ARMAZÉM PROGRESSO DE SÃO PAULO
O armazém do Natale era célebre
em todo o Bexiga por causa deste anúncio:
Aviso às Excelentissimas Mães de Família!
O Armazém Progresso de São Paulo
DE
NATALE PIENOTTO
TEM ARTIGOS DE TODAS AS QUALIDADES
DÁ-SE UM CONTO DE RÉIS A QUEM PROVAR
O CONTRÁRIO
N. B. — Jogo de bocce com serviço de restaurante nos fundos.
Isso em letras formidáveis na
fachada e em prospectos entregues a domicílio.
O filho do doutor da esquina, que
era muito pândego e comprava cigarros no armazém mandando-os debitar na conta do pai
com outro nome bulia todos os santos
dias com o Natale:
— Seu Natale, o senhor tem
pneumáticos-balão aí?
— Que negócio é esse?
— Ah, não tem? Então passe já
para cá um conto de réis.
— Você não vê logo, Zezinho, que
isso é só para tapear os trouxas? Que é que você quer? Um maço de Sudan Ovais?
E como é na caderneta?
— Bote hoje uma Si-Si que é
também pra tapear o trouxa.
O Natale achava uma graça imensa
e escrevia: Duas Si-Si pro Sr. Zezinho -
1$200.
O Armazém Progresso de São Paulo
começou com uma porta no lado par da Rua da Abolição. Agora tinha quatro no
lado ímpar.
Também o Natale não despregava do
balcão de madrugada a madrugada. Trabalhava como um danado. E Dona Bianca
suando firme na cozinha e no bocce.
— Se não é essa cousa de imposto,
puxa vida!
Mas a caderneta da Banca Francese
ed Italiana per l'America del Sud ria dessa
cousa de imposto.
— Dá ai duzentão de cachaça!
O negro fedido bebeu de um gole
só. Começou a cuspir.
No quintal o pessoal do bocce gritava que nem no futebol.
Entusiasmos estalavam:
— Evviva il campioníssimo!
O Ferrúcio entrou de pé no chão e
relógio-pulseira.
— Mais duas de Hamburguesa, Seu
Natale.
Meninas enlaçadas passeavam na
calçada. O lampião de gás piscava pra elas. A locomotiva fumegando no carrinho
de mão apitava amendoim torrado. O Brodo passou cantando.
Natale veio à porta da rua
estirar os braços. Em frente a Confeitaria Paiva Couceiro expunha renques de cebola e a mulher
do proprietário grávida com um filhinho
no colo. Esse espetáculo diário era um gozo para o Natale. Cebola era artigo que estava por preço que as excelentíssimas
mães de família achavam uma beleza de
preço. E o mondrongo coitado tinha um colosso de cebolas galegas empatado na confeitaria.
Natale que não perdia tempo calculou logo quanto poderia oferecer por toda
aquela mercadoria (cebolas e o resto) no leilão da falência: dez contos, talvez
sete, quem sabe cinco. O português não
agüentaria mesmo o tranco por mais tempo.
— Dona Bianca está chamando o
senhor depressa na cozinha.
Resolveu primeiro apertar o homem
no vencimento da letra. E acendeu um Castro
Alves.
A roda de pizza chiava na panela.
— Con molte alici, eh dama
Bianca!
— Si capisce, sor Luigi!
Natale entrou.
— Vem aqui no quarto.
Natale foi meio desconfiado.
— Que é?
Bianca quando dava para falar era
aquela desgraça.
— José Espiridião, o mulato, o do
Abastecimento, ora, o da Comissão do Abastecimento...
— Já sei.
... estava ali no quintal
assistindo a uma partida de bocce.
Conversando Com o Giribello, o sapateiro, o pai da Genoveva...
— Já sei.
Bianca foi levar lá um prato de
não sei o quê e o sem-vergonha do mulato até brincara com ela. Disse umas gracinhas.
Mas ela não ficou quieta não. Que esperança. Deu uma resposta até que o
Espiridião ficou até assim meio...
— Já sei.
Pois é. Ela ficou ali espiando o bocce porque era a vez do Nicola jogar.
E como o Nicola já sabe é o campeão e estava num dia mesmo de...
— Sei!
Pois é. Ela ficou espiando. E também
escutando o que o Espiridião estava dizendo
para o Giribello. Não é que ela fazia questão de escutar o que ele falava. Não.
Mas ela estava ali perto - não é? - então..
— Sei!
O Espiridião falava assim para o
Giribello que a crise era um fato, que a cebola por exemplo ia ficar pela hora
da morte. O pessoal da Comissão do Abastecimento
andava até...
— Sei!
Ela então não quis ouvir mais
nada. Veio correndo e mandou o Ferrucio chamá-lo
para lhe dizer que desse um jeito com o português.
— Já sei...
Se não aproveitasse agora nunca
mais. O homem que desse em pagamento da
letra as...
— Dona Bianca! Venha depressa que
o Dino quer avançar nas comidas!
— Mais um copo, Seu Doutor.
José Espiridião aceitava o título
e a cerveja.
— Pois é como estou lhe contando,
Seu Natale. A tabela vai subir porque a colheita
foi fracota como o diabo. Ai, ai! Coitado de quem é pobre.
Natale já sabia disso.
— Se o doutor me promete ficar
quieto — compreende? — e o negócio dá certo o doutor leva também as suas
vantagens...
Espiridião já sabia disso.
Dona Bianca pôs o Nino na caminha
de ferro. Ele ficou com uma perna fora da coberta. Toda cheia de feridas.
Então o Natale entrou assobiando
a Tosca. — A mulher olhou para ele. Percebeu
tudo. Perguntou por perguntar:
— Arranjou?
Natale segurou-a pelas orelhas,
quase encostou o nariz no dela.
— Diga se eu tenho cara de
trouxa!
Deu na Dona Bianca um empurrão
contente da vida, deu uma volta sobre os calcanhares, deu um soco na cômoda, saiu e
voltou com meio litro de Chianti Ruffino. Parou. Olhou para a garrafa. Hesitou.
Saiu de novo. E trouxe meia Pretinha.
Dona Bianca deitou-se sem apagar
a luz. Olhou muito para o Dino que dormia
de boca aberta. Olhou muito para o Santo Antonio di Padova col Gesù Bambino bem
no meio da parede amarela. Mais uma vez olhou muito para o Dino que mudara de posição. E fechou os olhos para
se ver no palacete mais caro da Avenida Paulista.
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Nota:
Alcântara Machado: "Brás, Bexiga e Barra Funda" (1927)
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