristo, que, sendo Deus, morreu perto da
sua mãe...
A velhita finou-se primeiro, e de
pura pena foi por certo.
O vizindário em peso acudiu ao
velório; o enterro se fez na vila.
Pois desde a estância até o
cemitério — umas quantas léguas — o caixão veio sempre à mão. Mas não pesava
nada. Também — pobrezinha! — que pecados podia ela ter?...
E quando foi a hora de o corpo
cair na cova, que cada um atirou um punhado de terra, e que as crianças quase
todas suas afilhadas — e as mulheres desataram num pranto de choro e até o
coveiro se entreparou atristado, aí vi mais de um gaúcho colmilhudo manoteando
nas lágrimas que dos olhos lhes caíam, grandes e claras, como as gotas d’água
que caem do cartucho dos caetés...
Meses depois o velho seguiu o
mesmo caminho de nós todos; mas antes de morrer, engambelado por um padre
gringo que apareceu aqui pelos pagos, lá fez uns papéis… e papéis foram que
tudo o que era dele passou para missas e outros engrólios que ninguém sabia o
que eram. Nem um tambeiro saiu para um afilhado!…
Os parentes meteram demanda… foi
um arranca-rabo que durou anos...
E enquanto isso... vancê sabe o
que é casa sem dono!...
O Binga... quem sabe lá. o que
foi feito dele, por esse mundo de Deus, tão grande!...
Cuê-pucha!... Eu desejava que ele
aparecesse, só por causa do padre gringo!... Que sumanta o guri lhe não havia
de encostar!...
E... por Deus e um patacão!... Eu
dava as guascas e ainda ajudava a atar!...
Ora se não!...
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Nota:
João Simões Lopes Neto: "Contos Gauchescos" (1912)
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Nota:
João Simões Lopes Neto: "Contos Gauchescos" (1912)
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