TIRO DE GUERRA Nº 35
No Grupo Escolar da Barra Funda
Aristodemo Guggiani aprendeu em três anos a roubar com perfeição no jogo de
bolinhas (garantindo o tostão para o sorvete) e ficou sabendo na ponta da
língua que o Brasil foi descoberto sem querer e é o país maior, mais belo e
mais rico do mundo. O professor Seu Serafim todos os dias ao encerrar as aulas
limpava os ouvidos com o canivete (brinde do Chalé da Boa Sorte) e dizia
olhando o relógio:
— Antes de nos separarmos, meus
jovens discentes, meditemos uns instantes
no porvir da nossa idolatrada pátria.
Depois regia o hino nacional. Em
seguida o da bandeira. O pessoal entoava os dois engolindo metade das estrofes.
Aristodemo era a melhor voz da classe. Berrando
puxava o coro. A campainha tocava. E o pessoal desembestava pela Rua Albuquerque Lins vaiando Seu Serafim.
Saiu do Grupo e foi para a
oficina mecânica do cunhado. Fumando Bentevi
e cantando a Caraboo. Mas sobretudo
com muita malandrice. Entrou para o Juvenil Flor de Prata F. C. (fundado para
matar o Juvenil Flor de Ouro F. C.). Reserva do primeiro quadro. Foi expulso por falta de
pagamento. Esperou na esquina o tesoureiro.
O tesoureiro não apareceu. Estreou as calças compridas no casamento da irmã mais moça (sem contar a Joaninha).
Amou a Josefina. Apanhou do primo da Josefina. Jurou vingança. Ajudou a
empastelar o Fanfulla que falou mal
do Brasil. Teve ambições. Por exemplo: artista do Circo Queirolo. Quase morreu
afogado no Tietê.
E fez vinte anos no dia chuvoso
em que a Tina (namorada do Lingüiça) casou
com um chofer de praça na policia.
Então brigou com o cunhado. E
passou a ser cobrador da Companhia Autoviação
Gabrielle d'Annunzio. De farda amarela e polainas vermelhas.
Sua linha: Praça do Patriarca —
Lapa. Arranjou logo uma pequena. No fim da Rua das Palmeiras. Ela vinha à
janela ver o Aristodemo passar. O Evaristo era quem avisava por camaradagem tocando o cláxon
do ônibus verde. Aristodemo ficava olhando para trás até o Largo das Perdizes.
E não queria mesmo outra vida.
Um dia porém na seção
"Colaboração das Leitoras" publicou A Cigarra as seguintes linhas de Mlle Miosótis sob o título
de Indiscrições da Rua das Palmeiras:
"Por que será que o jovem A. G. não é mais visto todos os dias entre
vinte e vinte e uma horas da noite no portão da casa da linda Senhorinha F. R.
em doce colóquio de amor.? A formosa
Julieta anda inconsolável! Não seja assim tão mauzinho, Seu A. G.! Olhe que a ingratidão
mata..."
Fosse MlleMiosótis (no mundo
Benedita Guimarães, aluna mulata da Escola Complementar Caetano de Campos) indagar do
paradeiro de Aristodemo entre os jovens
defensores da pátria.
E saberia então que Aristodemo
Guggiani para se livrar do sorteio ostentava agora a farda nobilitante de
soldado do Tiro-de-Guerra n.035.
— Companhia! Per... filar!
No Largo Municipal o pessoal
evoluía entre as cadeiras do bar e as costas protofônicas de Carlos Gomes para
divertimento dos desocupados parados aos montinhos aqui, ali, à direita, à
esquerda, lá, atrapalhando.
— Meia volta! Vol... ver!
O sargento cearense clarinava as
ordens de comando. Puxando pela rapaziada.
— Não está bom não! Vamos repetir
isso sem vexame!
De novo não prestou.
— Firme!
Pareciam estacas.
— Meia volta!
Tremeram.
— Vol... ver!
Volveram.
— Abém!
Aristodemo era o base da segunda
esquadra.
Sargento Aristóteles Camarão de
Medeiros, natural de São Pedro do Cariri, quando falava em honra da farda,
deveres do soldado e grandeza da pátria arrebatava qualquer um.
Aristodemo só de ouvi-lo ficou
brasileiro jacobino. Aristóteles escolheu-o para seu ajudante-de-ordens. Uma
espécie de.
— Você conhece o hino nacional,
criatura?
— Puxa, se conheço, Seu Sargento!
— Então você não esquece, não?
Traz amanhã umas cópias dele para o pessoal
ensaiar para o Sete de Setembro? Abom.
Aristodemo deu folga no serviço.
Também levou um colosso de cópias.
E o primeiro ensaio foi logo à
noite.
Ou-viram do I-piranga as margens plá-cidas...
— Parem que assim não presta não!
Falta patriotismo. Vocês nem parecem brasileiros. Vamos!
Ou-viram do I-piranga as margens plácidas
Da Inde-pendência o brado re-tumbante!
— Não é assim não. Retumbante tem
que estalar, criaturas, tem que retumbar! É palavra. Como é que se diz
mesmo?... é palavra... ah!... onomatopaica: RETUMBANTE!
E o hino rolou ribombando:
... a Inde-pendência o brado re-TUMBAN-te!
E o sol da li-berdade em raios ful...
De repente um barulho na segunda
esquadra.
— Que isbregue é esse aí,
criaturas?
Isbregue danado. O alemãozinho
levou um tabefe de estilo. Onde entrou todo o muque de que pôde dispor na hora
o Aristodemo.
— Está suspenso o ensaio. Podem
debandar.
— Eu dei mesmo na cara dele, Seu
Sargento. Por Deus do céu! Um bruto tapa mesmo. O desgraçado estava escachando
com o hino do Brasil!
— Que é que você está me dizendo,
Aristodemo?
— Escachando, Seu Sargento. Pode
perguntar para qualquer um da esquadra.
Em vez de cantar ele dava risada da gente. Eu fui me deixando ficar com raiva e
disse pra ele que ele tinha obrigação de cantar junto com a gente também. Ele foi
e respondeu que não cantava porque não era brasileiro. Eu fui e disse que se ele não era brasileiro é porque então era...
um... eu chamei ele de... eu ofendi a mãe dele, Seu Sargento! Ofendi mesmo. Por
Deus do céu. Então ele disse que a mãe dele
não era brasileira para ele ser... o que eu disse. Então eu fui. Seu Sargento, achei
que era demais e estraguei com a cara do desgraçado! Ali na hora.
— Vou ouvir as testemunhas do
fato, Aristodemo. Depois procederei como for de justiça. Fiat justitia como diziam
os antigos romanos. Confie nela, Aristodemo.
"Ordem do Dia
De conformidade com o ordenado
pelo Ex.mo Sr. Dr. Presidente deste Tiro-de-Guerra e depois de ouvir seis
testemunhas oculares e auditivas acerca do deplorável fato ontem acontecido
nesta sede do qual resultou levar uma lapada na face direita o inscrito Guilherme Schwertz,
n.081, comunico que fica o citado inscrito Guilherme Schwertz, n.081, desligado
das fileiras do Exército, digo, deste Tiro-de-Guerra visto ter-se mostrado
indigno de ostentar a farda gloriosa de soldado nacional Delas injúrias infamérrimas que ousou
levantar contra a honra imaculada da mulher
brasileira e principalmente da Mãe, acrescendo que cometeu semelhante ato delituoso
contra a honra nacional no momento sagrado em que se cantava nesta sede o nosso
imortal hino nacional. Comunico também que por necessidade de disciplina, que é o alicerce em que se firma
toda corporação militar, o inscrito Aristodemo
Guggiani, n.0117, único responsável pela lapada acima referida acompanhada de equimoses graves, fica suspenso
por um dia a partir desta data. Dura lex
sed lex. Aproveito porém no entanto, a feliz oportunidade para apontar como
exemplo o supracitado inscrito Aristodemo Guggiani, n.0117, que deve ser seguido sob o ponto de vista do patriotismo,
embora com menos violência apesar da limpeza,
digo, da limpidez das intenções.
Aproveito ainda a oportunidade
para declarar que fica expressamente proibido no pátio desta sede o jogo de
futebol. Aqui só devemos cuidar da defesa da Pátria!
São Paulo, 23 de agosto de 1926.
(a) Sargento-Inspetor Aristóteles
Camarão de Medeiros."
Aristodemo Guggiani logo depois
apresentou sua demissão do cargo de cobrador
da Companhia Autoviação Gabrielle d'Anunuzio. Sob aplausos e a conselho do Sargento
Aristóteles Camarão de Medeiros. Trabalha agora na Sociedade de Transportes Rui
Barbosa, Ltda.
Na mesma linha: Praça do
Patriarca — Lapa.
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Nota:
Alcântara Machado: "Brás, Bexiga e Barra Funda" (1927)
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