sábado, 31 de agosto de 2013

Antônio de Alcântara Machado: "Tiro de Guerra nº 35"

TIRO DE GUERRA Nº 35

No Grupo Escolar da Barra Funda Aristodemo Guggiani aprendeu em três anos a roubar com perfeição no jogo de bolinhas (garantindo o tostão para o sorvete) e ficou sabendo na ponta da língua que o Brasil foi descoberto sem querer e é o país maior, mais belo e mais rico do mundo. O professor Seu Serafim todos os dias ao encerrar as aulas limpava os ouvidos com o canivete (brinde do Chalé da Boa Sorte) e dizia olhando o relógio:

— Antes de nos separarmos, meus jovens discentes, meditemos uns  instantes no porvir da nossa idolatrada pátria.

Depois regia o hino nacional. Em seguida o da bandeira. O pessoal entoava  os dois engolindo metade das estrofes. Aristodemo era a melhor voz da classe.  Berrando puxava o coro. A campainha tocava. E o pessoal desembestava pela Rua  Albuquerque Lins vaiando Seu Serafim.

Saiu do Grupo e foi para a oficina mecânica do cunhado. Fumando Bentevi e cantando a Caraboo. Mas sobretudo com muita malandrice. Entrou para o Juvenil Flor de Prata F. C. (fundado para matar o Juvenil Flor de Ouro F. C.). Reserva do  primeiro quadro. Foi expulso por falta de pagamento. Esperou na esquina o  tesoureiro. O tesoureiro não apareceu. Estreou as calças compridas no casamento  da irmã mais moça (sem contar a Joaninha). Amou a Josefina. Apanhou do primo da Josefina. Jurou vingança. Ajudou a empastelar o Fanfulla que falou mal do Brasil. Teve ambições. Por exemplo: artista do Circo Queirolo. Quase morreu afogado no  Tietê.

E fez vinte anos no dia chuvoso em que a Tina (namorada do Lingüiça)  casou com um chofer de praça na policia.

Então brigou com o cunhado. E passou a ser cobrador da Companhia  Autoviação Gabrielle d'Annunzio. De farda amarela e polainas vermelhas.

Sua linha: Praça do Patriarca — Lapa. Arranjou logo uma pequena. No fim da Rua das Palmeiras. Ela vinha à janela ver o Aristodemo passar. O Evaristo era  quem avisava por camaradagem tocando o cláxon do ônibus verde. Aristodemo ficava olhando para trás até o Largo das Perdizes.

E não queria mesmo outra vida.

Um dia porém na seção "Colaboração das Leitoras" publicou A Cigarra as  seguintes linhas de Mlle Miosótis sob o título de Indiscrições da Rua das Palmeiras:

"Por que será que o jovem A. G. não é mais visto todos os dias entre vinte e vinte e uma horas da noite no portão da casa da linda Senhorinha F. R. em doce  colóquio de amor.? A formosa Julieta anda inconsolável! Não seja assim tão  mauzinho, Seu A. G.! Olhe que a ingratidão mata..."

Fosse MlleMiosótis (no mundo Benedita Guimarães, aluna mulata da Escola  Complementar Caetano de Campos) indagar do paradeiro de Aristodemo entre os  jovens defensores da pátria.

E saberia então que Aristodemo Guggiani para se livrar do sorteio ostentava agora a farda nobilitante de soldado do Tiro-de-Guerra n.035.

— Companhia! Per... filar!

No Largo Municipal o pessoal evoluía entre as cadeiras do bar e as costas protofônicas de Carlos Gomes para divertimento dos desocupados parados aos montinhos aqui, ali, à direita, à esquerda, lá, atrapalhando.

— Meia volta! Vol... ver!

O sargento cearense clarinava as ordens de comando. Puxando pela  rapaziada.

— Não está bom não! Vamos repetir isso sem vexame!

De novo não prestou.

— Firme!

Pareciam estacas.

— Meia volta!

Tremeram.

— Vol... ver!

Volveram.

— Abém!

Aristodemo era o base da segunda esquadra.

Sargento Aristóteles Camarão de Medeiros, natural de São Pedro do Cariri, quando falava em honra da farda, deveres do soldado e grandeza da pátria arrebatava qualquer um.

Aristodemo só de ouvi-lo ficou brasileiro jacobino. Aristóteles escolheu-o para seu ajudante-de-ordens. Uma espécie de.

— Você conhece o hino nacional, criatura?

— Puxa, se conheço, Seu Sargento!

— Então você não esquece, não? Traz amanhã umas cópias dele para o  pessoal ensaiar para o Sete de Setembro? Abom.

Aristodemo deu folga no serviço. Também levou um colosso de cópias.

E o primeiro ensaio foi logo à noite.

Ou-viram do I-piranga as margens plá-cidas...

— Parem que assim não presta não! Falta patriotismo. Vocês nem parecem brasileiros. Vamos!

Ou-viram do I-piranga as margens plácidas
Da Inde-pendência o brado re-tumbante!

— Não é assim não. Retumbante tem que estalar, criaturas, tem que retumbar! É palavra. Como é que se diz mesmo?... é palavra... ah!... onomatopaica:  RETUMBANTE!

E o hino rolou ribombando:

... a Inde-pendência o brado re-TUMBAN-te!
E o sol da li-berdade em raios ful...

De repente um barulho na segunda esquadra.

— Que isbregue é esse aí, criaturas?

Isbregue danado. O alemãozinho levou um tabefe de estilo. Onde entrou todo o muque de que pôde dispor na hora o Aristodemo.

— Está suspenso o ensaio. Podem debandar.

— Eu dei mesmo na cara dele, Seu Sargento. Por Deus do céu! Um bruto tapa mesmo. O desgraçado estava escachando com o hino do Brasil!

— Que é que você está me dizendo, Aristodemo?

— Escachando, Seu Sargento. Pode perguntar para qualquer um da  esquadra. Em vez de cantar ele dava risada da gente. Eu fui me deixando ficar com raiva e disse pra ele que ele tinha obrigação de cantar junto com a gente também. Ele foi e respondeu que não cantava porque não era brasileiro. Eu fui e disse que se  ele não era brasileiro é porque então era... um... eu chamei ele de... eu ofendi a mãe dele, Seu Sargento! Ofendi mesmo. Por Deus do céu. Então ele disse que a mãe  dele não era brasileira para ele ser... o que eu disse. Então eu fui. Seu Sargento, achei que era demais e estraguei com a cara do desgraçado! Ali na hora.

— Vou ouvir as testemunhas do fato, Aristodemo. Depois procederei como for de justiça. Fiat justitia como diziam os antigos romanos. Confie nela, Aristodemo.

"Ordem do Dia

De conformidade com o ordenado pelo Ex.mo Sr. Dr. Presidente deste Tiro-de-Guerra e depois de ouvir seis testemunhas oculares e auditivas acerca do deplorável fato ontem acontecido nesta sede do qual resultou levar uma lapada na  face direita o inscrito Guilherme Schwertz, n.081, comunico que fica o citado inscrito Guilherme Schwertz, n.081, desligado das fileiras do Exército, digo, deste Tiro-de-Guerra visto ter-se mostrado indigno de ostentar a farda gloriosa de soldado  nacional Delas injúrias infamérrimas que ousou levantar contra a honra imaculada da  mulher brasileira e principalmente da Mãe, acrescendo que cometeu semelhante ato delituoso contra a honra nacional no momento sagrado em que se cantava nesta sede o nosso imortal hino nacional. Comunico também que por necessidade de  disciplina, que é o alicerce em que se firma toda corporação militar, o inscrito  Aristodemo Guggiani, n.0117, único responsável pela lapada acima referida  acompanhada de equimoses graves, fica suspenso por um dia a partir desta data. Dura lex sed lex. Aproveito porém no entanto, a feliz oportunidade para apontar como exemplo o supracitado inscrito Aristodemo Guggiani, n.0117, que deve ser  seguido sob o ponto de vista do patriotismo, embora com menos violência apesar da  limpeza, digo, da limpidez das intenções.

Aproveito ainda a oportunidade para declarar que fica expressamente proibido no pátio desta sede o jogo de futebol. Aqui só devemos cuidar da defesa da  Pátria!

São Paulo, 23 de agosto de 1926.

(a) Sargento-Inspetor Aristóteles Camarão de Medeiros."

Aristodemo Guggiani logo depois apresentou sua demissão do cargo de  cobrador da Companhia Autoviação Gabrielle d'Anunuzio. Sob aplausos e a conselho do Sargento Aristóteles Camarão de Medeiros. Trabalha agora na Sociedade de Transportes Rui Barbosa, Ltda.

Na mesma linha: Praça do Patriarca — Lapa.

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Nota:
Alcântara Machado: "Brás, Bexiga e Barra Funda" (1927)

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