sábado, 31 de agosto de 2013

Antônio de Alcântara Machado: "A Piedosa Teresa"

 A PIEDOSA TERESA
(Dona Teresa Ferreira)


Atmosfera de cauda de procissão. Bodum.

Os homens formam duas filas diante do altar de São Gonçalo. São Gonçalo está enfaixado como um recém-nascido. Azul e branco. Entre palmas-de-são-josé. Estrelas prateadas no céu de papel de seda. 

Os violeiros puxando a reza e encabeçando as filas fazem reverências.  Viram-se para os outros. E os outros dançam com eles. Bate-pé no chão de terra socada. Pan-pan-pan-pan! Pan-pan! Pan Pan-pan-pan-pan! Pan-pan! Param de repente.

Para bater palmas. Pla-pla-pla-plá! Pla-plá Plá! Pla-pla-pla-plá! Pla-plá! Param de repente.

Para os violeiros cantarem, viola no queixo:

É este o primeiro verso
Qu'eu canto pra São Gonçalo

- Senta ai mesmo no chão, Benedito. Tu não é mió que os outro, diabo!

E o coro começa grosso, grosso. Rola subindo. Desce fino, fino. Mistura-se. Prolonga-se. Ôooôh! Aaaah! Ôaôh! Ôaiiiih! Um guincho!

O violeiro de olhos apertados cumprimenta o companheiro. E marcha  seguido pela fila. Dá uma volta. Reverências para a direita. Reverências para a  esquerda. Ninguém pisca. Volta para seu lugar.

— Entra, Seu Casimiro!

O japonês Kashamira entra com a mulher e o filhinho brasileiros de roupa de  brim. Inclina-se diante de São Gonçalo. Acocora-se.

O acompanhamento das violas feito de três compassos não cansa. Nos cantos sombreados os assistentes têm rosário nas mãos. No centro da sala de cinco por quatro a lâmpada de azeite dança também.

Minha boca está cantando 
Meu coração lhe adorando

Cabeças mulatas espiam nas janelas. A porta é um monte de gente. Dona Teresa, desdentada, recebe os convidados.

— Não vê que meu defunto Seu Vieira tá enterrado já há dois ano... Faz  mesmo dois ano agora no Natar.

Pan-pan-pan-pan! Pan-pan! Pan!

— A arma dele tá penando aí por esse mundo de Deus sem poder entrar no  céu.

Pla-pla-pla-plá! Pla-plá!

— Eu então quis fazer esta oração pra São Gonçalo deixar ele entrar.

Vou mandar fazer um barquinho 
Da raiz do alecrim

O menino de oito anos aumenta a fila da direita. A folhinha da parede é uma  paisagem de neve. Mas tem um sol. E o guerreiro com uma bandeirinha auriverde  no peito espeta o sol com a espada. EMPÓRIO TUIUTI.

Pra embarcar meu São Gonçalo 
Do pomar pro seu jardim

Desafinação sublime do coro. Os rezadores sacodem o corpo. Trocam de  posição. Enfrentam-se. Dois a dois avançam, cumprimento aqui, cumprimento ali, tocam-se ombro contra ombro, voltam para os seus lugares. O negro de pala é o  melhor dançarino da quadrilha religiosa.

São Gonçalo é um bom santo 
Por livrar seu pai da forca

Só a casinha de barro alumiando a escuridão.

— Não vê que o Crispim também pegou uma doença danada. Não havia jeito de sarar. O coitado quis até se enforcar num pé de bananeira!

Dona Teresa é viuva. Viúva de um português. Mas nem oito dias passados Dona Teresa se ajuntou com o Crispim. A filhinha dela ri enleada e é namorada de  um polaco. Na Fazenda Santa Maria está sozinha pela sua boniteza. Dona Teresa cuida da alma do morto e do corpo do vivo. No carnaval deste ano organizou um  cordão. Cordão dos Filhos da Cruz. Dona Teresa é pecadora, mas tem sua religião.  Todos gostam dela em toda a extensão da Estrada da Cachoeira. Dona Teresa é jeitosa, consegue tudo e ainda por cima é pagodeira.

Artá de São Gonçalo 
Artá de nossa oração

Nós então fizemos uma promessa que se Crispim sarasse nós fazia esta festinha.

Foi promessa que sarando 
Será seu precuradô

As violas têm um som, um som só. É proibido fumar dentro da sala. Chega  gente.

São Gonçalo estava longe 
De longe já tá bem perto

Um a um curvam-se diante do altar. O violeiro de olhos apertados está de  sobretudo. Negros de pé no chão.

Nós estamos mesmo emprestado neste mundo.

Cantando cruzam a salinha quente.

Amor castiga a gente. Olhe a Rosa que não quis casar com o sobrinho do  poceiro. Não houve conselho de mãe, não houve ameaça de pai nem nada. Fincou o pé. E fugiu com o italiano casado carregado de filhos. Um até de mama. Não tinham parada. Agora, agora está ai judiada com o ventre redondo. São  Gonçalo tenha dó da coitada.

Abençoada seja a união
Que enfeitou este oratório

O preto de pala dá um tropicão engraçado. E a mulher de azul-celeste dá urna risada sem respeito. O bico do peito escapuliu da boca do filho.

Da dança de São Gonçalo 
Ninguém deve caçoá
Ôooôh Aaaah! Ôaiiiih!
São Gonçalo é vingativo 
Ele pode castigar

Silêncio na assistência descalça. As bandeirinhas de todas as cores riscam  um x em cima dos dançarinos. Atrás da casa tem cachaça do Corisco.

— Depois é a vez das moça. Quem quiser pode pegar o santo e dançar com  ele encostado no lugar doente.

Onde chega os pecados 
Ajoelhai pedi perdão

O estouro dos foguetes ronca no vale fundo. Anda um ventinho frio cercando a casa.

São Gonçalo tá sentado
Com sua fita na cintura

O caboclo louro puxa a faca e esgaravata o dedão do pé.

— São seis reza de hora e meia cada mais ou menos. Pro santo ficá satisfeito.

Lá no céu será enfeitado 
Pra mão de Nossa Senhora

Pan-pan-pan-pan! Pan-pan! Pla-pla-pla-plá! Plaplá! Plá! Pla-pla-pla-plá!

Oratório tão bonito  
Cuma luz a lumiar

De cima do montão de lenha a gente vê São Paulo deitada lá embaixo com os olhos de gato espiando a Serra da Cantareira. Nosso céu tem mais estrelas.

São Gonçalo foi em Roma 
Visitar Nosso Sinhô

Dona Teresa parece uma pata.

— Só acaba amanhã, sim sinhô! Vai até o meio-dia, sim sinhô! E acaba tudo  ajoelhado, sim sinhô!

Ôooôh! Aaaah! Ôaaôh! Ôaôaiiiih! Primeiro é órgão. Cantochão. Depois carro de boi. No finzinho então.

Senhora de Deus converso
Padre Filho Espírito Santo

Quem guincha é mesmo o caipira de bigodes exagerados.

O TÍMIDO JOSÉ

(José Borba)
Estava ali esperando o bonde. O último bonde que ia para a Lapa. A garoa descia brincando no ar. Levantou a gola do paletó, desceu a aba do chapéu, enfiou as  mãos nos bolsos das calças. O sujeito ao lado falou: O nevoeiro já tomou conta do  Anhangabaú. Começou a bater com os pés no asfalto molhado. Olhou o relógio: dez  para as duas. A sensação sem propósito de estar sozinho, sozinho, sem ninguém, é o  que o desanimava. Não podia ficar quieto. Precisava fazer qualquer cousa. Pensou numa. Olhou o relógio: sete para as duas. Tarde. A Lapa é longe. De vez em quando  ia até o meio dos trilhos para ver se via as luzinhas do bonde. O sujeito ao lado falou:  É bem capaz de já ter passado. Medindo os passos foi até o refúgio. Alguém  atravessou a praça. Vinha ao encontro dele. Uma mulher. Uma mulher com uma pele  no pescoço. Tinha certeza que ia acontecer alguma cousa. A mulher parou a dois  metros se tanto. Olhou para ele. Desviou os olhos, puxou o relógio.

— Pode me dizer que horas são?

— Duas. Duas menos três minutos.

Agradeceu e sorriu. Se o Anísio estivesse ali diria logo que era um gado e  atracaria o gado. Ele se afastou. Disfarçadamente examinava a mulher. Aquilo era  fácil. O Anísio? O Anísio já teria dado um jeito. Na boca é que a gente conhece a sem-vergonhice da mulher. Parecia nervosa. Abriu a bolsa, mexeu na bolsa, fechou a bolsa. E caminhou na direção dele. Ele ficou frio sem saber que fazer. Passou ralando  sem um olhar. Tomou o viaduto. O bonde vinha vindo. O nevoeiro atrapalhava a vista, mas parece que ela olhou para trás. Mais uns segundos perdia o bonde. O último  bonde que ia para a Lapa. Achou que era uma besteira não ir dormir. Resolveu ir. O  bonde parou diante do refúgio. Seguiu. Correndo um bocadinho ainda pegava. Agora não pegava mais nem que disparasse. Ficar com raiva de si mesmo é a cousa pior  deste mundo. Pôs um cigarro na boca. Não tinha fósforos. Virando o cigarro nos  dedos seguiu pelo viaduto. Apressou o passo. Não se enxergava nada. De repente  era capaz de esbarrar com a mulher. Tomou a outra calçada. Esbarrar não. Mas  precisava encontrar. Afinal de contas estava fazendo papel de trouxa.

Quem sabe se seguiu pela Rua Barão de Itapetininga? Mais depressa não  podia andar. Garoar, garoava sempre. Mas ali o nevoeiro já não era tanto felizmente. Decidiu. Iria indo no caminho da Lapa. Se encontrasse a mulher bem. Se não  encontrasse paciência. Não iria procurar. Iria é para casa. Afinal de contas era mesmo um trouxa. Quando podia não quis. Agora que era difícil queria.

Estava parada na esquina. E virada para o lado dele. Foi diminuindo o andar. Ficou atrás do poste. Procurava ver sem ser visto. Alguma cousa lhe dizia que era aquele o momento. Porém não se decidia e pensava no bonde da Lapa que  já ia longe. Para sair dali esperava que ela andasse. Impacientava-se. BARBEARIA  BRILHANTE. Dezoito letras. Se continuava parada é que esperava alguém. Se fosse ele era uma boa maçada. Sua esperança estava na varredeira da Limpeza Pública  que vinha chegando. A poeira a afugentaria. Nem se lembrava de que estava  garoando. Pôs o lenço no rosto.

A mulher recomeçou a andar. Até que enfim. E ele também rente aos  prédios. Agora já tinha desistido. Viu as horas: duas e um quarto. Antes das três e  meia não chegaria na Lapa. Talvez caminhando bem depressa. Precisava desviar da mulher senão era capaz de parar de novo e pronto. Daria a volta na praça. Ela tinha tomado a rua do meio. Então reparou que outro também começara a seguir a sujeita. Um tipo de capa batendo nos calcanhares e parecia velho. Primeiro teve curiosidade. Curiosidade má. Depois uma espécie de despeito, de ciúme, de orgulho ferido, qualquer cousa assim. Nem ele nem ninguém. Cada vez apressava mais o passo. O tipo parou para acender um cigarro. Era velho mesmo, tinha bigodes  brancos caídos, usava galochas e se via na cara a satisfação. Não. Isso é que não.

Nem ele nem o velho nem ninguém. Nem que tivesse que brigar. Mas por que não ele mesmo? Resolveu: seria ele mesmo.

Via a ponta da pele caída nas costas. De repente ela parou e sentou-se num banco. Sentia o velho rente. E agora? Fez um esforço para que as pernas não  parassem. A mulher virou o rosto na direção dele. Quem é que estava olhando? O  velho? Mas a sujeita endireitou logo o rosto, abaixou a cabeça. Vai ver que o olhava sem ver. Passou como um ladrão, o coração batendo forte e sentou-se dois bancos  adiante. Prova de audácia sim. Mas não podia ser de outro modo. O velho também passou, passou devagarzinho, depois de passar ainda se virou, mas não parou. Tinha receio de suportar o olhar do velho. Começou a passar o lenço no rosto. Já era pavor mesmo. Por isso tremia. O velho continuou. Dava uns passos, virava para trás, andava mais um pouquinho, virava de novo. No fim da praça ficou encostado numa árvore.

A sujeita se levantou, deu um jeito na pele, veio vindo. Com toda a coragem a fixava. Impossível que deixasse escapar de novo a ocasião. Bastaria um sorrisozinho.  Mas nem um olhar quanto mais um sorriso. Mulher é assim mesmo: facilita, facilita até demais e depois nada. Só dando mesmo pancada como recomendava o Anísio.  Bombeiro é que sabe tratar mulher. Já estava ali mesmo: seguiu-a. O velho estava  esperando com todo o cinismo. O gozo dele foi que quando ela ia chegando pegou  outra rua do jardim e o velho ficou no ora veja. Vá ser cínico na praia. Não é que o raio  da sujeita apressou o passo? Melhor. Quanto mais longe melhor. Preferia assim  porque no fundo era um trouxa mesmo. Reconhecia.

Ela esperou que o automóvel passasse (tinha mulheres dentro cantando)  para depois atravessar a rua correndo e desaparecer na esquina. Então ele quase que corria também. Dobrou a esquina. Um homem sem chapéu e sem paletó  (naquela umidade) gritava palavrões na cara da sujeita que chorava. À primeira vista  pensou até que não fosse ela. Mas era. Dando com ele o homem segurou-a por um braço (ela dizia que estava doendo) e com um safanão jogou-a para dentro do portão. E fechou o portão imediatamente. Uma janela se iluminou na casinha cinzenta. Ficou ali de olhos esbugalhados Alguém dobrou a esquina. Era o velho.  Maldito velho. Então seguiu. E o outro atrás.

Nem tinha tempo de pensar em nada. Lapa. Lapa. Puxou o relógio: vinte e  cinco para as três. Um quarto para as quatro em casa. E que frio. E o velho atrás. Virou-se estupidamente. O velho fez-lhe um sinal. O quê? Não queria conversa. Não falava com quem não conhecia. Cada pé dentro de um quadrado no cimento da  calçada. Assim era obrigado a caminhar ligeiro.

— Faz favor, seu!

Favor nada. Mas o velho o alcançou. Não podia deixar de ser um canalha.

— Diga uma cousa: conhece aquele xaveco?

Fechou a cara. Continuou como se não tivesse ouvido. Mas o homem  parecia que estava disposto a acompanhá-lo. Parou. Perguntou desesperado:
— Que é que o senhor quer?

Por mais um pouco chorava.

— Onde é que ela mora?

— Não sei! Não sei de nada!
 
O velho começou a entrar em detalhes indecentes. Não agüentou mais, fez um gesto com a mão e disparou. Ouvia o velho dizer: Que é que há? Que é que há? Corria com as mãos fechando a gola do paletó. Só depois de muito tempo pegou no  passo de novo. Porque estava ofegante a garganta doía com o ar da madrugada.  Lapa. Lapa. E pensava: A esta hora é capaz de ainda estar apanhando.

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Nota:
Alcântara Machado: "Laranja-da-China" (1928) 

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