sexta-feira, 31 de maio de 2013

Machado de Assis: "A Igreja do Diabo"

A IGREJA DO DIABO

Capítulo I

De uma idéia mirífica

Conta um velho manuscrito beneditino que o Diabo, em certo dia, teve a idéia de  fundar uma igreja. Embora os seus lucros fossem contínuos e grandes, sentia-se humilhado  com o papel avulso que exercia desde séculos, sem organização, sem regras, sem cânones,  sem ritual, sem nada. Vivia, por assim dizer, dos remanescentes divinos, dos descuidos e  obséquios humanos. Nada fixo, nada regular. Por que não teria ele a sua igreja? Uma igreja  do Diabo era o meio eficaz de combater as outras religiões, e destruí-las de uma vez.

— Vá, pois, uma igreja, concluiu ele. Escritura contra Escritura, breviário contra  breviário. Terei a minha missa, com vinho e pão à farta, as minhas prédicas, bulas, novenas   e todo o demais aparelho eclesiástico. O meu credo será o núcleo universal dos espíritos, a  minha igreja uma tenda de Abraão. E depois, enquanto as outras religiões se combatem e se  dividem, a minha igreja será única; não acharei diante de mim, nem Maomé, nem Lutero.  Há muitos modos de afirmar; há só um de negar tudo.

Dizendo isto, o Diabo sacudiu a cabeça e estendeu os braços, com um gesto  magnífico e varonil. Em seguida, lembrou-se de ir ter com Deus para comunicar-lhe a idéia,  e desafiá-lo; levantou os olhos, acesos de ódio, ásperos de vingança, e disse consigo: —  Vamos, é tempo. E rápido, batendo as asas, com tal estrondo que abalou todas as províncias  do abismo, arrancou da sombra para o infinito azul.
  

Capítulo II

Entre Deus e o Diabo

Deus recolhia um ancião, quando o Diabo chegou ao céu. Os serafins que  engrinaldavam o recém-chegado, detiveram-se logo, e o Diabo deixou-se estar à entrada  com os olhos no Senhor.

— Que me queres tu? perguntou este.

— Não venho pelo vosso servo Fausto, respondeu o Diabo rindo, mas por todos os  Faustos do século e dos séculos.

— Explica-te.

— Senhor, a explicação é fácil; mas permiti que vos diga: recolhei primeiro esse  bom velho; dai-lhe o melhor lugar, mandai que as mais afinadas cítaras e alaúdes o recebam  com os mais divinos coros...

— Sabes o que ele fez? perguntou o Senhor, com os olhos cheios de doçura.

— Não, mas provavelmente é dos últimos que virão ter convosco. Não tarda muito   que o céu fique semelhante a uma casa vazia, por causa do preço, que é alto. Vou edificar  uma hospedaria barata; em duas palavras, vou fundar uma igreja. Estou cansado da minha  desorganização, do meu reinado casual e adventício. É tempo de obter a vitória final e  completa. E então vim dizer-vos isto, com lealdade, para que me não acuseis de  dissimulação... Boa idéia, não vos parece?  

— Vieste dizê-la, não legitimá-la, advertiu o Senhor.

— Tendes razão, acudiu o Diabo; mas o amor-próprio gosta de ouvir o aplauso dos  mestres. Verdade é que neste caso seria o aplauso de um mestre vencido, e uma tal  exigência... Senhor, desço à terra; vou lançar a minha pedra fundamental.

— Vai.

— Quereis que venha anunciar-vos o remate da obra?

— Não é preciso; basta que me digas desde já por que motivo, cansado há tanto da  tua desorganização, só agora pensaste em fundar uma igreja.

O Diabo sorriu com certo ar de escárnio e triunfo. Tinha alguma idéia cruel no  espírito, algum reparo picante no alforje de memória, qualquer coisa que, nesse breve instante de eternidade, o fazia crer superior ao próprio Deus. Mas recolheu o riso, e disse:

— Só agora concluí uma observação, começada desde alguns séculos, e é que as virtudes, filhas do céu, são em grande número comparáveis a rainhas, cujo manto de veludo rematasse em franjas de algodão. Ora, eu proponho-me a puxá-las por essa franja, e trazê-las todas para minha igreja; atrás delas virão as de seda pura...

— Velho retórico! murmurou o Senhor.

— Olhai bem. Muitos corpos que ajoelham aos vossos pés, nos templos do mundo,  trazem as anquinhas da sala e da rua, os rostos tingem-se do mesmo pó, os lenços cheiram  aos mesmos cheiros, as pupilas centelham de curiosidade e devoção entre o livro santo e o  bigode do pecado. Vede o ardor, — a indiferença, ao menos, — com que esse cavalheiro  põe em letras públicas os benefícios que liberalmente espalha, — ou sejam roupas ou botas,  ou moedas, ou quaisquer dessas matérias necessárias à vida... Mas não quero parecer que  me detenho em coisas miúdas; não falo, por exemplo, da placidez com que este juiz de  irmandade, nas procissões, carrega piedosamente ao peito o vosso amor e uma comenda...  Vou a negócios mais altos...

Nisto os serafins agitaram as asas pesadas de fastio e sono. Miguel e Gabriel fitaram  no Senhor um olhar de súplica. Deus interrompeu o Diabo.

— Tu és vulgar, que é o pior que pode acontecer a um espírito da tua espécie,  replicou-lhe o Senhor. Tudo o que dizes ou digas está dito e redito pelos moralistas do  mundo. É assunto gasto; e se não tens força, nem originalidade para renovar um assunto  gasto, melhor é que te cales e te retires. Olha; todas as minhas legiões mostram no rosto os  sinais vivos do tédio que lhes dás. Esse mesmo ancião parece enjoado; e sabes tu o que ele  fez?

— Já vos disse que não.

— Depois de uma vida honesta, teve uma morte sublime. Colhido em um naufrágio,  ia salvar-se numa tábua; mas viu um casal de noivos, na flor da vida, que se debatiam já  com a morte; deu-lhes a tábua de salvação e mergulhou na eternidade. Nenhum público: a  água e o céu por cima. Onde achas aí a franja de algodão?

— Senhor, eu sou, como sabeis, o espírito que nega.

— Negas esta morte?

— Nego tudo. A misantropia pode tomar aspecto de caridade; deixar a vida aos  outros, para um misantropo, é realmente aborrecê-los...

— Retórico e sutil! exclamou o Senhor. Vai, vai, funda a tua igreja; chama todas as  virtudes, recolhe todas as franjas, convoca todos os homens... Mas, vai! vai!

Debalde o Diabo tentou proferir alguma coisa mais. Deus impusera-lhe silêncio; os serafins, a um sinal divino, encheram o céu com as harmonias de seus cânticos. O Diabo  sentiu, de repente, que se achava no ar; dobrou as asas, e, como um raio, caiu na terra.


Capítulo III

A boa nova aos homens

Uma vez na terra, o Diabo não perdeu um minuto. Deu-se pressa em enfiar a cogula  beneditina, como hábito de boa fama, e entrou a espalhar uma doutrina nova e  extraordinária, com uma voz que reboava nas entranhas do século. Ele prometia aos seus  discípulos e fiéis as delícias da terra, todas as glórias, os deleites mais íntimos. Confessava  que era o Diabo; mas confessava-o para retificar a noção que os homens tinham dele e  desmentir as histórias que a seu respeito contavam as velhas beatas.

— Sim, sou o Diabo, repetia ele; não o Diabo das noites sulfúreas, dos contos  soníferos, terror das crianças, mas o Diabo verdadeiro e único, o próprio gênio da natureza,  a que se deu aquele nome para arredá-lo do coração dos homens. Vede-me gentil e airoso.  Sou o vosso verdadeiro pai. Vamos lá: tomai daquele nome, inventado para meu desdouro,  fazei dele um troféu e um lábaro, e eu vos darei tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tudo...  Era assim que falava, a princípio, para excitar o entusiasmo, espertar os indiferentes,  congregar, em suma, as multidões ao pé de si. E elas vieram; e logo que vieram, o Diabo  passou a definir a doutrina. A doutrina era a que podia ser na boca de um espírito de  negação. Isso quanto à substância, porque, acerca da forma, era umas vezes sutil, outras  cínica e deslavada.

Clamava ele que as virtudes aceitas deviam ser substituídas por outras, que eram as  naturais e legítimas. A soberba, a luxúria, a preguiça foram reabilitadas, e assim também a  avareza, que declarou não ser mais do que a mãe da economia, com a diferença que a mãe  era robusta, e a filha uma esgalgada. A ira tinha a melhor defesa na existência de Homero;  sem o furor de Aquiles, não haveria a Ilíada: "Musa, canta a cólera de Aquiles, filho de  Peleu..." O mesmo disse da gula, que produziu as melhores páginas de Rabelais, e muitos  bons versos de Hissope; virtude tão superior, que ninguém se lembra das batalhas de  Luculo, mas das suas ceias; foi a gula que realmente o fez imortal. Mas, ainda pondo de  lado essas razões de ordem literária ou histórica, para só mostrar o valor intrínseco daquela  virtude, quem negaria que era muito melhor sentir na boca e no ventre os bons manjares,  em grande cópia, do que os maus bocados, ou a saliva do jejum? Pela sua parte o Diabo  prometia substituir a vinha do Senhor, expressão metafórica, pela vinha do Diabo, locução  direta e verdadeira, pois não faltaria nunca aos seus com o fruto das mais belas cepas do  mundo. Quanto à inveja, pregou friamente que era a virtude principal, origem de  propriedades infinitas; virtude preciosa, que chegava a suprir todas as outras, e ao próprio  talento.

As turbas corriam atrás dele entusiasmadas. O Diabo incutia-lhes, a grandes golpes  de eloqüência, toda a nova ordem de coisas, trocando a noção delas, fazendo amar as  perversas e detestar as sãs.
  
Nada mais curioso, por exemplo, do que a definição que ele dava da fraude.  Chamava-lhe o braço esquerdo do homem; o braço direito era a força; e concluía: Muitos  homens são canhotos, eis tudo. Ora, ele não exigia que todos fossem canhotos; não era  exclusivista. Que uns fossem canhotos, outros destros; aceitava a todos, menos os que não  fossem nada. A demonstração, porém, mais rigorosa e profunda, foi a da venalidade. Um  casuísta do tempo chegou a confessar que era um monumento de lógica. A venalidade,  disse o Diabo, era o exercício de um direito superior a todos os direitos. Se tu podes vender  a tua casa, o teu boi, o teu sapato, o teu chapéu, coisas que são tuas por uma razão jurídica e  legal, mas que, em todo caso, estão fora de ti, como é que não podes vender a tua opinião, o  teu voto, a tua palavra, a tua fé, coisas que são mais do que tuas, porque são a tua própria  consciência, isto é, tu mesmo? Negá-lo é cair no absurdo e no contraditório. Pois não há  mulheres que vendem os cabelos? não pode um homem vender uma parte do seu sangue  para transfundi-lo a outro homem anêmico? e o sangue e os cabelos, partes físicas, terão um  privilégio que se nega ao caráter, à porção moral do homem? Demonstrado assim o  princípio, o Diabo não se demorou em expor as vantagens de ordem temporal ou  pecuniária; depois, mostrou ainda que, à vista do preconceito social, conviria dissimular o  exercício de um direito tão legítimo, o que era exercer ao mesmo tempo a venalidade e a  hipocrisia, isto é, merecer duplicadamente.

E descia, e subia, examinava tudo, retificava tudo. Está claro que combateu o  perdão das injúrias e outras máximas de brandura e cordialidade. Não proibiu formalmente  a calúnia gratuita, mas induziu a exercê-la mediante retribuição, ou pecuniária, ou de outra  espécie; nos casos, porém, em que ela fosse uma expansão imperiosa da   força imaginativa,  e nada mais, proibia receber nenhum salário, pois equivalia a fazer pagar a transpiração.  Todas as formas de respeito foram condenadas por ele, como elementos possíveis de um  certo decoro social e pessoal; salva, todavia, a única exceção do interesse. Mas essa mesma  exceção foi logo eliminada, pela consideração de que o interesse, convertendo o respeito  em simples adulação, era este o sentimento aplicado e não aquele.

Para rematar a obra, entendeu o Diabo que lhe cumpria cortar por toda a  solidariedade humana. Com efeito, o amor do próximo era um obstáculo grave à nova  instituição. Ele mostrou que essa regra era uma simples invenção de parasitas e negociantes  insolváveis; não se devia dar ao próximo senão indiferença; em alguns casos, ódio ou  desprezo. Chegou mesmo à demonstração de que a noção de próximo era errada, e citava  esta frase de um padre de Nápoles, aquele fino e letrado Galiani, que escrevia a uma das  marquesas do antigo regime: "Leve a breca o próximo! Não há próximo!" A única hipótese  em que ele permitia amar ao próximo era quando se tratasse de amar as damas alheias,  porque essa espécie de amor tinha a particularidade de não ser outra coisa mais do que o  amor do indivíduo a si mesmo. E como alguns discípulos achassem que uma tal explicação,  por metafísica, escapava à compreensão das turbas, o Diabo recorreu a um apólogo: —  Cem pessoas tomam ações de um banco, para as operações comuns; mas cada acionista não  cuida realmente senão nos seus dividendos: é o que acontece aos adúlteros. Este apólogo  foi incluído no livro da sabedoria.
  

Capítulo IV

Franjas e franjas

A previsão do Diabo verificou-se. Todas as virtudes cuja capa de veludo acabava  em franja de algodão, uma vez puxadas pela franja, deitavam a capa às urtigas e vinham  alistar-se na igreja nova. Atrás foram chegando as outras, e o tempo abençoou a instituição.  A igreja fundara-se; a doutrina propagava-se; não havia uma região do globo que não a  conhecesse, uma língua que não a traduzisse, uma raça que não a amasse. O Diabo alçou  brados de triunfo.

Um dia, porém, longos anos depois notou o Diabo que muitos dos seus fiéis, às  escondidas, praticavam as antigas virtudes. Não as praticavam todas, nem integralmente,  mas algumas, por partes, e, como digo, às ocultas. Certos glutões recolhiam-se a comer  frugalmente três ou quatro vezes por ano, justamente em dias de preceito católico; muitos  avaros davam esmolas, à noite, ou nas ruas mal povoadas; vários dilapidadores do erário  restituíam-lhe pequenas quantias; os fraudulentos falavam, uma ou outra vez, com o  coração nas mãos, mas com o mesmo rosto dissimulado, para fazer crer que estavam  embaçando os outros.

A descoberta assombrou o Diabo. Meteu-se a conhecer mais diretamente o mal, e  viu que lavrava muito. Alguns casos eram até incompreensíveis, como o de um droguista  do Levante, que envenenara longamente uma geração inteira, e, com o produto das drogas,  socorria os filhos das vítimas. No Cairo achou um perfeito ladrão de camelos, que tapava a  cara para ir às mesquitas. O Diabo deu com ele à entrada de uma, lançou-lhe em rosto o  procedimento; ele negou, dizendo que ia ali roubar o camelo de um drogomano; roubou-o,  com efeito, à vista do Diabo e foi dá-lo de presente a um muezim, que rezou por ele a Alá.  O manuscrito beneditino cita muitas outras descobertas extraordinárias, entre elas esta, que  desorientou completamente o Diabo. Um dos seus melhores apóstolos era um calabrês,  varão de cinqüenta anos, insigne falsificador de documentos, que possuía uma bela casa na  campanha romana, telas, estátuas, biblioteca, etc. Era a fraude em pessoa; chegava a meter- se na cama para não confessar que estava são. Pois esse homem, não só não furtava ao jogo,  como ainda dava gratificações aos criados. Tendo angariado a amizade de um cônego, ia  todas as semanas confessar-se com ele, numa capela solitária; e, conquanto não lhe  desvendasse nenhuma das suas ações secretas, benzia-se duas vezes, ao ajoelhar-se, e ao  levantar-se. O Diabo mal pôde crer tamanha aleivosia. Mas não havia que duvidar; o caso  era verdadeiro.

Não se deteve um instante. O pasmo não lhe deu tempo de refletir, comparar e  concluir do espetáculo presente alguma coisa análoga ao passado. Voou de novo ao céu,  trêmulo de raiva, ansioso de conhecer a causa secreta de tão singular fenômeno. Deus  ouviu-o com infinita complacência; não o interrompeu, não o repreendeu, não triunfou,  sequer, daquela agonia satânica. Pôs os olhos nele, e disse-lhe:

— Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm agora franjas de seda,  como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres tu? É a eterna contradição  humana. 


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Nota:
Texto-fonte: Machado de Assis. Volume de contos. Rio de Janeiro :  Garnier, 1884. 

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