O CASTELO DE ALMOUROL
(Conto do Século XVII)
Ai, Virgem Santíssima! Não ganha a gente para sustos! Não bastava esta praga
dos castelhanos, que vem aí, dizem, um poder do mundo deles pelo Alentejo
abaixo?! Ó sr. Romão Pires, donde eles estão aqui à nossa quinta é muito longe?
— Não é nada perito, não, sra. Brízida de Sousa! Mas lá
diz o adágio: aos que muito correm quebram-se-lhes as pernas... Sossegue. O sr.
conde de Vila Flor anda com eles a contas e não é para graças.
— O sr. conde é muito bom senhor, bem sei, e de grande
fama sempre ouvi dizer... Mas se ele ficasse mal agora?
— Ficávamos nós pior, isso é verdade... Melhor o há-ide
fazer Deus. Oh, se meu senhor amo fosse vivo!... Não estava eu aqui posto ao
canto como um estafermo!...
— Ora não diga isso por quem é. O sr. Romão já andou de
mais por essas guerras e tragou bem maus bocados. Descanse, descanse, que o
merece... O que seria do mim sozinha nestes palácios confusos, sem pregar olho
há urnas poucas de noites com medo... E que medo! Fantasmas e almas do outro
mundo! Ó sr. Romão Pires, diga-me: o demônio — salva tal lugar — terá poder de
subverter consigo no inferno corpo e alma uma criatura batizada e remida nas
santas águas?.
— Conforme! Se não estiver em estado de graça!...
— Credo! S. Brás e S. João! Meus ricos santos da minha
alma, valei-me! Subvertida em corpo e alma?! Deus de misericórdia!... Sabe que mais? Quero que me
escreva já e já à sra. d. Madalena, contando-lhe tudo isto. Ela não pode
consentir que a sua criada velha uma noite destas desapareça nas garras do
inimigo tentador do gênero humano. Jesus!.. Diga-lhe que nos venha livrar deste
inferno, senão.., eu cá por mim fujo! Primeiro a salvação da minha alma...
— Também eu não gosto nada disto, sra. Brízida. Mas ânimo
forte e coração à larga. O demônio parece que entrou de semana conosco, e, pelo
que vejo, não leva jeito de nos querer largar. Desde que viemos para esta
quinta..
— Desde que viemos.., diz muito bem! Olhe, Brízida de
Sousa me não chamasse eu, se depois da primeira noite não metesse um bom par de
léguas entre o demônio e quem se preza de cristã batizada na freguesia de Santa
Catarina de Lisboa, nascida de pais católicos, tementes a Deus, e sem eiva, nem
leiva de mau sangue!... Mas o amor, que tenho à minha menina, coitadinha, tudo
me faz suportar com paciência... Espere! Não ouviu bulha? Assim a modo de
ferros arrastados pelo sobrado?
— Nada. Foi cadeira, ou banco deitado no chão lá em cima.
De dia não é que eles fazem das suas...
— É verdade. Guardam-se para a noite. Que noites, que
eternidade de noites, Senhor Deus de misericórdia! Parece que nunca a gente
lhes vê o fim. E que me diz então a estas despedidas de maio e entradas de
junho’?!...
— Não são de convidar, sra. Brízida! Velho sou, mas não me
lembro de ano mais carrancudo. Chuvas, relâmpagos, trovões e ventanias que
levam tudo pelos ares! Safa!
— E nós, coitados, neste ermo, neste desterro! Ai minha
Senhora Santa Bárbara! se a tua serva e devota não deixa aqui os ossos, grande
milagre será. Escute!... Agora não fqi engano !.. . Não ouviu risadas lá em
cima no vão das escadas?
— Não é nada. São os rapazes do feitor jogando às
escondidas.
— Pois, sr. Romão Pires, afirmo-lhe por minha alma, que em
Lisboa, quando minha senhora d. Madalena me chamou e me disse: “Brízida, a sua
menina anda fraquinha e enfezada, e o irmão também, os físicos não acertam com
o remédio, e frei João entende que. estas tosses do peito, assim teimosas, não
se despegam senão com a mudança de ares. Bem sabe, não posso sair da sociedade
por estes dias mais chegados — e é assim, coitada, por causa da sua demanda —,
acompanhe-me os meninos, e conte que fico tão sossegada como se eu mesma
fosse.. .“ Quando me disse isto, e eu lhe beijei as mãos pela mercê, se pudesse
adivinhar o que nos esperava aqui, asseguro-lhe que me encolhia como a
tartaruga na concha; e viesse quem quisesse... Isto não é palácio, nem quinta,
é um verdadeiro inferno. Deus salve a minha alma!
— A sra. Brízida não diz o que sente. Vindo a sra. d.
Maria e o sr. d. Pedro ninguém a arrancava de ao pé deles.
Tem razão. Ninguém! A ela criei-a, mamou o meu leite, e
sua mãe não lhe quer mais, não, deixe-me ter esta presunção... A ele vi-o
nascer, e os primeiros braços, que o embalaram, foram estes que há de comer a
terra. Tão pequeninos os conheci, e tão formosos e crescidos os vejo agora, que
não me posso acostumar a crer, que um dia hei de ter o gosto de os abraçar
homens!... Quando me ponho a olhar para eles, parece-me às vezes que não pode
ser, e que tudo isto é sonho..
— Então!? Eles fazem-se homens, e nós fazemo-nos velhos.
Não há remédio. O mundo vai assim.
— Bem sei. Mas, não os acha muito delgados, muito
afinadinhos? Dizem que é da idade e do muito crescer, e que hão de encorpar
depois. Deus queira! São os negregados estudos, que me ralam o corpo e a
alegria dos meus meninos. A sra. d. Maria manhãs e tardes inteiras à almofada,
bordando de branco, de matiz, e a ouro. E com que perfeição!... Que dedinhos de
fada aqueles! E o sr. d. Pedro? É mesmo uma dor de alma vê-lo dia e noite
amarrado à banca dos livros, e que livros! Latins, gregos, e não sei que outras
trapalhadas de retóricas... Quem tem
a culpa de tudo, o culpado de tudo o que pode acontecer, é o teimoso do sr.
frei João, que à fina força quer o sobrinho sábio. Depois que faleceu o pai
(Deus o tenha em glória!), não se nos tira de casa, e tanto há de quebrar-me a
cabeça ao meu menino, que um dia treslê.
Pois olhe, sr. Romão Pires, vá com o que lhe diz uma ruim cabeça: mais vale
asno vivo, que doutor morto.
— O sr. frei João — atalhou Romão Pires, aproveitando uma
pausa da sra. Brízida — é muito bom tio, e desde que morreu meu senhor e amo
tem sido um segundo pai para os meninos. Quer os sobrinhos prendados e de
grandes merecimentos. Não lho levemos a mal. Sangue ilustre bens da fortuna
possuem eles...
— Por isso mesmo! Não precisava atanazarmos tanto! Não mos
deixa respirar. Mestres disto, mestres daquilo, música para aqui, dança para
acolá.. . latins, filosofias, ai, que barafunda! Nem eu sei como as pobres
crianças não têm endoidecido. Cá por mim já o miolo há muito tempo me tinha
dado volta, tão certo como chamar-me Brízida de Sousa.
— Ninguém aprende sem trabalho, O sr, frei João não é
nenhum néscio...
— Nem eu lho chamo. Deus me livre. Néscio?... No convento
e na corte dizem que não há outro doutor como ele.
— Pois então deixe-o, que bem sabe o que faz. Estes
sobrinhos são a luz dos seus olhos, e depois tão meigos, tão aplicados.
— De mais, de mais, para a idade, sr. Romão Pires.
Assustam-me. Não parecem deste mundo, nem deste século, O sr. frei João é muito
extremoso, e o que faz é por desejar seu bem deles, mas, graças a Deus, a casa
é rica e não era preciso amofinar-me tanto os meus meninos.
O diálogo de que acabamos de ser fiéis e escrupulosos
expositores era travado em uma antiga sala, vasta e pouco alumiada por
estreitas janelas, cujas vidraças de postigo mal deixavam coar o dia. Das
paredes em reboco pendiam farrapos soltos dos panos, que as tinham forrado. Em
outras partes as colgaduras aderiam ainda aos filetes, e representavam em suas
pinturas desvanecidas figuras descomunais, debaixo de árvores anãs, e no meio
de arbustos e flores monstruosas. Os tetos cujas vigas lavradas inculcavam a
paciência de um artífice do século 15, subiam a grande altura, enegrecidos pelo
fumo da imensa chaminé de pedra, ornada de leões de mármore nas bases, e
rematada com um brasão de relevo alto, orlado de ramos de silvas e amoras.
O sr. Romão Pires, escudeiro de quase setenta anos de
idade, enxuto de carnes, e amarelo como uma cidra, erguia-se direito e aprumado
como uma das faias mais direitas da quinta. Nascera e fora criado desde a
infância naquela casa, e não conhecera nunca outros amos senão d. Vasco, e d.
Madalena. Acompanhara seu senhor, assim lhe chamou sempre, em todas as
campanhas da guerra da restauração, pelejando esforçadamente ao lado dele, e
assistindo aos cercos e batalhas mais notáveis desde 1642. A história dos
perigos, em que se tinha achado, e a narração das proezas de seu amo, enfeitada
de episódios e comentários, serviam de saboroso pasto aos serões da família,
obrigada a engolir como artigos de fé todas as aventuras da nova “Távola
Redonda”, que a imaginação do escudeiro entretecia na tela interminável de sua
cansativa Ilíada.
A sra. Brízida de Sousa, que tão avexada ouvimos
queixar-se das aparições, era matrona de mais de cinqüenta anos. Baixa, roliça
e risonha, suas faces lisas, cheias e coradas ainda tinham a frescura de duas
maçãs rainetas. As feições, pouco acentuadas, e quase infantis, sumiam-se entre
as roscas das nédias bochechas, e os seus ares beatos brigavam na candura
afetada com uma larga experiência da vida. Toda aquela pequena e buliçosa
matrona respirava asseio, cuidado, devoção, e azáfama. Colaça de d. Madalena, e
casada com um dos caseiros mais abastados do morgado, depois ama de leite da
filha primogênita da casa, enviuvara sem filhos, nem saudades do estado,
resumindo todos os afetos nos seus extremos pela fidalga, e na idolatria das
duas crianças, que trazia sempre na boca e no coração.
Trajava por costume roupas escuras. As toucas alvíssimas,
caídas talvez de mais para a testa, e o corte dos vestidos à beguina, afirmavam
o programa da sua virtude inacessível. Supersticiosa, e com a memória recheada
de orações, de visões, e devotas crendices, o seu defeito capital era ocupar-se
muito com as vidas alheias, enfiando um rosário de conselhos a propósito de
tudo, e. mexericando, por indiscreta, amos, criados, e hóspedes, mas sem
intenção ruim. Todos se encobriam dela, quanto podiam, porém ninguém a
aborrecia. Temiam-se da intemperança de suas confidências, mas confessavam a
bondade do seu caráter, que era na verdade excelente.
Romão Pires, tirando a estafada repetição de suas
campanhas, representava em tudo o oposto dela. Sério, como um santão,
erubesourado, e quase sempre com a aguda barba escondida na gargantilha, se
levantasse a vista e a curiosidade para os negócios dos outros, cuidaria faltar
a Deus, a si, e ao mundo. Sua boca era sagrada, e segredo que lhe caísse no
peito ficava sepultado nele profundamente.
Apesar destas qualidades contrárias e talvez mesmo pelas
possuir, era o conselheiro nato da sra. Brízida em todos os casos intrincados e
o defensor convicto dos seus medos e indiscrições. — “Boa alma! Boa alma! “ —
respondia aos que a censuravam. — “Tem o defeito de falar de mais, mas é uma
santa pessoa.” Brízida pagava-lho. Para escutar a milésima edição das
guerreiras epopéias do escudeiro, até fazia o sacrifício de suspender a
loquacidade própria!...
O sr. Romão Pires, amortalhado na eterna roupeta e numas
calças cor de pulga, esguio, comprido e hirto, com um par de óculos de aselha
montado no cavalete do interminável nariz, não desabotoava a seriedade do
rosto, nem dava férias ao enfado crônico senão para sorrir à sua comadre Brízida.
Aqueles olhos verdes desbotados não se animavam senão para festejar algum bom
dito da matrona, cujas falas açucaradas contrastavam com a voz rouca e soturna
do antigo campeão da independência portuguesa. A predileção honesta, mas
decidida dos dois um pelo outro, não escapara aos criados, e todos acreditavam
que, cedo ou tarde, o vínculo matrimonial ainda viria apertar mais
estreitamente a união de duas almas já tão íntimas.
A quinta, em que residiam havia duas semanas, situada na
margem direita do Tejo, estendia as matas e charnecas até a ribeira, que separa
Paio Pele da Vila de Tancos, da qual a casa, construída sobre uma colina,
distaria pouco mais de dois ou três tiros de espingarda. Era palácio antigo,
talvez fundado por meados do século 14, acrescentado, e reparado pelos fins do
16. As ameias, já derrubadas em muitos lanços de muro, proclamavam a sua velha
e legítima nobreza. Duas alas terminadas por torres fortificadas em tempos mais
remotos, saindo fora do corpo principal do edifício, formavam os lados do
espaçoso terreiro, rasgado diante da fachada, cujas doze janelas de arquitetura
irregular olhavam para ele. No terreiro se tinham jogado canas e corrido touros
nos aniversários festivos dos senhores.
A casa era antiga, como dissemos, e estava muito velha.
Nas juntas e articulações das pedras carcomidas cresciam tufos de viçosas
parietárias. Uma arcada sombria, sustida por grossas pilastras, resguardava as
entradas das duas escadas, que subiam em volta de caracol até o primeiro andar.
Outra porta, por baixo do centro da arcada, dava serventia por uma rampa para
os subterrâneos alumiados ao rés-do-chão por agulheiros. No piso nobre corria
uma fileira de salas fluas, frias e tristes, lajeadas de ladrilho. Sobre
corredores por onde o ar e uma luz escassa a custo circulavam, abriam as
alcovas suas portas envidraçadas. Seguiam-se muitos aposentos, mais ou menos
escuros, cruzados de passagens de escadas furtadas, e de portas falsas,
compondo desde o andar térreo até aos vãos debaixo dos telhados, uma rede inextricável,
um verdadeiro labirinto. A casa de jantar, forrada de carvalho em molduras,
prolongava-se à maneira de refeitório entre dois extensos corredores. Na
extremidade de um deles baixava uma escada para o jardim, na outra empinavam-se
os degraus da escada, que ia para os vãos, os quais por cima corriam em largura
e comprimento da casa. As torres comunicavam-se com o corpo do edifício por
duas portas esguias e abobadadas, aferrolhadas havia longos anos. Os eirados,
meio abatidos, vertiam-lhes dentro em torrentes as chuvas caudais do inverno.
O jardim, ornado de canteiros e de poiais azulejados, com
um tanque de pedra no meio, e um sátiro hediondo entornando a urna disforme,
criava algumas roseiras e craveiros degenerados entre urtigas, papoulas, e malmequeres
bravos. As hortas mais cuidadas pegavam com as terras de pão, cingidas de
valados altos, defendidos com piteiras. O aspecto do palácio era carregado de melancolia. Rodeado de
solidão justificava em sua tristeza as queixas, que ouvimos à Brízida. Por que
escolhera, porém, d. Madalena aquele ermo para abrigo dos filhos e dos criados,
quando tinha tantas propriedades mais alegres e reparadas ondas pudessem
respirar, longe do bulício da corte, o ar do campo?
D. Madalena descendia da família ilustre dos Coutinhos
Noronhas, de que fora tronco e progenitor o marechal Gonçalo Vaz Coutinho,
senhor do couto de Leomil, meirinho-mor por el-rei d. Fernando na comarca da
Beira. Formosa, discreta, e recatada, perdera seu marido, d. Vasco Mascarenhas
mestre de campo dos exércitos de d. João IV e d. Afonso VI, havia três anos, e
ainda não enxugara as lágrimas da viuvez. Em idade de merecer e de aceitar
requebros, tinha-se recolhido na sua casa de Lisboa, onde não recebia senão as
visitas de alguns amigos antigos da família, guiando-se em tudo pelos conselhos
do frei João Coutinho, seu irmão, grande sábio, e doutor em cânones e teologia,
o qual se encarregara de dirigir a educação literária dos sobrinhos.
D. Vasco Mascarenhas, tão distinto, pelo nas?cimento, como
pelas qualidades do caráter e do espírito, unira às propriedades de sua casa,
já mui rica, o senhorio da vila de Paio Pele e do castelo de Almourol, que sua
mulher lhe trouxera em dote, mas quase sempre ocupado na corte com os negócios
políticos e no serviço ativo das armas, só duas vezes visitara de fugida aquele
solar desamparado, que principiava a cair em ruínas, entregando o granjeia das
terras e a cobrança dos direitos do donatário, com excessiva confiança, diziam
os murmuradores, à probidade equívoca do feitor Paulo Rodrigues, camponês ávido
e ladino, que mais as desfrutava como usurário, do que as geria como
administrador. Avisada de que ‘o palácio e as fazendas se arruinavam naquelas
mãos viscosas, d. Madalena resolvera ver por seus olhos o verdadeiro estado das
coisas, na companhia de seu irmão, frei João Coutinho, ficando para depois
decidirem ambos o que julgassem mais - conveniente.
Outra razão serviu de estímulo para a partida dos filhos
da casa, dissimulada com o pretexto da necessidade da mudança de ares. Antigas relações de parentesco
ligavam a família dos Mascarenhas com o segundo ramo dos Noronhas, cujo
opulento morgado possuía grandes bens na mesma comarca, onde existia o solar
dos Coutinhos. O lugar do Arrepiado, que tão viçoso beija as águas do Tejo,
defronte de Tancos, com dilatados campos e charnecas, pertencia ao velho d.
Nuno, cujo filho único, d. Afonso de Noronha, saíra da corte para o exército do
Alentejo. D. Afonso, ilustre pelo berço, e já ilustre pelo valor, vira crescer
em beleza, primeiro com assombro, depois com paixão ardente, sua prima d. Maria
de Mascarenhas, e não encobrira de seu pai o amor que ela lhe inspirava. D.
Nuno confiou este segredo à ditosa mãe, e ela, não podendo desejar casamento
mais vantajoso, nem mais da sua escolha, antes de dar o sim, quisera, contudo,
sondar disfarçadamente as inclinações da donzela. Conheceu com alegria, que d.
Afonso começara a apoderar-se daquele coração, que em sua inocência principiava
a balbuciar apenas as primeiras e vagas aspirações de um sentimento, que não
sabia definir ainda.
Corria o ano de 1663. li João de Áustria, à frente das
armas castelhanas, tentara o derradeiro esforço, invadindo Portugal com
dezesseis mil soldados, e os nossos generais, juntando as forças, mal conseguiam
opor-lhe cinco ou seis mil. A cidade de Évora, que devia ser um dos baluartes
da resistência, acometida no dia 14 de maio, capitulara, depois de pouco
honrada defesa. ‘Este revés agravou os receios, e as partidas de cavalaria
inimiga chegaram a insultar Alcácer. D. Sancho Manuel convocara imediatamente
os oficiais a conselho, e só um voto, o dele, aprovara a conveniência de ferir
a batalha, que as ordens do governo prescreviam como remédio extremo. A perícia
de Schomberg, temendo como inevitável o desastre, viu nele o último precipício
da independência; mas a feliz temeridade do conde de Vila Flor, fechando os
olhos à prudência, aplaudia o encontro decisivo dos dois exércitos, como o
único meio, embora desesperado, de salvar a província e o reino da sujeição
estrangeira.
O povo de Lisboa, assustado, furioso, e alvorotado nas
praças, assaltara as casas de Sebastião César, do marquês de Marialva, e de Luís Mendes de Elvas. A todas
as horas se aguardavam notícias da marcha das tropas, e todos tremiam. Um lance
repentino podia sepultar para sempre as esperanças de Portugal!
A filha de d. Madalena, d. Maria de Mascarenhas, mais
velha dezoito meses do que d. Pedro, seu irmão, contava nesta época dezessete
anos, e sem vaidade merecia ser admirada como uma formosura completa. Talvez
que o único senão de tanta beleza fosse a sua mesma perfeição irrepreensível.
No rosto, graciosamente emoldurado pelas luxuosas tranças, confundiam-se os
lírios e as rosas na mais mimosa frescura. A boca, fina e espirituosa, corada
como um botão nacarado, breve como um suspiro, quando o sorriso a animava,
tinha uma expressão adorável. Nos olhos pretos, que as assedadas pestanas
cobriam às vezes de uma sombra de enlevada melancolia, a luz serena raramente
se inflamava, mas sua tranqüilidade lânguida deixava adivinhar, que se a paixão
dormia ainda, fácil lhe seria, despertando, iluminar de súbito e vivo fulgor
aquelas pupilas descuidadas. A mão parecia formada pelo modelo duma estátua
primorosa. O pé estreito e arqueado pousava-se tão leve e elegante, que a vista
como que involuntariamente se alçava a buscar nos ombros as asas de Sílfide. A
voz tinha condão sedutor. A estatura, um pouco acima de ordinária, e flexível
couro hástea de uma flor, também se dobrava como ela, parecendo que o esbelto
corpo de melindroso não podia com o doce peso da fronte, em que as mil graças
da primeira e namorada primavera competiam umas com as outras sem se vencerem.
As posições e os gestos em sua desafetada singeleza
respiravam a atração, que o cálculo debalde se esforça por imitar. Tudo
desmentia o artifício, O requebro das maneiras, o império irresistível da vista
e do sorriso, e a magia arrebatadora das falas e do semblante, nasciam
espontâneos, prendendo os sentidos e a admiração. A formosura da alma ainda era
maior, se é possível. O coração retratava-se na fronte límpida, e os infinitos
tesouros de ternura e de abnegação, que por ora Concentrava nos extremos de
filha e de irmã, quando se abrissem a afetos mais veementes, prometiam todas as
venturas ao amor ditoso. A pureza mais casta, a da ignorância sublime da
infância, vestia-lhe de candura todos os pensamentos. O pejo era nela tão
sensível, que afrontado não só faria corar o rosto, mas o corpo. Compassiva e
caridosa sabia conciliar a altivez do sexo com a brandura da índole e a firmeza
da vontade. Os dotes de espírito esmaltavam as qualidades morais.
Talvez não houvesse na corte dama ou donzela tão instruída
na lição das boas letras. Os melhores livros de prosa e as obras mais aceites e
castigadas dos poetas portugueses, espanhóis e italianos, escolhidos por frei
João, eram a sua companhia certa nas horas de repouso.
D. Maria prezava em d. Afonso de Noronha todas as
distinções que o exaltavam. Valia menos, porém, a seus olhos a ilustração do
berço, do que a elevação do caráter e a fidalguia das ações, que em idade tão
verde quase o haviam tornado um paladino. Não seria mulher, contudo, se não a
confirmassem neste juízo a presença insinuante do mancebo, a gentileza do seu
porte e a nobre expressão da sua fisionomia. Os olhos da donzela, sempre
pensativos, encontrando os olhos vivos e rasgados do primo, onde riam as
ilusões da vida e da juventude, nunca fugiam deles, senão a furto, e as rosas
mais acesas das faces confessavam o que tentaria encobrir em vão se acaso
soubesse dissimular. Nunca os lábios dos dois tinham soltado uma palavra, que
revelasse o que sentiam. Amavam- se. A alma dum trazia sempre gravada a alma do
outro, mas só a eloqüência da vista, indiscreta às vezes, traíra o segredo.
D. Afonso, não podendo por mais tempo calar a chama, que o
abrasava, tinha declarado ao pai, momentos antes de meter o pé no estribo e de
partir para a campanha, que este amor encerrava todo o futuro de suas
esperanças, entregando-lhe a sorte dele. Sabemos que d. Nuno não perdera a
ocasião, e que d. Madalena aplaudia o enlace proposto.
A chegada repentina dos filhos de d. Madalena, da aia e do
escudeiro, com alguns criados velhos, colheu de sobressalto o feitor Paulo
Rodrigues. Tomado de súbito o manhoso camponês soubera disfarçar o embaraço e
as apreensões, mas custara-lhe a conformar-se com a presença dos amos na casa, que havia tantos anos estava acostumado a
olhar mais como sua do que deles. Mandou varrer e assear à pressa duas salas e
algumas alcovas do andar nobre, para os hospedar, recolheu a mulher e os filhos
nos vãos do palácio, e ainda se lhe carregou mais a viseira quando soube que a
senhora e frei João Coutinho poucos dias se demorariam atrás da família.
No primeiro dia reinou profundo sossego, mas na segunda
noite, mal a última pancada do sino batera as doze horas, romperam as diabruras
nos quartos da aia e de Romão Pires. Apagaram-se todas as luzes de repente por
si mesmas. Estalaram nos corredores risadas infernais. soaram ruídos de ferros
e cadeias arrastadas, Só ao alvorecer é que tudo desapareceu.
O escudeiro, lembrado dos antigos feitos, apesar do
tremor, que lhe sacudia os membros, quis fazer e fez cara feia ao demônio. Na
terceira noite levantou-se da cama, engrolando padres-nossos e ave-marias, petiscou
lume, acendeu uma vela, abriu a porta de manso e saiu ao corredor, quase em
vestido de banho, mas com a comprida espada nua debaixo do braço. Depressa se
arrependeu. Aos primeiros passos um sopro forte apagou-lhe a luz, bramidos
roucos e próximos gelaram-lhe o sangue, e um clarão momentâneo e sulfúreo
mostrou-lhe, envolto no sudário, um espectro descomunal e ameaçador.
Esta horrenda visão deu-lhe com os brios em terra; e,
virando costas ao inimigo, logrou refugiar-se no seu catre com a cabeça debaixo
das roupas, ato de valor, em que a sra. Brízida de Sousa o acompanhava
conscienciosamente havia muitas horas. Pela manhã os dois velhos pareciam
desenterrados.
O aposento onde d. Maria de Mascarenhas dormia e uma
criada, não foi mais respeitado, e a donzela, transida de susto, contou em
vigília continuada as longas horas, que mediaram até ao amanhecer. D. Pedro
ainda padeceu mais. Acordando sobressaltado ao impulso de mãos brutais e no
meio de escuridão profunda, sentiu-se arrancar do leito e balouçar dentro das
cobertas entre uivos e risadas.
Paulo Rodrigues, pelas oito horas, veio saber da saúde dos
amos, e, ouvindo da sua boca a lastimosa história dos tormentos e perplexidades
noturnas, contentou-se com encolher os ombros, e observou serenamente, que em
vida de seu pai já tinham muito má fama as casas do andar nobre.
As noites seguintes não foram mais tranqüilas. Os
espectros e duendes tinham decerto reservado aquelas espaçosas salas, e os
corredores, para teatro de suas diabruras. Dir-se-ia até que o tempo conspirado
com eles os ajudava a aumentar o pavor dos hóspedes. Rebentaram as trovoadas de
maio tão carrancudas e violentas, que os céus se abriam em relâmpagos, e a
terra tremia com o ribombo dos trovões. As chuvas caíam tão impetuosas, que as
estradas ficaram convertidas em leitos de torrentes e as terras baixas em
lagoas. O Teto, cheio e empolado, alagava as margens, e suas águas batiam
enfurecidas contra os penedos sobre que se ergue o castelo de Almourol,
salvando por cima do cais em cachões de espuma. Ao oitavo dia, acalmaram-se as
tempestades, mas redobraram de força os malefícios noturnos, com terror e
espanto sumo dos recém-chegados.
Avexados, trêmulos e fora de si, reuniram-se todos e
determinaram mudar a residência para os aposentos do castelo, que não tinham
desabado ainda minados pelos séculos e pela indiferença; mas o feitor, que
estabelecera neles uma filha casada, dissuadiu-os do propósito, ponderando que
as salas e os quartos do velho edifício dos templários, além de frios e de mais
nus, que os do palácio, não eram menos perseguidos de visões. Por horas mortas,
exclamou ele, as almas dos cavaleiros tornavam aos sítios, onde tantos anos os
corpos tinham vivido. Nas guaritas de pedra, pelo adarve das muralhas, e nas
salas de abóbada, espectros cobertos com o manto branco, ornado da cruz
vermelha da famosa milícia religiosa, apareciam repentinamente, e no silêncio
da noite sentia-se o tinir das grevas e sapatos de ferro sobre as lájeas e
ouvia-se a voz das sentinelas. Até raiar a aurora não se calavam na sala de
armas as vozes, as risadas, e as blasfêmias. Escutando esta descrição
horrífica, Brízida de Sousa e Romão Pires olharam consternados um para o outro,
e depois de se persignarem devotamente, não querendo precipitar-se de Cila em
Caríbdis, preferiram suportar as travessuras menos estrondosas dos duendes da
quinta. Escreveram entretanto a d. Madalena, pedindo que os tirasse daquele
purgatório o mais cedo possível, ou que viesse sem demora em companhia do sr.
frei João desalojar os espíritos diabólicos, cuja audácia zombava da água benta
e exorcismos do vigário de Tancos. Os dois honrados servos confiavam que a
grande ciência do frade doutor e as virtudes do hábito de S. Domingos sairiam
vitoriosas com certeza da rebeldia de Satanás e da maldade dos seus assessores.
II
Em 1663 campeavam ainda intatas as muralhas, as torres, e
a cerca exterior da fortaleza reconstruída no ano de 1170 por d. Gualdim Pais,
defronte de Tancos. Cinco séculos, passando por cima delas, não haviam
desconjuntado as quadrelas gigantes, nem aluído o cimento indestrutível, que
mesmo ainda agora parecem desafiar a ação do tempo e o braço infatigável dos
demolidores. A ordem do Templo, transferida de Castro Marim para Tomar, a sede
da sua vitoriosa milícia, estendera rapidamente pela Estremadura os membros
robustos. Afonso 1, liberalizando-lhe doações e privilégios, e enriquecendo com
largos senhorios os monges soldados, confiara quase exclusivamente ao seu valor
a guarda e defesa dos territórios conquistados nela. Ega e Soure, Pombal e a
Redinha hasteavam as cores do Templo. A Cardiga, Ceras, e outras povoações,
cobriam-se também com as dobras do famoso estandarte bipartido. As chaves das
duas entradas da província estavam nas mãos dos cavaleiros. Defronte da moderna
Constança, na confluência dos dois rios, o castelo do Zêzere cortava o passo
aos agarenos da Beira Baixa, enquanto, suigindo do meio das águas, o castelo ao Almourol fechava o caminho aos vális do Alentejo e da Andaluzia.
As ruínas que vemos hoje debruçadas sobre o rio, contam
aos que sabem interrogá-las mais de uma página da epopéia portuguesa. Assentada
sobre um ilhéu quase oval de rochedos sobrepostos, amontoados talvez ali
caprichosamente pelo ímpeto de violenta erupção vulcânica, as elevadas torres
do velho castelo, que as voltas do Tejo ora encobrem, ora deixam descortinar de
longe, erguem-se mutiladas e enegrecidas pelo hálito mirrador dos séculos.
Grinaldas de heras penduram-se em festões das ameias desmoronadas, ou se
arraigam em tufos virentes nos interstícios dos panos rotos das muralhas. O
arrojo daqueles penedos, tão arremessados que o dedo de uma criança parece
suficiente para os fazer escorregar com o muro que os coroa, para o leito do
rio, espanta os olhos sobressaltados daquele equilíbrio ousado e quase
milagroso. Areias acumuladas, e alguma terra de aluvião formam o solo, onde
cravam as raízes os choupos, os salgueiros e os chorões, cujos troncos torcidos
se penduram de cima das fragas até roçarem as águas com as ramas descabeladas.
Fiteiras enormes criam em algumas partes os penhascos aprumados ou rebentam das
fendas das rochas meio precipitadas. Uma vegetação ativa e luxuosa veste de
verdura aquele caos de moles imensas sustidas há séculos no meio da ameaça
constante de uma queda instantânea.
No ano em que passaram os sucessos que refere esta
verídica história, o aspecto do sítio era sim bronco e alpestre, como a
natureza o formou, mas a assolação não o havia visitado ainda, agravando-lhe a
melancolia. Do lado do ocidente quatro torres circulares, levantadas como
sentinelas de granito a igual distância umas das outras, alçavam as frontes
torvas e já tostadas do tempo. Entre a segunda e terceira rasgava-se a porta
atualmente intransitável do castelo, com a sua volta de ogiva e grossos
batentes de castanho chapeado. No meio do guerreiro edifício avultava a torre
de menagem, e logo adiante, em curto intervalo, outra quadrada também, com
eirados cingidos de ameias. Uma janela ornada de lavores em ramos, aberta a
dois terços da altura, esclarecia os aposentos do segundo piso, enquanto da
parte oriental duas frestas do mesmo estilo davam claridade à sala de armas.
Cinco torres guarneciam o lado do nascente. Aí a muralha subia a grande altura,
acompanhando as sinuosidades do terreno, O cais ficava ao sul, e o fosso
natural, que rodeava os muros, agora cego de entulho, corria profundo e
despenhado. No interior da fortaleza, onde tudo hoje são ruínas e pedras
soltas, enroscadas de ervas e de silvas, onde os cactos silvestres brotam
gigantescos, era o pátio espaçoso por onde se entrava para os andares. Raras e
esguias frestas alumiavam aqueles aposentos, pouco espaçosos, mas enfeitados de
altas e ricas laçarias. Em 1663
a obra da destruição principiava a anunciar-se apenas.
Apesar de fluas, as salas ainda conservavam sua beleza severa, e nos eirados e
adarves, se não alvejava havia mais de trezentos anos o manto branco dos
templários, se algumas heras, trepando, se balouçavam à mercê do vento, e se as
torres e muralhas mostravam já a cor adusta, que é para os monumentos o que são
as cãs nos velhos, uru testemunho irrecusável de que viram e viveram muito, não
se tinham esmorecido, contudo, nem apagado ainda nenhum dos vestígios dos
grandes dias de luta. Almourol no meio do Tejo, semelhante a um titã com metade
do corpo fora das águas, ainda podia ameaçar, forte e intato, os que ousassem
arriscar se ao alcance de seus tiros. Firme e inexpugnável cuidava no vigor de
sua robusta velhice zombar dos séculos, como as crianças zombam dos anos, bem
alheio de supor, que na transição da idade grave para a decrepidez sua
decadência seria rápida, e que, espectro de granito, suas ruínas diriam às
gerações indiferentes da nossa época, que eterno e grande só é Deus!
Em uma das salas baixas da velha torre de menagem, toda de
abóbada, e ornada de mobília rústica, estavam sentados, um defronte do outro,
os dois ricaços da terra, ligados pelos vínculos do parentesco, e mais ainda
pelas raízes de interesses recíprocos. Feitor Antônio Rodrigues ajudava
piedosamente seu genro e consócio Pedro Lavareda a ingurgitar copiosas libações
de um vinho, que escaldaria outras goelas menos estanhadas. Sobre a grande mesa
de pau-santo e pés torneados, que servia de altar aos dois zelosos sacerdotes
do Baco daqueles contornos, avultava um alentado canjirão de barro bojudo, e
cheio até a boca. Principiara a anoitecer, e uma candeia enorme de três bicos,
semelhante a monstruoso aranhiço, alumiava a casa escassamente. Duas
espingardas, carregadas e engatilhadas, jaziam ao canto, prontas para servir à
primeira voz.
Antônio Rodrigues era corpulento, espadaúdo e reforçado.’
Faces largas e cheias, bastante roliças, pescoço curto e taurino, cabeça
enterrada entre os ombros, peito amplo e bombeado, e pernas grossas e firmes
denunciavam nele o vigor dum atleta unido a uma saúde inexpugnável. Inculcava
apenas sessenta anos, mas os vizinhos do seu tempo punham-lhe mais dez sem
receio de erro, e acertavam. Mas era uma velhice verde e jovial, que não se
inclinava ao peso dos anos, que o trabalho não desfalecia, antes reanimava, e
que prometia, assim viçosa e robusta, chegar a um século completo, rindo-se dos
catarros, dos reumatismos, e ainda mais da apoplexia fulminante prognosticada
pelo douto Esculápio,. o licenciado de Tancos, seriamente amuado por nunca ter
de receitar nem um xarope àquele cliente invulnerável às chuvas, aos frios, e a
todas as temeridades, a que um mancebo se não atreveria impunemente!
Antônio Rodrigues trajava à camponesa, com asseio, mas sem
bazófia. Gibão e calças de baeta escura, carapuça de lã, e o inseparável
varapau ferrado na ponta constituíam o uniforme do ativo Triptolemo. Uma grenha
de cabelos grisalhos, crespos e bastos, descia a afrontar-lhe a testa, pouco
sulcada de rugas. O sorriso enroscava-se perene nos beiços grossos e corados.
Conservava intatos ainda, e brancos de jaspe, como os de um tubarão, todos os
dentes. A barba baixava em andares sobre o peito, e os olhos castanhos,
pequenos, e maliciosos, afogados em’ gordura, dir-se-ia que espreitavam tudo,
meio encobertos. A voz aflautada causava espanto saindo daquele corpo.
Finalmente, o nariz grosso e cravejado de botões vinosos, rubros como rubins,
assumia dimensões quase fenomenais. A expressão da fisionomia era dúbia. O
observador no primeiro relancear apenas notaria a beatitude do comilão repleto
e cio bebedor insaciável. Atentando melhor, e, comparando o olhar, o gesto, e o
riso mudaria porém logo de conceito, divisando debaixo daquela máscara de
Sileno hercúleo as feições morais significativas da astúcia, do egoísmo brutal
e desentranhado, e de uma cobiça incapaz pela avidez de transigir com a honra,
com a consciência e com o dever,
Pedro Lavareda representava o antípoda de seu digno sogro
e tio quanto aos dotes físicos. Um helenista contemplando-os, tomaria um pelo
alfa, e o outro pelo ômega. O genro, magríssimo, quase esqueleto, assustava os
que o viam com o receio de que um dia lhe saltassem os ossos das tíbias e dos
fêmures soltos da ligaduras. Braços de pólipo, terminados por mãos de dedos
eternos, ombros agudos sobre os quais o fato dançava como posto em cima de um
cabide, rosto comprido, escaveirado, e macilento, acompanhado das melenas
esguias de um cabelo ruivo e aguado, testa nua que chega quase à nuca, peito e
ventre espalmados, olhos vesgos, tortos, encovados, mas vivos e sorrateiros,
boca rasgada quase até às orelhas, e beiços finos e desbotados, compunham a
lúgubre, carrancuda, e exótica pessoa da lavrador mais atilado, avarento e sem
escrúpulos daquelas imediações. Parecia fraco e a desfazer-se; mas as pernas
delgadas, como fusos, podiam andar léguas, os braços escamados encobriam uma
força além do comum, e os olhos vesgos só viam torto para os negócios alheios.
Retrato vivo do aspecto mortificado de um franciscano
penitente, o velhaco ria-se tanto para dentro come o feitor Antônio Rodrigues
se ria para fora. Usurário de nascença, hipócrita por índole e verdadeira
voragem de líquidos e sólidos, digeria como um avestruz e bebia como um areal.
Quando conversava, sempre em falas mansas, sabia chamar a tempo uns frouxos de
tosse e umas lágrimas de defluxo, que o ajudavam muito a engolir metade, e s
vezes duas terças partes das palavras, e é inútil acrescentar, que as palavras
engolidas eram sempre as que o podiam comprometer ou aproveitar aos outros.
Quando o caso o requeria, Pedro Lavareda, o valetudinário sadio, convertia-se
numa cascata de prantos. Tinha as glândulas lacrimais devassas e chorava como
um crocodilo. Ai dos inocentes que se deixavam orvalhar e amolecer por ele!...
Ficavam quase sempre sem camisa. No meio daquele rosto afiado erguia-se um
promontório imenso. Era o nariz adunco e aguçado na ponta, que descia quase a
beijar o lábio superior. Este nariz, delgado e membranoso, rematava a
semelhança que tinha aquela cara com o focinho da fuinha. Esquecia notarmos que
Antônio Rodrigues exercia com aplauso geral as funções de procurador de dois
conventos de freiras, de quatro irmandades, e que seu genro acumulava com
outros arrendamentos lucrativos a arrematação dos dizimo, e primícias da
comarca.
Os de Paio Pele pagaram por fim? — perguntou o feitor ao
genro pousando o caneco despejado em cima da mesa.
Com língua de palmo. Eles conhecem-me, sr. tio! —
respondeu Pedro Lavareda com uru sorriso avinagrado.
— Bem bom!... Sabes o que me dá cuidado agora, homem? É esta gente aqui metida. Tomara vê-los pelas costas.
— Pois acabe de os empurrar para a rua, que não deixam cá
saudades! — redargüia o outro com meio sorriso ácido.
— Isso é fácil de dizer, mas... Ao cabo de tudo, Pedro,
bem vês, os donos da casa são eles!..
— Que vão comendo as rendas e que nos deixem. Tão más são
elas!...
— Hum! Podiam ser melhores... Esse é o meu receio.
Trazemos isto muito de rastos, Pedro, e alguma língua ruim lho disse já ou lho
há-de dizer.
— Invejas! Falatórios!... — acudiu o genro entre dois
frouxos de tosse.
— Pois sim!... Olha, não seria melhor oferecermos um
nadinha mais pelas terras e ficarmos com elas de pedra e cal, do que
arrebentar-nos a castanha na boca uma destas manhãs?!
— Nanja eu, tio! Sangue ninguém mo tira à boa feição, e o
dinheiro é sangue.
— Mas homem ! ?...
Deixe lá, sr. sogro, não se meta a abelhudo onde o não
chamam, e deixe ir a água ao moinho. Já alguém falou em lhe levantar a renda da
alcaidaria?...
Não.
— Pois não faça andar o carro adiante dos bois, e coração
à larga. O que for soará.
Houve um minuto de pausa. Antônio Rodrigues coçava a nuca
com o indicador e o dedo médio da mão direita por baixo da carapuça, e rufava
sobre a tábua da mesa com todos os dedos da mão esquerda. As roscas da barba
sumiam-se-lhe na gola alta do gibão, e os olhinhos, homiziados entre as
pálpebras meio cerradas, luziam vivos e cintilantes como os do gato matreiro
que espreita a presa. Pedro Lavareda, menos apreensivo na aparência, limpava os
olhos chorosos com um quadrado de pano de linho, enquanto a unha tigrina de um
dos dedos da outra mão raspava uma nódoa conhecida e teimosa do calção sobre o
joelho. Ambos meditavam e se entendiam sem falar. O feitor de repente levantou
meio corpo de cima do mocho de pinho em que se assentava, colheu o canjirão
pelas asas, sopesou-o por um instante, e emborcando-o, encheu os dois canecos
de louça. Levou depois o seu à boca encurvando lentamente o braço, e despejou-o
em poucos sorvos, enquanto o sobrinho, coleando primeiro a língua pelos beiços,
libou com mais vagar e com gestos de amador consumado o néctar, que espumava na
grosseira taça.
— Rapaz, isto não vai bom!... — tornou Antônio Rodrigues
com um suspiro. — Anda mouro na costa, que eu bem o sinto e cá sei os botões
com que me abotôo. Esta gente de Lisboa aqui não gosto nada dela.
— Ora, tio, deixe-se de cismas!... De que tem medo? A aia
é uma tonta, uma pega doida. O escudeiro não passa de um espantalho de pardais,
e os meninos.., leram tanto que tresleram. Mostre-lhes um campo de cevada
nascida de oito dias, e verá se não lhe dizem que é trigo.
— Mas atrás da pega e do espantalho tenho muito medo que
venha o milhafre!...
— Qual milhafre?!...
— O frade!... — murmurou o feitor em voz abafada e com
sinais de verdadeiro susto.
— E então se vier?!... Lé no seu breviário! O sr. frei
João Coutinho sabe muito de leis e de casos, mas de lavouras não creio...
— Nisso te enganas. capaz de dar sota e ás ao mais
pintado! Criou-se no campo e administrou muito tempo os bens do convento.
—Ah! Ah!...
— E tenho meus longes de que, mais dia menos dia, aí o
temos pela proa com a sra. d. Madalena.
— Mau será!... — rosnou entre dentes o sobrinho declarando
com a unha do polegar crua guerra a uma verruga, que lhe ornava a ponta do
nariz. — Mau será, tio!... Mas não havemos de perder o sono por isso. Dizia no
mosteiro, onde me ensinaram, o padre-mestre frei Hilário, que para todo o
gênero de pecado deixou Deus remédio na sua Igreja...
Houve uma nova pausa. Os dois olhavam uru para o outro
calados mas pouco satisfeitos.
— Então que dizes, homem?!...
— Se o frade vier.., é pô-lo ao fresco, em vinte e quatro
horas.
— Estás mangando, sobrinho... Pô-lo ao fresco? O irmão da
senhora, o tio dos meninos?!...
— Tal e qual. Nem mais, nem menos!... Sacudi-lo e depressa.
— Ora! Bogalhos, sr. meu genro!... Sacudi-lo?!... Como?...
— Metendo-lhe medo.
— Ao sr. frei João, que é rijo como ferro e valente como
as armas ? 1... Vai dormir, Pedro, isso é sono.
— Sim senhor, meter-lhe medo, por que não?...
— Com as almas do outro mundo, aposto, como tens feito à
lambareira da aia e ao néscio do escudeiro? — atalhou Antônio Rodrigues com uma
risada de escárnio.
— Com as almas do outro mundo, sim senhor!... Cuida que o
frade não foge?... Há de vê-lo em camisa no pátio, mais branco do que os
lençóis da cama.
— Deixa-te de histórias, Pedro!... As visões com o frade
não pegam. O que apanhas é algum tiro.., e olha que é caçador que não erra.
— Pois deixe-o ser. Fico por mim. Entregue-me o negócio, e
verá...
— Enfim, lá sabes as linhas com que te coses... Mas toma
sentido contigo! O frade é ladino, sei que vem desconfiado de nós, e tenho
muito amor à pele.
— Sossegue. Eu também não tenho ódio à minha. Diga- me: se
frei João vier, onde o mete ?
— Onde o meto?!... Por quê?
— Preciso saber.
— No quarto verde, talvez...
Nada! Dê-lhe o quarto dos armários.
— Mas...
Houve outra pausa. O feitor olhava suspenso, coçando
sempre a nuca. O genro ria-se para dentro, raspando a nódoa do calção.
— Tu não me dirás o que intentas fazer, Pedro? Tenho medo
de ti e do teu risinho.
— Pois não tenha. Há de tudo correr como um brinco,
louvado Deus e sua mãe Maria Santíssima
Mau!... Se me resmungas nomes de santos, temos maroteira e
grande!.,. Pedro!... Toma cuidado! Nem uma beliscadura, nem uma picada de
agulha no sr. frei João... Não é por ele, é por mim. Nada de graças ‘pesadas !
Não me quero ver na cadeia comido de pés e mãos. Levem antes a breca as terras.
— Ai, tio!... Não se faça teimoso, e não esteja caluniando
as minhas intenções!...: Valha-me a Senhora Santa
— Mau! Tornas aos santos!... Que é isto?...
— São passos.
— E vozes... Chega à fresta e vê!
Pedro Lavareda obedeceu.
Um vento rijo e chuveirões puxados com força bateram- lhe
na cara, apenas abriu o pesado caixilho, e arriscou a cabeça para espreitar o
que se passava no rio. O devoto personagem recolheu à pressa o interminável e
esganado pescoço, rosnou duas interjeições apimentadas, e, enrolando um lenço
por cima da gola do gibão, tornou a afrontar, porém mais abrigado desta vez a
fúria do aguaceiro. Decorridos instantes de atenta observação, meteu-se para
dentro, cerrou o caixilho, e veio sentar-se defronte do tio com os sobrolhos e
a boca franzidos. Trazia estampada no afunilado rosto uma verdadeira elegia.
— Então?!... — disse o feitor já sobressaltado com a
mímica tétrica do sobrinho.
— Falai no mau, aparelhai o pau!... Ê o frade!...
— Hein! P — bradou Antônio Rodrigues, pondo-se de pé de um
pulo e enterrando a carapuça até aos ombros. — O frade?!...
— Em corpo e alma! Escrito e pintado!.., Tem razão, tio.
Anda mouro na costa.
— Vem a sra. d. Madalena’?...
— Não. Vem ele só. Isto leva água no bico, sr. meu sogro.
— Não te dizia eu, Pedro?... E agora ?...
— O dito, dito. Contas com Jorge e Jorge na rua.
— Sabes que mais, homem? Vai-me cheirando tudo isto muito
a chamusco. Não gosto nada da vinda do sr, frei João assim com este segredo...
Receio..
— Valaverunt
galhetas, sr. meu tio! como nós dizíamos no convento !. . O caso está feio,
e desta vez a raposa bem podia ficar sem
rabo!... Melhor, porém, o há de fazer Deus e sua Mãe Maria Santíssima, minha
madrinha!.. . Primeiro do que tudo enxuguemos outro caneco. Este bom vinho
alegra a vida e faz criar alma nova. Bom! Agora, a pé! Vá receber o sr. frei
João, que há de vir cansado e aborrecido da jornada.
— E tu?...
— Eu.. . fico para pôr em ordem umas coisitas. Escute, meu
tio! Dê ao sr. frei João o quarto dos armário. É essencial.
— Por quê?...
— Pela boca morre o peixe!... Depois verá. Adeus! Não faça
esperar sua reverendíssima e encomende-me nas suas orações à minha devota
Senhora Santa Ana...
— Mau!... Aí tornas tu com a ladainha dos santos!.
Pedro!... Olha lá!... Cuidado com a pele do sr. frei João!
— Vá descansado, tio, não há de haver novidade. Vem cear?
— Venho.
— Até logo.
E os dois consócios e parentes separaram-se.
III
— Com que então solto anda o demônio por estes palácios
confusos, e aflitos nos vemos com as suas diabruras, Brízida de Sousa! ?...
Muito me contam! Mau é isso!... E você que diz, Romão Pires? Parece ainda mais
pasmado do que esta boa velha!... Vamos lá, sr. Antônio Rodrigues, diga-me:
onde é o quartel-general de Belzebu? Há de saber decerto. É de casa!
— Eu, sr. frei João! .. Sei só que não se podre parar aqui
da meia-noite em diante!..
Ah! Sabe isso!?... Já não é pouco! Pois eu lhe digo: cuidei
que sabia mais. Acho-o tão roliço e anafado, que vejo que engorda com os
sustos.
— O sr. frei João gosta de brincar, mas em passando uma
noite aqui !.
— Ai, meu Jesus da minha alma! Anjo bento de Nossa Senhora
Aparecida!... É ‘da gente botar a fugir, ou de perder o juízo! — exclamou a
sra. Brízida, pondo as mãos.
— Então o sr. Antônio Rodrigues crê que esta noite haverá
ensaio geral de Satanás e da sua corte, para festejarem a minha chegada?...
Muito bem! Cá estamos. Cor contrictum et
humiliatum Deus non despiciet! Pelejaremos com’ as armas espirituais, que
são as melhores, e com as temporais, que também servem em certas ocasiões! Mas
como vamos de ceia?... No barco o mau tempo fez-nos jejuar, e sinto-me capaz de
tragar um carneiro assado! E o vinho, aquele bom vinho de 1655, ainda haverá
por cá uma gota dele? Há de haver. O sr. Antônio Rodrigues, o melhor copo de
Tancos e seus arredores, aposto que não está desprovido de munições de guerra?
Antônio sorriu e coçou a nuca.
A ceia está ao lume, e não se demora três credos. Quanto
ao vinho.., esteja vossa reverendíssima descansado.
— Sempre estive. Diga-me, Brízida, achei muito pálida a
sra. d. Maria. Ela tem passado pior?...
— Não, senhor! Pior não. Mas, com o susto destas noites
sem sono, a minha rica menina tem perdido as cores. Ela é tão delicadinha, tão
fraca!... Ó sr. frei João, a menina não podia ler um nadinha menos, mais o sr.
d. Pedro, e respirar mais algum ar em Lisboa?
— Não pode, não senhor!... — acudiu o frade em voz de
trovão. — Meus sobrinhos não se educam para espantalhos de sala!... E você é
multo atrevida em se meter a dar conselhos onde não a chamam!...
— Ai doce Jesus do meu coração! Que disse eu para ouvir
uma respostada assim?!... Sabe que mais, sr. frei João? Não sou moura, nem
perra, nem cativa. Pão em toda a parte s come, e se não fosse o amor dos meus
meninos, por esta (e beijou os polegares em cruz) que não aturava uma hora mais
nesta casa!
— Está bom, Brízida de Sousa, está bom! Não se inflame.
Sabe que a estimo, que todos em casa lhe queremos muito.., mas não me toque
nessa corda. Sei que me acusam de apoquentar os pequenos com os estudos, e que
eles não têm uma tosse, uma febrita, de que se não torne logo a culpa aos meus
livros!..
Vale mais asno vivo, do que doutor morto! — resmungou a
velha ainda irada e incorrigível.
— Mas eu é que não quero na minha família asnos.,. vivos,
ou mortos, mulher! — bradou o frade fazendo-se cor de púrpura e sorvendo duas
pitadas com o ruído de um furacão. — Safa ! Você é capaz de fazer perder a
paciência ao próprio Jó!... Bem! Não falemos mais nisto, e não faça caso dos
meus repentes... Sabe que não sou tão mau como pareço e que trago no coração os
meus dois rapazes...
— Sei! Sei! Por isso digo a todos: o sr. frei João berra,
esbraceja, é um destemperado, mas passa-lhe logo. Cão que ladra não morde.
Livre-nos Deus de uns sonsinhos que não quebram um prato, mas que ferram o
dente calados...
— Obrigado prelo elogio!.. Ou antes pela boa intenção.
Chame os pequenos. A ceia há de estar na mesa; e protesto que rue atiro a ela
cormo Santiago aos mouros!. . . Vamos.
A ceia correu farta e alegre, e Antônio Rodrigues foi
homem de palavra, regalando o hóspede com algumas garrafas de vinho maduro, que
frei João proclamou rival do melhor que se pudesse beber à mesa de el-rei. As
proezas gastronômicas do erudito dominicano tinham assombrado o próprio feitor,
cujo estômago insondável sepultava sem incômodo alimentos de todas as
qualidades, e se carregava de quantidades que eram o espanto e maravilha dos
que assistiam às suas repetidas campanhas pantagruélicas. Desta reputação
merecida Antônio Rodrigues viu-se obrigado a arriar bandeiras, O padre-mestre
não comia, devorava, não bebia, absorvia! Regando de copiosas libações cada
iguaria rústica, absolvendo as indigestas com um exorcismo culinário, fazendo
desaparecer do prato as menos pesadas com milagrosa rapidez, dir-se-ia que a
fome ibérica e peninsular, a fome de dentes caninos e apetite insaciável,
tomara a figura corpulenta daquele frade, para realizar em Tancos uma
verdadeira razia. Tudo tem de acabar, porém, e frei João, exalando um suspiro,
e cruzando as mãos sobre o volumoso ventre, deu a empresa por concluída,
murmurando com os olhos meio fechados, e a voz ainda sufocada do esforço: Deus nobis hoec otia fecít!
O reverendo, na meia sonolência em que se deixou ficar,
recostado no espaldar de couro da vasta poltrona, com as faces afogueadas, e o
barretinho de seda preta derrubado sobre a orelha esquerda, não oferecia
decerto a imagem dos piedosos e extenuados monges, que em épocas de mais fé
edificavam os fiéis com o exemplo de sua vida frugal e contrita. Parecia mais
um hipopótamo encalhado, do que um devoto filho de S. Domingos. Os instintos animais
prevaleciam, e a fadiga de uma digestão laboriosa fazia arfar aquela máquina de
mastigação contínua. D. Pedro e d. Maria contemplavam o tio com a admiração
sincera de criaturas delicadas, que semelhantes excessos não só confundem, mas
aterram. Brízida persignava-se e enfiava os bogalhos do seu rosário em oração
atribulada, esperando ver desabar de um momento para outro o padre colossal
fulminado por um ataque apoplético. Romão Pires ainda não pudera articular
palavra, embuchado com a vista da voracidade incrível do irmão dó seu amo.
Antônio Rodrigues, cujos olhinhos matreiros semelhavam no brilho duas
centelhas, desfazia a nuca raspando-a desesperadamente com a unha, e dizia
consigo que o frade, medindo as forças pela alimentação, devia prostrar um touro
com um murro, e abrir um tigre em dois, como o faria qualquer mastim faminto ao
gato descuidado, que lhe caísse de- baixo das presas.
— Deus nobis hoec
otia fecit! — tornou a repetir frei João depois de uma pausa de alguns
minutos, recuperando a costumada viveza e agilidade. — Podemos dizer com
verdade que ceamos como uns padres!... Minha sobrinha! Não gostei de a ver tão
triste. Que nuvem pesa sobre esse coração? São receios, ou saudades?!.. .
Sossegue que o há de ver são e escorreito...
— Quem, meu tio? — atalhou a donzela distraída.
— Pois quem há de ser senão aquele cavaleiro andante que
se despediu de nós e que há de voltar um dias destes coberto de louros...
Entendeu-me agora?
— Oh, meu tio!... acudiu ela fazendo-se vermelha como uma
rosa.
— Está bom! Está bom! Não digo mais nada... Romão Pires,
sabe que os castelhanos tomaram Évora, e que a estas horas hão de estar às mãos
com o nosso exército?... O que diz vossa sapiência?... Quem vence?!...
— Essa é boa, sr. padre-mestre. Quem deve vencer? O sr.
conde de Vila Flor.
— Deus o ouça! Bom é ter fé!... Mas! — e a larga fronte do
frade enrugou-se apreensiva, enquanto os sobrolhos descaíram a ponto de lhe
cobrirem quase as pálpebras superioras — Deus super omnia! — murmurou.
Seguiram-se alguns instantes de silêncio. De repente a
porta abriu-se com estrondo, e a longa, a defecada pessoa de Pedro Lavareda
entrou impetuosamente pelo aposento, com os olhos espantados, as faces
contraídas, e os cabelos ruivos espetados, representando a imagem viva do terror
e da consternação.
— Os castelhanos !... Os castelhanos!... Eles aí
A esta voz de pavor, e de imenso pavor, todos se acharam
de pé, não menos assombrados do que parecia estar o núncio da nova aterradora.
— Os castelhanos ! ?. . . — gritou frei João, saltando da
cadeira e empunhando maquinalmente um bastão enorme, espécie de dava, que o
acaso lhe mostrou encostado a um canto.
— Os cas... te... . lha... nos! — gemeu Brízida,
faltando-lhe os joelhos e erguendo as mãos.
— Os castelhanos?! — exclamou Antônio Rodrigues,
arrancando da cinta a longa navalha de ponta e mola e floreando-a como uma
espada, enquanto Romão Pires sacudia da bainha a durindana decrépita e
preguiçosa.
D. Maria, branca de cera e silenciosa, encostou-se à mesa
para não cair. D. Pedro, pelo contrário, com o rosto mais animado, os olhos
reluzentes, e a fronte levantada, apertou o punho da pequena espada de corte, e
deu alguns passos como se quisesse sair ao encontro do perigo.
— Os castelhanos! — tornou a bradar frei João — Às armas!
Sr. Antônio Rodrigues, chame os criados !... Façamos de Tancos e de Almourol
uma segunda Aljubarrota!...
Dizendo isto limpava a testa inundada de suor, e fulo de
raiva e de impaciência batia o pé como o corcel insofrido escarva o chão
desejoso de soltar a carreira.
— Mas não seria bom, meu tio, sabermos primeiro o que há,
quem deu a notícia, e onde estão os inimigos? — observou d. Pedro em voz mansa
e com extrema serenidade.
— Do manus! Bem acu tetegiste, puer! — gritou o frade
sentando-se comovido e ainda trêmulo. — Façamos conselho! Sr. Antônio
Rodrigues, em primeiro lugar: quem é e como se chama este correio de más
novas?.
— É meu genro e meu sobrinho. Chama-se Pedro Lavareda.
— Ah! Ah! Pedro Lavareda!? Nome incendiário e perigoso em
pessoa mais seca do que um cavaco!... Mas vamos ao que importa. Chegue à fala o
sr. Pedro... Lavareda! Quem lhe deu a má notícia que nos trouxe?...
— Um almocreve do Crato, que saiu de lá a bom fugir!...
— E que disse o almocreve?...
— Que os nossos foram derrotados, que ficaram todos ou
quase todos no campo, e que as guardas avançadas de d. João de Áustria estavam
a entrar no Crato!...
— Ah! Parece-me carnificina de mais!... E onde se deu a
batalha?
— Não mo soube dizer.
— Hum! E o seu almocreve onde está?...
— Partiu, caminho de Lisboa.
— Oh! E não sabe mais nada?
— Mais nada, sr. padre-mestre.
— Pois sr. Pedro... Lavareda, o seu nome queima!... Quer
um conselho de amigo?...
— Se vossa reverendíssima tiver a caridade de mo dar!...
— Tenho sim, senhor. Mande passear o Seu almocreve, durma
sobre o caso, como nós vamos dormir, creia que amanhã acorda convencido de que
engoliu uma peta mais comprida do que a sua pessoa, o que já não é pouco.
Os olhos felinos de Pedro, se fossem punhais, teriam
varado o frade, mas como o não eram, contentaram-se com a expressão humilde e
hipócrita de uma anuência servil, ao passo que os lábios franzidos arremedavam
sofrivelmente um sorriso boçal.
— Macte puer! — gritou frei João batendo no ombro. de d.
Pedro. — Tiveste mais juízo tu só, do que nós todos!... Isto é mentira e
mentira mal armada. Os espanhóis no Grato!... Uma batalha sem lugar sabido !..
. Um almocreve invisível !... Meninos, sosseguem! Tia Brízida, alma até
Almeida! Romão Pires, enfie-me na bainha esse eterno chifarote, espanto e
censura viva das espadas de hoje!...
— Então vossa reverendíssima já não quer que ponha de
aviso os criados? — disse Antônio Rodrigues, que tivera tempo de trocar algumas
palavras com o genro, colóquio que, apesar de ourto, não escapara a frei João.
— Não, senhor. Deixe-os descansados! Bem bastam logo as
almas do outro mundo!... Sabe que mais? Sinto-me moído, e uma boa cama depois
de uma boa ceia é o melhor remédio para estas moléstias. Onde é o meu quarto?
O feitor esgueirou um volver de olhos interrogador ao
sobrinho, que lhe respondeu com um aceno quase imperceptível de cabeça, e,
pegando em um maciço castiçal de prata denegrido, precedeu a espécie de
procissão de toda a família até ao aposento, onde o doutor dominicano havia de
passar a noite. A porta abria-se no topo do comprido corredor do centro; a
câmara de d. Pedro ficava-lhe à esquerda, e o pequeno camarim de Romão Pires à
direita. Meiam-se de permeio dois quartos fechados, e seguia-se a sala onde d.
Maria dormia, tendo ao pé o leito de Brízida de Sousa. O aposento, onde
Antônio Rodrigues conduzia frei João, nada inculcava de notável. Era uma casa
vasta, de três janelas, duas de peito e uma sacada, cujas paredes abertas em
partes conservavam ainda a par de largos pedaços das colgaduras de couro, que
em melhores dias as tinham ornado, altos e grandes armários de pau-santo. Os
tetos altos e enegrecidos e o pavimento carunchoso, gemendo e estalando com o
peso dos passos, atestavam a velhice e o desamparo. Um leito antigo, enorme, com
sobrecéu e cortinas outrora vedes, um velado de pau-santo arruinado, e um
contador, ainda mais antigo, completavam com três, ou quatro cadeiras coxas dos
pés, ou mutiladas dos braços, a mobília nada cômoda, nem opulenta. Coisa
singular! Neste quarto, em que a destruição minava, e esfarelava tudo, as únicas
coisas intatas e bem conservadas eram alguns painéis grandes, retratos de corpo
inteiro de guerreiros, damas, e monges, pintados a óleo, e metidos em soberbas
molduras de carvalho, lavradas de talha alta.
O padre-mestre rodeou com os olhos toda a casa, e
perguntou, sorrindo-se, ao feitor, se ela passava por ser também vexada pelas
almas do outro mundo. Antônio Rodrigues abaixou a sua imensa e redonda cabeça,
e Brízida benzeu-se devotamente.
— Bem!... Nesse caso é preciso estar armado e vigilante
para a batalha! Se escaparmos aos castelhanos do Grato, não quero que acabemos
nas garras dos trasgos e diabretes de Tancos. Sr. Antônio Rodrigues, faz favor!
Mande trazer para aqui o meu alforje, que ficou na sala de entrada. Sr. Pedro
Lavareda (esquisito nome!) é bom caçador por certo, e há de ter uma espingarda
de mais. Eu também gosto de dar o meu tiro de manhã cedo às perdizes e às
calhandras por essa charneca. Conto levantar-me com o sol, e dar um passeio pelas
fazendas, para tornar a ver estas terras em que não ponho os olhos há um bom
par de anos. Para não ir com as mãos abanando, levarei a sua espingarda... Não
a hei de tratar mal, descanse!
— Essa é boa, sr. frei João! A espingarda, eu, e tudo o
que mandar estão às ordens de vossa reverendíssima...
— Muito obrigado!... Olhe, não se esqueça de me trazer um
frasquinho de pólvora.
O tio e o sobrinho saíram e o frade, chamando de parte a
d. Pedro e a Romão Pires, e pondo as mãos no ombro de cada um deles, disse-lhes
em voz baixa;
— Latet anguis!
Anda aqui novelo! Este sr. Lavareda, com aquela face compungida de Longuinhos,
parece-me fino como um alambre... Os dois, ele e Antônio Rodrigues, o tio e o
sobrinho, estão conjurados contra nós... Por quê e para quê? O tempo o dirá.
Olho vivo, pois, Romão Pires! Se lhe aparecer visão, ou espectro, receba-mo às
cutiladas. Eu cá espero a pé firme os que vierem visitar-me, e a água benta,
que lhes deitar, há de chamuscá-los deveras.., Muito bem Aí vêm os dois
velhacos.
De feito o sogro e o genro chegavam, um com o alforje, e o
outro com a espingarda e o frasco.. Frei João falou um pedaço com eles, sempre
com a boca cheia de riso, pediu uma candeia grande para se alumiar até pela
manhã, e despediu-se de todos sem dar mostras da menor desconfiança.
— O padre prega-se na menina do olho, sobrinho! Toma
conta! — disse Antônio Rodrigues com o rosto carregado.
— Veremos, sr. meu
tio.
— Guarda-te de ele te pôr as mãos. É capaz de estourar um
boi.
— Melhor o fará Deus!
— Boas noites.
— Santa Ana e minha madrinha Nossa Senhora o levem na sua
santa guarda.
— Sentido! Nem uma beliscadura!
Enquanto os dois honrados camponeses conversavam em voz
baixa no fim do corredor, frei João Coutinho passava revista minuciosa no
quarto e parecia ficar inteirado de que as paredes e os armários não encobriam
portas falsas, nem os sobrados alçapões. Abrindo o alforje depois, tirou de
dentro um par de pistolas. Verificou a carga de ambas, renovou as escorvas,, e
passando à espingarda, carregou-a com todo o cuidado, meteu’lhe uma bala e
pousou-a engatilhada à cabeceira da cama. Feito isto foi à porta pé ante pé,
descerrou-a de manso, e em passo sutil encaminhou-se ao camarim de Romão Pires,
onde se demorou. À volta — davam onze horas achou tudo como o deixara, rezou
pelo seu breviário, e despindo só o hábito, abafou-se, conchegou as colchas,
costou a cabeça, e, decorridos instantes, os roncos assobiados de um sono
profundo anunciavam que tinha esquecido os castelhanos do Crato, as almas
penadas, e os virtuosos manigrepos rurais, cuja lealdade não julgara de bons
quilates.
Teria repousado duas horas, quando despertou
sobressaltado. O leito, pesado e maciço, arfava balouçado como um barco sobre
vagas inquietas. O frade entreabriu os olhos. A vela do castiçal estava em um
terço, e a luz da candeia brilhava esperta. O quarto continuava deserto e
silencioso. Entretanto o leito não parara de dançar, e, fato mais singular
ainda!, a roupa da cama fugia devagar, sem aparecer mão, ou braço que lhe
tocasse. Frei João deixou-se ficar, tomando somente uma posição que lhe
consentisse saltar no chão de um pulo para travar .a luta com os duendes e
espectros. Tinha as duas pistolas sobre o velador à cabeceira, e a espingarda
ao pé. Entretanto, apesar de animoso e resoluto, o suor principiava a
borbulhar-lhe na testa e um calafrio suspeito a correr-lhe a espinha dorsal.
— Isto não vai bem!... Queria antes ruído, grilhões
arrastados... a cena do costume. Esta calada e estes empuxões invisíveis...
sinceramente seria de fazer tremer as carnes, se eu não soubesse!... Credo!...
Lá se foi a roupa até aos pés da cama..: Não gosto da graça! Que é aquilo? As
pinturas andam! ?... Oh!...
Aqui pôs termo ao solilóquio, e sentando-se na cama com os
poucos cabelos, que lhe restavam, erriçados em volta da calva, com as feições
contraídas e a boca pasmada, cravou as pupilas cinzentas e dilatadas no painel,
que lhe ficava fronteiro e que representava um cavaleiro da Idade Média coberto
de toda a armadura, mas com o rosto sem viseira e os olhos ameaçadores. Aquela
figura severa, como que destacada da moldura, parecia mover-se por si lenta e
lugubremente.
Frei João quis
duvidar do testemunho das sentidos, cio.nvencer se de que era vítima de uma
ilusão. Esfregou as pálpebras, beliscou os braços para despertar a
sensibilidade, mas o retrato continuava a adiantar-se, e um sorriso tétrico
como que lhe franzia os beiços. Ao mesmo tempo os ouvidos afiados do dominicano
colheram, não sem grande pavor, o som amortecido de ferros que rangiam, e um
gemido longo e soturno, semelhante ao. gemido doloroso de aflitivo estertor.
— Vade retro,
Satanas! — murmurou saindo da cama cheio de terror. — Ne nos inducas in tentatione.
Apenas soltara a meia voz estas palavras, um sopro,
semelhante a furacão medonho, engolfou-se pelo quarto, e apagou de golpe as
duas luzes.
Frei João recuou até as cortinas do leito, e. sentiu
vergarem-lhe os joelhos, e fugir-lhe o ânimo. Estendendo a mão nas trevas
maquinalmente encontrou uma das pistolas pousadas sobre o velador, e os dedos
apertaram também maquinalmente a coronha.
De repente um clarão sulcou a escuridade, enchendo o
aposento de luz sulfúrea, e no meio de chamas lívidas surgiu e cresceu uma
forma gigantesca envolta nas dobras de sudário branco e flutuante. Esta figura
descomunal, cuja cabeça era uma caveira, lançava chispas pelas cavidades dos
olhos, e acenava, com os longos ossos de esqueleto. O frade tremeu, e
acudiram.lhe aos lábios descorados as preces e os exorcismos recomendados pela
Igreja contra os malefícios infernais. Mas as armas espirituais não produziram
efeito, e, apesar da perturbação momentânea, tornou a tomar corpo no seu
espírito a idéia de que podia ser aquele espetáculo uma visualidade, ensaiada
para zombar da sua boa fé. Revestindo-se pois, de valor e decisão, apontou
rapidamente ao vulto, que tinha diante, a pistola, que não largara da mão, e
disparou-a. Observando que o tiro não causara abalo ao fantasma, pegou depois
na outra pistola, e com pontaria mais segura desfechou o gatilho. Uma risada
estridente respondeu ao estrondo da explosão, e o espectro, mostrando as duas
balas, arremessou-as ao chão onde o padre-mestre as ouviu rolar. Logo em
seguida o clarão sumiu-se de súbito, espessas trevas envolveram o quarto. Frei
João, quase desmaiado, caiu em uma das cadeiras próximas do leito, tolhido por
um tremor geral em todos os membros, e paralisado na fala e nos movimentos pelo
mais profundo terror.
Ao mesmo tempo as hostilidades diabólicas não eram menos
ativas e violentas nas câmaras dos outros hóspedes. Romão Pires, apenas se
deitara e escondera a cabeça debaixo da roupa, com premeditação pouco em
harmonia com os brios de suas faladas campanhas, sentiu apagar-se-lhe a luz, e
puxarem-lhe pelos pés o magro e aprumado corpo até o estatelarem de pancada e
sem dó nas tábuas do sobrado. O grito de medo e de dor, que soltara
estremunhado, teve em resposta um coro de risadas em falsete. Brízida de Sousa
acordou espavorida ao frio gelado de um verdadeiro regador de. água que lhe
entornavam sobre a cabeça, e saltando por a casa em roupas menores, e com a
boca escancarada, para bradar, era colhida no ar por mãos pouco caridosas e
nada leves, que de empurrão em empurrão a levaram aos tombos até o corredor,
onde veio encontrar em anágua o honrado escudeiro, tiritando de susto e com uma
das mãos em cada face esbofeteada pelos duendes, com vigor que bem acusava uma
força sobrenatural. D. Maria, encolhida e semimorta de pavor, não padecera
senão o terror de ouvir estalar ao pé do leito gargalhadas dissonantes, e
arrastar ferros.
No quarto de d. Pedro, os trasgos haviam sido menos
felizes, porque tinham chegado mais atrasados. Dotado de ânimo varonil e
refletido, sereno em presença do perigo, e pouco disposto a acreditar na
intervenção dos poderes infernais, o mancebo resolvera velar a noite sem se
despir, e com a espiada nua ao lado, tinha-se entregado à leitura de um livro
novo, que em breve lhe absorveu a atenção. Feriu-lhe de repente o ouvido a
matinada das investidas no corredor e nos aposentos próximos. Apagando a luz, e
empunhando a espada, aguardou silencioso.
A sua porta abriu-se de feito, pouco depois, e pareceu-lhe
aperceber dois vultos na escuridão. Deixou-os adiantar, seguiu-os, e quando um
se debruçava sobre o leito vazio, e o outro, assoprando num buzio tirava dele
sons roucos e medonhos, caiu às pranchadas sobre o músico do Averno, ao qual o
instrumento escapou dos dedos, e que, amedrontado, principiava a revolver-se
pela casa, gritando como um simples mortal derreado por uma sova. O outro
fantasma volveu logo em auxílio do agredido, mas uma cutilada de d. Pedro,
aparada no braço ao que pareceu, deitou-o pela porta fora como um vendaval,
enquanto o companheiro tomava o mesmo caminho, mas de rastos e gemendo.
D. Pedro, decorridos instantes, feriu lume, acendeu a vela
do castiçal e da candeia, e examinou atentamente o campo de batalha. Jaziam no
chão um búzio dos usados pelos ranchos da apanha da azeitona, um lençol com
lágrimas de tinta encarnada, e uma caveira de papelão pintada de amarelo.
O mancebo sorriu-se. Aqueles despojos eram o corpo de
delito e ao mesmo tempo documento vivo da conspiração tramada. Algumas gotas de
sangue, caídas no pavimento desde metade da casa até a porta, provaram-lhe que
um dos atores do drama noturno retirara ferido e assinalado. D. Pedro pegou o
castiçal, e seguindo o rasto de sangue pelo corredor, notou que parava no topo,
onde só existia uma parede grossa, sem nenhuma saída aparente. Informado do que
desejava verificar, voltou atrás, e encaminhou-se ao camarim de Romão Pires. À
porta viu duas figuras brancas ajoelhadas. Deteve-se um pouco até se afirmar. A
velha aia e o dorido escudeiro, ambos de joelhos, e ambos transido de medo e de
frio, esgotavam um defronte do outro todo o vocabulário de rezas e de
interjeições atribuladas, sem se atreverem a volver aos aposentos. D. Pedro,
não podendo suster o riso, falou-lhes, animou-os, e, mandando-os acabar de
vestir, passou a visitar a câmara de frei João.
O frade ainda jazia na mesma posição. Conservava-se quase
exânime na ampla cadeira. Vendo entrar o sobrinho com o castiçal em uma das
mãos e a espada nua debaixo do braço, estremeceu, e esbugalhou os olhos, mas
não se moveu.
D. Pedro aproximou-se da mesa, acendeu a outra vela, e sem
proferir palavra examinou cuidadosamente o aposento.
Nenhum indício! O inimigo triunfante não deixara despojos.
Terminando o exame pôs o castiçal em cima do velador, colocou a espada ao pé do
castiçal, e, volvendo para junto da cadeira, onde o tio, como paralisado,
observava tudo silencioso, disse-lhe:
— Mas o que foi isto?!..
Frei João respondeu com um suspiro, e correu a mão pela
testa ainda inundada de suor.
— Estas pistolas disparadas, estas balas no chão!... Não
me dirá o que sucedeu?!...
Outro suspiro mais alto.
— Por onde entraram eles?...
O dominicano, que a vista do sobrinho ia reanimando a
pouco e pouco, meneou a cabeça com tristeza, fez um esforço para levantar meio
corpo da cadeira, e apontou com o dedo para o quadro, cuja figura vira minutos
antes soltar-se da moldura, e encaminhar-se para ele.
Ah!... Foi por esta porta?! — observou o sobrinho, pegando
no castiçal e correndo a luz por todo o quadro de cima a baixo. De repente
exclamou: — Olhe!
— O quê? — disse o frade, pondo-se de pé, mas tão abatido
e trêmulo, como se acaso se levantasse convalescente de longa enfermidade.
— Venha, meu tio, e veja!
De feito um dos enfeites de talha mais elevado movia-se
como um botão debaixo dos dedos do mancebo, e a pesada moldura, cedendo à
pressão, abriu-se lentamente.
— A.h!... — exclamou frei João.
— Aqui tem a porta... e o segredo de tudo.
— Velhacos! - bramiu o dominicano irritável, recuperando
repentinamente as cores, a elasticidade dos membros, e a viveza dos olhos.
Mas abaixando a vista, deu com as duas balas das pistolas
ainda no chão, e uma nuvem turvou-lhe outra vez o rosto. Mostrando-as ao
sobrinho narrou-lhe o que sucedera e ouviu da boca do mancebo a história da sua
luta com os duendes.
Frei João ficou mudo e suspenso por momentos, semelhante a
um imenso ponto de interrogação.
— Saiu daqui depois de carregar as armas? — perguntou d.
Pedro.
— Cinco minutos quando muito. Cheguei ao camarim de Romão
Pires.
— Foi o que bastou. Não mexeu na espingarda? Está certo?
— Como de te estar vendo.
— E meteu-lhe uma bala de calibre?
— Seguramente.
— Muito bem, quer ver?
E d. Pedro, pegando na vareta, descarregou a arma, tirando
as buchas e a pólvora. Da bala não achou notícia.
— Ah ! Tratantes!... — rugiu o frade, fechando os punhos,
e rangendo os dentes, pletórico de cólera.
— Podiam atirar-lhe com três balas aos pés em vez de duas!
Tinham tido o cuidado...
— De mas empalmar?! Sobrinho! Juro que hão de pagar-mo
caro!. . . Só atanazados!
— Dá licença que lhe dê um conselho?
— Dize, rapaz. Estás um homem, e tens mostrado valer mais
do que nós todos.
— Se quer apanhar o rato na ratoeira, não faça bulha.
— Bem! Bem! Do manus!
Qui nescit dissimulare nescit regnare
— acudiu frei João, esfregando as mãos — Ah! Patifes! O que eles se terão rido
à minha custa!...
— Deixe! Riram-se hoje? Amanhã chorarão! Boas noites, meu
tio. Sossegue, que bem o precisa.
---
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Nota:
Texto-fonte: Rebelo da Silva: “Contos e Lendas”, de 1866, da edição publicada em 1973 pela Editora Três
Texto-fonte: Rebelo da Silva: “Contos e Lendas”, de 1866, da edição publicada em 1973 pela Editora Três
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