JUCA GUERRA
— Vancê leu ontem no jornal
aquele caso do sujeito que atirou-se à água da beira da praia para salvar
um fulano que
estava-se afogando... quando
no aperto chegou
um boteiro que
levantou os dois… não foi assim?... E o tal ainda ganhou
uma medalha do governo, pela grande áfrica!...
‘Stá direito,
não digo que
não, que afinal
ele ao menos
sempre se lembrou
de acudir a uma criatura de Deus; mas, lá quanto à nombrada,
hum!... nem por isso!
Olhe, mais, então, merecia o
Juquinha Guerra.
Eu conto, conto; vá assuntando.
O
Juca Guerra foi
muito meu conhecido,
desde guri. Já
morreu, coitado, e
morreu numa tristura…
Veja vancê!... Um gaúcho
daqueles... destorcido, bonzão!...
Aquilo, era pra
ficar na coxilha, picado
de espada, rachado de lançaços, mas
não pra morrer como foi,
aperreado em cima da cama,
o corpo besuntado
de unturas e
a garganta entupida
de melados e pozinhos dos doutores!…
Pobre de mim!... ‘stou vendo que
hei de morrer do mesmo jeito, como um pisa-flores da cidade, como bicho de
galinheiro!.
Moreno, alto, delgado; olho
preto; nariz, de homem mandador; mãos e pés de moça; tinha força como quatro;
bailarino, alegre, campeiraço; e o coração devia ser-lhe mui grande, devia
encher-me o peito todo, de bom que era.
Dessa feita houve rodeio na
estância do Pavão; a estância era na costa de dois rios; e tem muitos albardões
com mato, que eram a querência da gadaria xucra. Mas, pra chegar lá, havia que
atravessar um santafezal cerrado, tiririca, atoleiros, juncais; um banhado
brabo; lá dentro é que a gadaria alçada vivia misturada com os galheiros e os
capinchos e os ratões.
A gritos, a tiro e a cachorro
tinha-se conseguido tocar como umas pra mais de três mil reses.
Nem lhe falo nas cousas
divertidas do serviço, como rodadas, algum matungo riscado de aspa de brasino,
as compadradas da peonada e outras que sempre alegram um campeiro.
E mal que cerrou o rodeio a gente
mudou de cavalos, churrasqueou em pé mesmo e começou-se logo a apartar a
tourada. E que torunas! Cada bicho pesado, criado na pura grama vermelha,
ligeiros como gatos, e malevas, de acompanharem o laço, quase cabresteando!...
Pois, foi um destes, que um moço
chamado Tandão Lopes laçou... e laçou mal, de meia espalda: o touro bufou, e
depois do tido já se lhe veio em cima…
O moço estava mui bem montado; o
pingo era de patas, porém apenas rocim, mui cosquilhoso; os arreios já vinham
mal e com o tirão a cincha correu toda pras virilhas...
Virge’ Mãe!...
O bagual agachou-se a velhaquear,
e, pra pior ainda, em volta, enredando-se no laço, frouxo; o moço — ginetaço! —
fechou as chilenas e meneou o rebenque, de chapéu do lado, numa pabulagem
temerária, de guasca que só a Deus, respeita!
Foi nesse
apuro, que o
touro carregou, e
veio, de língua
de fora, berrando
surdo… e entreparado, baixou
a cabeça, retesando
o cogote largo
e ia a
levantar a guampada,
quando, meio maneado no
laço e ladeado
por um sofrenaço
de pulso, o
bagual planchou-se... e
o moço Tandão ficou também aí caído, preso pela
perna, exposto, entregue... O touro recuou um pouco, escarvou, meio dançando,
retesou os lagartos, numa fúria de força e fez a menção...
A campeirada olhava, parada,
vendo a desgraça vir..
Mas nisto, justo, justo quando o
touro, balanceando no ar, pareceu dar o pulo da carga, o Juca
Guerra esteve-lhe em cima! Em
cima!
Foi como o trovão e logo o
raio..., pois como um raio o gaúcho carregou e atirou a montaria contra o
touro!
Oigalê! Pechada macota!
O
tostado arrebentou as
duas paletas na
encontrada e caiu,
sacudindo a cola,
os olhos chispeando, de beiço
enrugado e subido, de dor... Caiu, mas o touro, também.
E
tanto que atirou
o seu pingaço,
de pechada feita
— e certo
de o escangalhar
— contra o touro, escorregou pela garupa, e enquanto
os dois brutos se batiam e enovelavam, o Juca já aliviava o companheiro, que
apenas livre, pulou
para o cupinudo,
ainda meio azonzado
do trompaço, manoteou-lhe nas
aspas e torceu-lhe a cabeça, que cravou no chão, num pronto! O bicho pataleava,
puxando a respiração forte, que ondulava, no arredondado da barriga.
Aqueles, sim, eram dois torenas
que se valiam!
Só então
é que os
vedores acudiram… mas
foi para agüentarem
uma tirana de
sotretas! comedores de carne! maulas! vasilhas! capões!... e outros
rebencaços de língua, desses que a gente esparrama quando está de marca
quente...
E no meio daquele bolo de
campeiros, sobre as macegas pisadas, do lado do touro arquejando e do cavalo
gemente, os dois homens se abraçaram e beijaram-se, chamando-se irmãos; e assim
juntos chegaram-se para o cavalo tostado, quebrado dos encontros... fizeram-lhe
umas festas de puro mimo e tristeza…
e enquanto o
Juca, com a sua própria mão
sangrava o seu confiança, o moço
Tandão abraçava a cabeça inteligente do flete... Correu o sangue, em borbotão;
e quando, esvaido, o tostado afrouxou a força e a respiração e o garbo, e foi
descaindo e ia a tombar, de vez, os lado, ampararam-lhe a cabeça… como se fosse
uma criança dormilona, deitaram-na brandamente sobre os capins, — pro caso —
sobre o pé malmequer branco, ramalhudo, que florejava ali, como num propósito.
Coitado do flete!
Mas como deixá-lo viver, assim,
arrebentado? Para vê-lo morrer de dores, inchado, com fome e com sede... e
antes disso serem-lhe os olhos vazados pelos urubus... e os buracos deles,
ainda vivos, virarem toca das
varejas? ! ...
Não! Um gaúcho
de alma não
abandona assim o seu cavalo:
antes mata-o, como amigo que não emporcalha o seu amigo!
Vancê assuntou bem no conto?
Ora, agora, vamos ao fim; o que
merecia, de prêmio, o Juca Guerra?
Qual o
mais valente? o
tal fulano, da
beira da praia,
ou este da
beira. .. da
morte certa?
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Nota:
João Simões Lopes Neto: "Contos Gauchescos" (1912)
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Nota:
João Simões Lopes Neto: "Contos Gauchescos" (1912)
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