sábado, 31 de agosto de 2013

Antônio de Alcântara Machado: "Armazém Progresso de São Paulo"

ARMAZÉM PROGRESSO DE SÃO PAULO

O armazém do Natale era célebre em todo o Bexiga por causa deste  anúncio:

Aviso às Excelentissimas Mães de Família!

O Armazém Progresso de São Paulo

DE
NATALE PIENOTTO
TEM ARTIGOS DE TODAS AS QUALIDADES
DÁ-SE UM CONTO DE RÉIS A QUEM PROVAR
O CONTRÁRIO

N. B. — Jogo de bocce com serviço de restaurante nos fundos.

Isso em letras formidáveis na fachada e em prospectos entregues a domicílio.

O filho do doutor da esquina, que era muito pândego e comprava cigarros no  armazém mandando-os debitar na conta do pai com outro nome bulia todos os  santos dias com o Natale:

— Seu Natale, o senhor tem pneumáticos-balão aí?

— Que negócio é esse?

— Ah, não tem? Então passe já para cá um conto de réis.

— Você não vê logo, Zezinho, que isso é só para tapear os trouxas? Que é que você quer? Um maço de Sudan Ovais? E como é na caderneta?

— Bote hoje uma Si-Si que é também pra tapear o trouxa.

O Natale achava uma graça imensa e escrevia: Duas Si-Si pro Sr. Zezinho - 1$200.

O Armazém Progresso de São Paulo começou com uma porta no lado par da Rua da Abolição. Agora tinha quatro no lado ímpar.

Também o Natale não despregava do balcão de madrugada a madrugada. Trabalhava como um danado. E Dona Bianca suando firme na cozinha e no bocce.

— Se não é essa cousa de imposto, puxa vida!

Mas a caderneta da Banca Francese ed Italiana per l'America del Sud ria  dessa cousa de imposto.

— Dá ai duzentão de cachaça!

O negro fedido bebeu de um gole só. Começou a cuspir.

No quintal o pessoal do bocce gritava que nem no futebol. Entusiasmos  estalavam:

Evviva il campioníssimo!

O Ferrúcio entrou de pé no chão e relógio-pulseira.

— Mais duas de Hamburguesa, Seu Natale.

Meninas enlaçadas passeavam na calçada. O lampião de gás piscava pra elas. A locomotiva fumegando no carrinho de mão apitava amendoim torrado. O Brodo passou cantando.

Natale veio à porta da rua estirar os braços. Em frente a Confeitaria Paiva  Couceiro expunha renques de cebola e a mulher do proprietário grávida com um  filhinho no colo. Esse espetáculo diário era um gozo para o Natale. Cebola era artigo  que estava por preço que as excelentíssimas mães de família achavam uma beleza  de preço. E o mondrongo coitado tinha um colosso de cebolas galegas empatado na confeitaria. Natale que não perdia tempo calculou logo quanto poderia oferecer por toda aquela mercadoria (cebolas e o resto) no leilão da falência: dez contos, talvez  sete, quem sabe cinco. O português não agüentaria mesmo o tranco por mais tempo.

— Dona Bianca está chamando o senhor depressa na cozinha.

Resolveu primeiro apertar o homem no vencimento da letra. E acendeu um  Castro Alves.

A roda de pizza chiava na panela.

— Con molte alici, eh dama Bianca!

— Si capisce, sor Luigi!

Natale entrou.

— Vem aqui no quarto.

Natale foi meio desconfiado.
  
— Que é?

Bianca quando dava para falar era aquela desgraça.


— José Espiridião, o mulato, o do Abastecimento, ora, o da Comissão do  Abastecimento...

— Já sei.

... estava ali no quintal assistindo a uma partida de bocce. Conversando Com o Giribello, o sapateiro, o pai da Genoveva...

— Já sei.

Bianca foi levar lá um prato de não sei o quê e o sem-vergonha do mulato  até brincara com ela. Disse umas gracinhas. Mas ela não ficou quieta não. Que esperança. Deu uma resposta até que o Espiridião ficou até assim meio...

— Já sei.

Pois é. Ela ficou ali espiando o bocce porque era a vez do Nicola jogar. E como o Nicola já sabe é o campeão e estava num dia mesmo de...

— Sei!

Pois é. Ela ficou espiando. E também escutando o que o Espiridião estava  dizendo para o Giribello. Não é que ela fazia questão de escutar o que ele falava. Não. Mas ela estava ali perto - não é? - então..

— Sei!

O Espiridião falava assim para o Giribello que a crise era um fato, que a cebola por exemplo ia ficar pela hora da morte. O pessoal da Comissão do  Abastecimento andava até...

— Sei!

Ela então não quis ouvir mais nada. Veio correndo e mandou o Ferrucio  chamá-lo para lhe dizer que desse um jeito com o português.

— Já sei...

Se não aproveitasse agora nunca mais. O homem que desse em pagamento  da letra as...

— Dona Bianca! Venha depressa que o Dino quer avançar nas comidas!

— Mais um copo, Seu Doutor.

José Espiridião aceitava o título e a cerveja.

— Pois é como estou lhe contando, Seu Natale. A tabela vai subir porque a  colheita foi fracota como o diabo. Ai, ai! Coitado de quem é pobre.

 Natale abriu outra Antártica.

 — Cebola até o fim do mês está valendo três vezes mais. Não demora muito temos cebola aí a cinco mil-réis o quilo ou mais. Olhe aqui, amigo Natale: trate de  bancar o açambarcador. Não seja besta. O pessoal da alta que hoje cospe na  cabeça do povo enriqueceu assim mesmo. Igualzinho.

Natale já sabia disso.

— Se o doutor me promete ficar quieto — compreende? — e o negócio dá certo o doutor leva também as suas vantagens...

Espiridião já sabia disso.

Dona Bianca pôs o Nino na caminha de ferro. Ele ficou com uma perna fora da coberta. Toda cheia de feridas.

Então o Natale entrou assobiando a Tosca. — A mulher olhou para ele. Percebeu tudo. Perguntou por perguntar:

— Arranjou?

Natale segurou-a pelas orelhas, quase encostou o nariz no dela.

— Diga se eu tenho cara de trouxa!

Deu na Dona Bianca um empurrão contente da vida, deu uma volta sobre os  calcanhares, deu um soco na cômoda, saiu e voltou com meio litro de Chianti Ruffino. Parou. Olhou para a garrafa. Hesitou. Saiu de novo. E trouxe meia Pretinha.

Dona Bianca deitou-se sem apagar a luz. Olhou muito para o Dino que  dormia de boca aberta. Olhou muito para o Santo Antonio di Padova col Gesù Bambino bem no meio da parede amarela. Mais uma vez olhou muito para o Dino  que mudara de posição. E fechou os olhos para se ver no palacete mais caro da Avenida Paulista.

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Nota:
Alcântara Machado: "Brás, Bexiga e Barra Funda" (1927)

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