sábado, 31 de agosto de 2013

Antônio de Alcântara Machado: "Notas Biográficas do Novo Deputado"

NOTAS BIOGRÁFICAS DO NOVO DEPUTADO

O coronel recusou a sopa.

— Que é isso, Juca? Está doente?

O coronel coçou o queixo. Revirou os olhos. Quebrou um palito. Deu um estalo com a língua.

— Que é que você tem, homem de Deus?

O coronel não disse nada. Tirou uma carta do bolso de dentro. Pôs os óculos. Começou a ler:

Exmo. sr. coronel Juca.

— De quem é?

— Do administrador da Santa Inácia.

— Já sei. Geada?

— Escute. Exmo. sr. coronel Juca. Respeitosas Saudações. Em primeiro lugar Saúdo-vos. V. Ecia. e D. Nequinha. Coronel venho por meio desta  respeitosamente comunicar para V. E. que o cafezal novo agradeceu bastante as chuvarada desta semana. E tal e tal e tal. Me acho doente diversos incômodos  divido o serviço.

— Coitado.

— Mas não é isso. O major Domingo Neto mandou buscar a vaca... Oh  senhor! Não acho...

— Na outra página, Juca.

— Está aqui. Vá escutando. Em último lugar, vos comunico que o seu  compadre João Italiano morreu...

— Meu Deus, não diga?!

— ... morreu segunda que passou de uma anemia nos rim. Por esses motivos recolhi em casa o vosso afilhado e órfão Genrinho. Peço para V.E. que me  mande dizer o destino e tal. E agora, mulher?

Dona Nequinha suspirou. Bebeu um gole de água. Mandou levar a sopa.

— E então?

Dona Nequinha passou a língua nos lábios. Levantou a tampa da farinheira. Arranjou o virote.

— E então? Que é que eu respondo?

Dona Nequinha pensou. Pensou. Pensou. E depois:

— Vamos pensar bem primeiro, Juca. Não coma o torresmo que faz mal.

Amanhã você responde. E deixe-se de extravagâncias.

Genarinho desceu na estação da Sorocabana com o nariz escorrendo. Todo  chibante. De chapéu vermelho. Bengalinha na mão. Rebocado pelo filho mais velho do administrador. E com uma carta para o Coronel J. Peixoto de Faria.

Tomou o coche Hudson que estava à sua espera.

Veio desde a estação até a Avenida Higienópolis com a cabeça para fora do  automóvel soltando cusparadas. Apertou o dedo no portão. Disse uma palavra feia. Subiu as escadas berrando.

— Tire o chapéu.

Tirou.

— Diga boa noite.

Disse.

— Beije a mão dos padrinhos. 

Beijou.

— Limpe o nariz.

Limpou com o chapéu.

— Pronto, Nhãzinha. A telefonista cortou. Chegou anteontem. Espertinho como ele só. Nem você imagina. Tem nove anos. É sim. Crescidinho. Juca ficou com  dó dele. Pois é. Coitadinho. Imagine. Pois é. Faz de conta que é um filho. Já estou  querendo bem mesmo. Genarinho. O quê? É sim. Nome meio esquisito. Também  acho. O Juca está que não pode mais de satisfeito. Ele que sempre desejou ter tanto um filho, não é? Pois então. Nasceu no Brás. O pai era não sei o quê. Estava na  fazenda há cinco anos já. Bom, Nhãzinha. O Juca está me chamando. Beijos na Marianinha. Obrigada. O mesmo. Até amanhã. Ah! Ah! Ah Imagine! Nesta idade!... Até amanhã, Nhãzinha. Que é que você queria, Juca?

— Agora é tarde. Você não sabe o que perdeu.

— O Genarinho, é?

— Diabinho de menino! Querendo a toda força levantar a saia da Atsué.

— Mas isso não está direito, Juca. Vou já e já...

— É. Direito não está mesmo. Mas é engraçado.

— ... dar uns tapas nele.

— Não faça isso, ora essa! Dar à toa no menino!

— Não é à toa, Juca.

— Bom. Então dê. Olhe aqui: eu mesmo dou, sabe? Eu tenho mais jeito.

Um dia na mesa o coronel implicou:

— Esse negócio de Genarinho não está certo. Genarinho não é nome de  gente. Você agora passa a se chamar Januário que é a tradução. Eu já indaguei.

Ouviu? Êta menino impossível! Sente-se já aí direito! Você passa a se chamar Januário. Ouviu?

— Ouvi.

— Não é assim que se responde. Diga sem se mexer na cadeira: Ouvi, sim senhor.

— Ouvi, sim senhor coronel!

Dona Nequinha riu como uma perdida. Da resposta e da continência.

Uma noite na cama Dona Nequinha perguntou:

— Juca: você já pensou no futuro do menino?

O coronel estava dorme não dorme. Respondeu bocejando:

— Já-á-á!...

— Que é que você resolveu?

O coronel levou um susto.

— O quê? Resolveu o quê?

— O futuro do menino, homem de Deus!

— Hã!...

— Responda.

O coronel coçou primeiro o pescoço.

— Para falar a verdade, Nequinha, ainda não resolvi nada.

O suspiro desanimado da consorte foi um protesto contra tamanha indecisão.

— Mas você não há de querer que ele cresça um vagabundo, eu espero.

— Pois está visto que não quero.

Aproveitando o silêncio o despertador bateu mais forte no criado-mudo.  Dona Nequinha ajeitou o travesseiro. São José dentro de sua redoma espiou o vôo  de dois pernilongos.

— Eu acho que... Apague a luz que está me incomodando.

— Pronto. Acho o quê?

— Eu acho que a primeira cousa que se deve fazer é meter o menino num  colégio.

— Num colégio de padres.

— É.

— Eu sou católica. Você também é. O Januário também será.

— Muito bem...

— Você parece que está dizendo isso assim sem muito entusiasmo... 

Era sono.

— Amanhã-ã-ã... ai! Ai!... nós vemos isso direito, Nequinha...

Até o coronel ajudou a aprontar o Januário. Foi quem pôs ordem na  cabelada cor de abóbora. Na terceira tentativa fez uma risca bem no meio da  cabeça.

— Agora só falta a merenda.

Dona Nequinha preparou logo. Pão francês. Goiabada Pesqueira. Queijo Palmira.

— Diga pro Inácio tirar o automóvel. O fechado.

A comoção era geral. Dona Nequinha apertou mais uma vez a gravata azul do Januário. O coronel deu uma escovadela, pensativo, no gorro. Januário fez uma cara de vítima.

— Vamos indo que está na hora.

Dona Nequinha (o coronel já se achava no meio da escadaria de mármore carregando a pasta colegial) beijou mais uma vez a testa do menino.  Chuchurreadamente. Maternalmente.

— Vá, meu filhinho. E tenha muito juízo, sim? Seja muito respeitador. Vá.

Todo compenetrado, de pescoço duro e passo duro, Januário alcançou o  coronel.

A meninada entrava no Ginásio de São Bento em silêncio e beijava a mão  do Senhor Reitor. Depois disparava pelos corredores jogando os chapéus no ar. As aulas de portas abertas esperavam de carteiras vazias. O berreiro sufocava o apito  dos vigilantes.

— Cumprimente o Senhor Reitor.


D. Estanislau deu umas palmadinhas na nuca do Januário. Januário tremeu.

— Crescidinho já. Muito bem. Muito bem. Como se chama?

Januário não respondeu.

— Diga o seu nome para o Senhor Reitor.

— Januário.

— Ah! Muito bem. Januário. Muito bem. Januário de quê?

Januário estava louco para ir para o recreio. Nem ouviu.

— Diga o seu nome todo, menino!

Com os olhos no coronel:

— Januário Peixoto de Faria.

O porteiro apareceu com unia sineta na mão. Dlin-dlin! Dlin-dlin! Dlin-dlin! O coronel seguiu para o São Paulo Clube pensando em fazer testamento.

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Nota:
Alcântara Machado: "Brás, Bexiga e Barra Funda" (1927)

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