sábado, 31 de agosto de 2013

Antônio de Alcântara Machado: "A Sociedade"

A SOCIEDADE

— Filha minha não casa com filho de carcamano!

A esposa do Conselheiro José Bonifácio de Matos e Arruda disse isso e foi brigar com o italiano das batatas. Teresa Rita misturou lágrimas com gemidos e entrou no seu quarto batendo a porta. O Conselheiro José Bonifácio limpou as unhas com o palito, suspirou e saiu de casa abotoando o fraque.

O esperado grito do cláxon fechou o livro de Henri Ardel e trouxe Teresa Rita  do escritório para o terraço.

O Lancia passou como quem não quer. Quase parando. A mão enluvada  cumprimentou com o chapéu Borsalino. Uiiiiia — uiiiia! Adriano MeIli calcou o acelerador. Na primeira esquina fez a curva. Veio voltando. Passou de novo.  Continuou. Mais duzentos metros. Outra curva. Sempre na mesma rua. Gostava dela. Era a Rua da Liberdade. Pouco antes do número 259-C já sabe: uiiiiia-uiiiiia!

— O que você está fazendo aí no terraço, menina.

— Então nem tomar um pouco de ar eu posso mais?

Lancia Lambda, vermelhinho, resplendente, pompeando na rua. Vestido do  Camilo, verde, grudado à pele, serpejando no terraço.

— Entre já para dentro ou eu falo com seu pai quando ele chegar!

— Ah meu Deus, meu Deus, que vida, meu Deus!

Adriano Melli passou outras vezes ainda. Estranhou. Desapontou. Tocou para a Avenida Paulista.

Na orquestra o negro de casaco vermelho afastava o saxofone da beiçorra  para gritar:

Dizem que Cristo nasceu em Belém...

Porque os pais não a haviam acompanhado (abençoado furúnculo inflamou o pescoço do Conselheiro José Bonifácio) ela estava achando um suco aquela  vesperal do Paulistano. O namorado ainda mais.

Os pares dançarmos maxixavam colados. No meio do salão eram um bolo  tremelicante. Dentro do círculo palerma de mamãs, moças feias e moços enjoados.  A orquestra preta tonitroava. Alegria de vozes e sons. Palmas contentes prolongaram o maxixe. O banjo é que ritmava os passos.

— Sua mãe me fez ontem uma desfeita na cidade.

— Não!

— Como não? Sim senhora. Virou a cara quando me viu...

mas a história se enganou!

As meninas de ancas salientes riam porque os rapazes contavam episódios  de farra muito engraçados. O professor da Faculdade de Direito citava Rui Barbosa para um sujeitinho de óculos. Sob a vaia do saxofone: turururu-turururum!

— Meu pai quer fazer um negocio com o seu.

— Ah sim?

Cristo nasceu na Bahia, meu bem...

O sujeitinho de óculos começou a recitar Gustave Le Bon mas a destra  espalmada do catedrático o engasgou. Alegria de vozes e sons.

... e o baiano criou!

— Olhe aqui, Bonifácio: se esse carcamano vem pedir a mão de Teresa para o filho, você aponte o olho da rua para ele, compreendeu?

— Já sei, mulher, já sei.

Mas era cousa muito diversa.

O Cav. Uff. Salvatore Melli alinhou algarismos torcendo a bigodeira. Falou como homem de negócios que enxerga longe. Demonstrou cabalmonte as vantagens econômicas de sua proposta.

— O doutor...

— Eu não sou doutor, Senhor Melli.

Parlo assim para facilitar. Non é para ofender. Primo o doutor pense bem. E poi me dê a sua resposta. Domani, dopo domani, na outra semana, quando quiser.  lo resto à sua disposição. Ma pense bem!

Renovou a proposta e repetiu os argumentos pró. O conselheiro possuía uns terrenos em São Caetano. Cousas de herança. Não lhe davam renda alguma. O Cav. Uff. tinha a sua fábrica ao lado. 1.200 teares. 36.000 fusos. Constituíam uma sociedade. O conselheiro entrava com os terrenos. O Cav. Uff. com o capital.
  
Armavam os trinta alqueires e vendiam logo grande parte para os operários da  fábrica. Lucro certo, mais que certo, garantidíssimo.

— É. Eu já pensei nisso. Mas sem capital e senhor compreende é  impossível...

Per Bacco, doutor! Mas io tenho o capital. O capital sono io. O doutor entra com o terreno, mais nada. E o lucro se divide no meio.

O capital acendeu um charuto. O conselheiro coçou os joelhos disfarçando a emoção. A negra de broche serviu o café.

Dopo o doutor me dá a resposta. Io só digo isto: pense bem.

O capital levantou-se. Deu dois passos. Parou. Meio embaraçado. Apontou  para um quadro.

— Bonita pintura.

Pensou que fosse obra de italiano. Mas era de francês.

Francese? Não é feio non. Serve.

Embatucou. Tinha qualquer cousa. Tirou o charuto da boca, ficou olhando  para a ponta acesa. Deu um balanço no corpo. Decidiu-se.

— Ia dimenticando de dizer. O meu filho fará o gerente da sociedade... Sob a minha direção, si capisce.

— Sei, sei... O seu filho?

— Si. O Adriano. O doutor... mi pare... mi pare que conhece ele?

O silêncio do Conselheiro desviou os olhos do Cav. Uff. na direção da porta.

— Repito un'altra vez: O doutor pense bem.

O Isotta Fraschini esperava-o todo iluminado.

— E então? O que devo responder ao homem?

— Faça como entender, Bonifácio...

— Eu acho que devo aceitar.

— Pois aceite.

E puxou o lençol.

A outra proposta foi feita de fraque e veio seis meses depois.

O Conselheiro José Bonifácio
de Matos e Arruda
e senhora
têm a honra de participar a V.
Exa. e Exma. família o contrato
de casamento de sua filha Teresa
Rita com o sr. Adriano Melli.
Rua da Liberdade, n.259‑C.
---
O Cav. Uff. Salvatore Melli
E senhora
têm a honra de participar a
V. Exa. e Exma. família o contrato
de casamento de seu filho
Adriano com a senhorinha
Teresa Rita de Matos Arruda.
Rua da Barra Funda, n.427.


S. Paulo 19 de fevereiro de 1927.

No chá do noivado o Cav. Uff. Adriano Melli na frente de toda a gente recordou à mãe de sua futura nora os bons tempinhos em que lhe vendia cebolas e  batatas, Olio di Lucca e bacalhau português, quase sempre fiado e até sem caderneta.

---
Nota:
Alcântara Machado: "Brás, Bexiga e Barra Funda" (1927)

Nenhum comentário:

Postar um comentário