A SOCIEDADE
— Filha minha não casa com filho
de carcamano!
A esposa do Conselheiro José
Bonifácio de Matos e Arruda disse isso e foi brigar com o italiano das batatas.
Teresa Rita misturou lágrimas com gemidos e entrou no seu quarto batendo a
porta. O Conselheiro José Bonifácio limpou as unhas com o palito, suspirou e
saiu de casa abotoando o fraque.
O esperado grito do cláxon fechou
o livro de Henri Ardel e trouxe Teresa Rita do escritório para o terraço.
O Lancia passou como quem não
quer. Quase parando. A mão enluvada cumprimentou
com o chapéu Borsalino. Uiiiiia — uiiiia! Adriano MeIli calcou o acelerador. Na
primeira esquina fez a curva. Veio voltando. Passou de novo. Continuou. Mais duzentos metros. Outra curva.
Sempre na mesma rua. Gostava dela. Era a Rua da Liberdade. Pouco antes do
número 259-C já sabe: uiiiiia-uiiiiia!
— O que você está fazendo aí no
terraço, menina.
— Então nem tomar um pouco de ar
eu posso mais?
Lancia Lambda, vermelhinho,
resplendente, pompeando na rua. Vestido do Camilo, verde, grudado à pele, serpejando no
terraço.
— Entre já para dentro ou eu falo
com seu pai quando ele chegar!
— Ah meu Deus, meu Deus, que
vida, meu Deus!
Adriano Melli passou outras vezes
ainda. Estranhou. Desapontou. Tocou para a Avenida Paulista.
Na orquestra o negro de casaco
vermelho afastava o saxofone da beiçorra para gritar:
Dizem que Cristo nasceu em Belém...
Porque os pais não a haviam
acompanhado (abençoado furúnculo inflamou o pescoço do Conselheiro José
Bonifácio) ela estava achando um suco aquela vesperal do Paulistano. O namorado ainda mais.
Os pares dançarmos maxixavam
colados. No meio do salão eram um bolo tremelicante.
Dentro do círculo palerma de mamãs, moças feias e moços enjoados. A orquestra preta tonitroava. Alegria de vozes
e sons. Palmas contentes prolongaram o maxixe. O banjo é que ritmava os passos.
— Sua mãe me fez ontem uma
desfeita na cidade.
— Não!
— Como não? Sim senhora. Virou a
cara quando me viu...
mas a história se enganou!
As meninas de ancas salientes
riam porque os rapazes contavam episódios de farra muito engraçados. O professor da
Faculdade de Direito citava Rui Barbosa para um sujeitinho de óculos. Sob a
vaia do saxofone: turururu-turururum!
— Meu pai quer fazer um negocio
com o seu.
— Ah sim?
Cristo nasceu na Bahia, meu
bem...
O sujeitinho de óculos começou a
recitar Gustave Le Bon mas a destra espalmada
do catedrático o engasgou. Alegria de vozes e sons.
... e o baiano criou!
— Olhe aqui, Bonifácio: se esse
carcamano vem pedir a mão de Teresa para o filho, você aponte o olho da rua
para ele, compreendeu?
— Já sei, mulher, já sei.
Mas era cousa muito diversa.
O Cav. Uff. Salvatore Melli alinhou algarismos torcendo a
bigodeira. Falou como homem de negócios que enxerga longe. Demonstrou
cabalmonte as vantagens econômicas de sua proposta.
— O doutor...
— Eu não sou doutor, Senhor
Melli.
— Parlo assim para facilitar. Non
é para ofender. Primo o doutor pense bem. E poi
me dê a sua resposta. Domani, dopo domani,
na outra semana, quando quiser. lo resto à sua disposição. Ma pense bem!
Renovou a proposta e repetiu os
argumentos pró. O conselheiro possuía uns terrenos em São Caetano. Cousas de
herança. Não lhe davam renda alguma. O Cav.
Uff. tinha a sua fábrica ao lado. 1.200 teares. 36.000 fusos. Constituíam
uma sociedade. O conselheiro entrava com os terrenos. O Cav. Uff. com o capital.
Armavam os trinta alqueires e
vendiam logo grande parte para os operários da fábrica. Lucro certo, mais que certo,
garantidíssimo.
— É. Eu já pensei nisso. Mas sem
capital e senhor compreende é impossível...
— Per Bacco, doutor! Mas io
tenho o capital. O capital sono io. O
doutor entra com o terreno, mais nada. E o lucro se divide no meio.
O capital acendeu um charuto. O
conselheiro coçou os joelhos disfarçando a emoção. A negra de broche serviu o
café.
— Dopo o doutor me dá a resposta. Io
só digo isto: pense bem.
O capital levantou-se. Deu dois
passos. Parou. Meio embaraçado. Apontou para
um quadro.
— Bonita pintura.
Pensou que fosse obra de
italiano. Mas era de francês.
— Francese? Não é feio non.
Serve.
Embatucou. Tinha qualquer cousa.
Tirou o charuto da boca, ficou olhando para
a ponta acesa. Deu um balanço no corpo. Decidiu-se.
— Ia dimenticando de dizer. O meu filho fará o gerente da sociedade...
Sob a minha direção, si capisce.
— Sei, sei... O seu filho?
— Si. O Adriano. O doutor... mi pare... mi pare que conhece ele?
O silêncio do Conselheiro desviou
os olhos do Cav. Uff. na direção da
porta.
— Repito un'altra vez: O doutor pense bem.
O Isotta Fraschini esperava-o
todo iluminado.
— E então? O que devo responder
ao homem?
— Faça como entender,
Bonifácio...
— Eu acho que devo aceitar.
— Pois aceite.
E puxou o lençol.
A outra proposta foi feita de
fraque e veio seis meses depois.
O Conselheiro José Bonifácio
de Matos e Arruda
e senhora
têm a honra de participar a V.
Exa. e Exma. família o contrato
de casamento de sua filha Teresa
Rita com o sr. Adriano Melli.
Rua da Liberdade, n.259‑C.
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O Cav. Uff. Salvatore Melli
E senhora
têm a honra de participar a
V. Exa. e Exma. família o contrato
de casamento de seu filho
Adriano com a senhorinha
Teresa Rita de Matos Arruda.
Rua da Barra Funda, n.427.
S. Paulo 19 de fevereiro de 1927.
No chá do noivado o Cav. Uff. Adriano Melli na frente de
toda a gente recordou à mãe de sua futura nora os bons tempinhos em que lhe
vendia cebolas e batatas, Olio di Lucca
e bacalhau português, quase sempre fiado e até sem caderneta.
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Nota:
Alcântara Machado: "Brás, Bexiga e Barra Funda" (1927)
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