LISETTA
Quando Lisetta subiu no bonde (o
condutor ajudou) viu logo o urso. Felpudo, felpudo. E amarelo. Tão engraçadinho.
Dona Mariana sentou-se, colocou a
filha em pé diante dela.
Lisetta começou a namorar o
bicho. Pôs o pirulito de abacaxi na boca. Pôs mas não chupou. Olhava o urso. O
urso não ligava. Seus olhinhos de vidro não diziam absolutamente nada. No colo
da menina de pulseira de ouro e meias de seda parecia um urso importante e
feliz.
— Olha o ursinho que lindo,
mamãe!
— Stai zitta!
A menina rica viu o enlevo e a
inveja da Lisetta. E deu de brincar com o urso. Mexeu-lhe com o toquinho do
rabo: e a cabeça do bicho virou para a esquerda, depois para a direita, olhou para cima, depois
para baixo. Lisetta acompanhava a manobra.
Sorrindo fascinada. E com um ardor nos olhos! O pirulito perdeu definitivamente
toda a importância.
Agora são as pernas que sobem e
descem, cumprimentam, se cruzam, batem umas nas outras.
— As patas também mexem, mamã.
Olha lá!
— Stai ferma!
Lisetta sentia um desejo louco de
tocar no ursinho. Jeitosamente procurou alcançá-lo. A menina rica percebeu,
encarou a coitada com raiva, fez uma careta horrível e apertou contra o peito o
bichinho que custara cinqüenta mil-réis na Casa São Nicolau.
— Deixa pegar um pouquinho, um
pouquinho só nele, deixa?
— Ah!
— Scusi, senhora. Desculpe por favor. A senhora sabe, essas crianças
são muito levadas. Scusi. Desculpe.
A mãe da menina rica não
respondeu. Ajeitou o chapeuzinho da filha, sorriu para o bicho, fez uma carícia
na cabeça dele, abriu a bolsa e olhou o espelho.
Dona Mariana, escarlate de
vergonha, murmurou no ouvido da filha:
— In casa me lo pagherai!
E pespegou por conta um beliscão
no bracinho magro. Um beliscão daqueles.
Lisetta então perdeu toda a
compostura de uma vez. Chorou. Soluçou. Chorou. Soluçou. Falando sempre.
— Hã! Hã! Hã! Hã! Eu que...ro o
ur...so! O ur...so! Ai, mamãe! Ai, mamãe! Eu que...ro o... o... o... Hã! Hã!
— Stai ferina o ti amazzo, parola d'onore!
— Um pou...qui...nho só! Hã! E...
hã! E... hã! Um pou...qui...
— Senti,
Lisetta. Non ti porterò più in città! Mai più!
Um escândalo. E logo no banco da
frente. O bonde inteiro testemunhou o feio
que Lisetta fez.
O urso recomeçou a mexer com a
cabeça. Da esquerda para a direita, para cima e para baixo.
— Non piangere più adesso!
Impossível.
O urso lá se fora nos braços da
dona. E a dona só de má, antes de entrar no palacete estilo empreiteiro
português, voltou-se e agitou no ar O bichinho. Para Lisetta ver. E Lisetta viu.
Dem-dem! O bonde deu um
solavanco, sacudiu os passageiros, deslizou, rolou, seguiu. Dem-dem!
— Olha à direita!
Lisetta como compensação quis
sentar-se no banco. Dona Mariana (havia pago
uma passagem só) opôs-se com energia e outro beliscão.
A entrada de Lisetta em casa
marcou época na história dramática da família Garbone.
Logo na porta um safanão. Depois
um tabefe, Outro no corredor. Intervalo de dois minutos. Foi então a vez das
chineladas. Para remate. Que não acabava mais.
O resto da gurizada (narizes
escorrendo, pernas arranhadas, suspensórios de barbante) reunido na sala de jantar sapeava
de longe.
Mas o Ugo chegou da oficina.
— Você assim machuca a menina,
mamãe! Coitadinha dela!
Também Lisetta já não agüentava
mais.
— Toma pra você. Mas não escache.
Lisetta deu um pulo de contente.
Pequerrucho. Pequerrucho e de lata. Do tamanho
de um passarinho. Mas urso.
Os irmãos chegaram-se para
admirar. O Pasqualino quis logo pegar no bichinho. Quis mesmo tomá-lo à força.
Lisetta berrou como uma desesperada:
— Ele é meu! O Ugo me deu!
Correu para o quarto. Fechou-se
por dentro.
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Nota:
Alcântara Machado: "Brás, Bexiga e Barra Funda" (1927)
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