O AVENTUREIRO ULISSES
(Ulisses Serapião
Rodrigues)
Ainda
tinha duzentos réis. E como eram sua única fortuna meteu a mão no bolso e segurou a moeda. Ficou com ela na mão
fechada.
Nesse
instante estava na Avenida Celso Garcia. E sentia no peito todo o frio da manhã.
Duzentão.
Quer dizer: dois sorvetes de casquinha. Pouco.
Ah! Muito
sofre quem padece. Muito sofre quem padece? É uma canção de Sorocaba. Não. Não é. Então que é? Mui-to
so-fre quem pa-de-ce. Alguém diz ia isto sempre. Etelvina? Seu Cosme? Com
certeza Etelvina que vivia amando toda a gente. Até ele. Sujeitinha impossível.
Só vendo o jeito de olhar dela.
Bobagens.
O melhor é ir andando.
Foi.
Pé no
chão é bom só na roça. Na cidade é uma porcaria. Toda a gente estranha. É verdade. Agora é que ele reparava
direito: ninguém andava descalço. Sentiu um mal-estar horrível. As mãos a gente
ainda escondia nos bolsos. Mas os pés? Cousa horrorosa. Desafogou a cintura.
Puxou as calças para baixo. Encolheu os
artelhos. Deu dez passos assim. Pipocas. Não dava jeito mesmo. Pipocas. A gente da cidade que vá
bugiar no inferno. Ajustou a cintura. Levantou as calças acima dos tornozelos. Acintosamente. E muito vermelho foi jogando
os pés na calçada. Andando duro como se
estivesse calçado.
— Estado! Comércio! A Folha! Sem
querer procurou o vendedor. Olhou de um lado. Olhou de outro.
— Fanfulla! A Folha!
Virou-se.
— Estado! Comércio!
Olhou
para cima. Olhou longe. Olhou perto.
Diacho.
Parece impossível.
— São Paulo-Jornal!
Quase
derrubou o homem na esquina. O italiano perguntou logo:
— Qual é?
Atrapalhou-se
todo:
— Eu não
sei não senhor.
— Então
leva O Estado!
Pegou o
jornal. Ficou com ele na mão feito bobo.
—
Duzentos!
Quase
chorou. O homem arrancou-lhe a moeda dos dedos que tremiam. E ele continuou a
andar. Com o jornal debaixo do braço. Mas sua vontade era voltar, chamar o homem, devolver o jornal, readquirir o
duzentão. Mas não podia. Por que não podia? Não sabia. Continuou andando.
Mas sua vontade era voltar. Mas não podia.
Não podia. Não podia. Continuou andando.
Que
remédio senão se conformar? Não tomava sorvete. Dois sorvetes. Dois. Mas tinha O Estado.
O Estado de São Paulo. Pois é.
O jornal ficava com ele. Mas para quê, meu Espírito Santo? Engoliu um soluço e
sentiu vergonha.
Nesse
instante já estava em frente do Instituto Disciplinar.
Abaixou-se.
Catou uma pedra. Pá! Na árvore. Bem no meio do tronco. Catou outra. Pá! No cachorro. Bem no meio da
barriga. Direção assim nem a do Cabo Zulmiro.
Ficou muito, mas muito contente consigo mesmo. Cabra bom. E isso não era nada.
Há dois anos na Fazenda Sinhá-Moça depois de cinco pedradas certeiras o doutor
delegado (o que bebia, coitado) lhe disse: Desse jeito você poderá fazer bonito
até no estrangeiro!
Êta
topada. A gente vai assim pensando em cousas e nem repara onde mete o pé. É
topada na certa. Eh! Eh! Topada certeira também. Puxa. Tudo certeiro.
Agora não
é nada mau descansar aqui à sombra do muro.
O
automóvel passou com poeira atrás. Diabo. Pegou num pauzinho e desenhou um quadrado no chão vermelho. Depois
escreveu dentro do quadrado em diagonal:
SAUDADE — 1927. Desmanchou tudo com o pé. Traçou um círculo. Dentro do círculo
outro menor. Mais outro. Outro. Ainda outro bem pequetitito. Ainda outro: um pontinho só. Não achou mais jeito.
Ficou pensando, pensando, pensando. Com
a ponta do cavaco furando o pontinho. Deu um risco nervoso cortando os círculos e escreveu fora deles sem levantar a
ponta: FIM. Só que escreveu com n. E afundou numa tristeza sem conta.
Cinco
minutos banzados.
E abriu o
jornal. Pulou de coluna em coluna. Até os olhos da Pola Negri nos anúncios de cinema. Boniteza de olhos. Com o
fura-bolos rasgou a boca, rasgou a testa. Ficaram só os
olhos. Deu um soco: não ficou nada. Jogou o jornal. Ergueu-o novamente. Abriu
na quarta página. E leu logo de cara: ULISSES SERAPIÃO RODRIGUES: No dia 13 do
corrente desapareceu do Sítio Capivara, município de Sorocaba, um rapaz de nome Ulisses Serapião
Rodrigues tomando rumo ignorado. Tem 22 anos, é baixo, moreno carregado e
magro. Pode ser reconhecido facilmente por
uma cicatriz que tem no queixo em forma de estrela. Na ocasião de seu desaparecimento
estava descalço, sem colarinho e vestia um terno de brim azul-pavão. Quem
souber do seu paradeiro tenha a bondade de escrever para a Caixa Postal 170 naquela cidade que será bem
gratificado.
Cousas
assim a gente lê duas vezes. Leu. Depois arrancou a notícia do jornal. E foi
picando, picando, picando até não poder mais. O vento correu com os pedacinhos.
Então ele
levou a mão no queixo. Esfregou. Esfregou bastante. Levantou-se. Foi andando devagarzinho. Viu um sujeito a
cinqüenta metros. Começou a tremer. O sujeito veio vindo. Sempre na sua direção. Quis
assobiar. Não pôde. Nunca se viu ninguém assobiar de mão no queixo. O
sujeito estava pertinho já. Pensou: Quando ele for se chegando eu cuspo de lado
e pronto. Começou a preparar a saliva. Mas cuspir é ofensa. Engoliu a saliva. O sujeito passou
com o dedo no nariz. Arre. Tirou a mão do queixo. Endireitou o corpo. Apressou
o passo. Foi ficando mais calmo. Até corajoso.
Parou bem
juntinho dos Operários da Light.
O mulato
segurava no pedaço de ferro. O estoniano descia o malho: pan! Pan! Pan! E o ferro ia afundando no dormente.
Nem o mulato nem o estoniano levantaram os olhos. Ele ficou ali guardando as
pancadas nos ouvidos.
O mulato
cuspiu o cigarro e começou:
Mulher, a Penha está aí,
Eu lá não posso...
Que é que
deu nele de repente?
— Seu
moço! Seu moço!
A canção
parou.
— Faz
favor de dizer onde é que fica a Penha?
O mulato
levantou a mão:
— Siga os
trilhos do bonde!
Então ele
deu um puxão nos músculos. E seguiu firme com os olhos bem abertos e a mão no peito apertando os
bentinhos.
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Nota:
Alcântara Machado: "Laranja-da-China" (1928)
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