OS ANJOS
No atelier do pintor Álvaro, a palestra vai
animada. Lá está o poeta Carlos, muito aprumado, muito elegante, encostado a um buffet
renaissance,
sacudindo o pé em que a polaina branca irradia, mordendo o seu magnífico Henry Clay
de três mil réis. Mais adiante, o escultor Júlio, amorosamente inclinado para a
viscondessinha de Mirantes e namoradamente mirando o seu belo colo desnudado, faz-lhe
uma preleção sobre o amor e a beleza: e ela, agitando com indolência o leque
japonês, sorri, e crava nele os olhos maliciosos, deixando-o admirar sem escrúpulo
o seu colo, — como para o desafiar a dizer se a própria Vênus de Milo o possui
tão branco e tão puro... No sofá, o romancista Henrique discute música de Wagner
com Alberto, — o maestro famoso, cujo último poema sinfônico acaba de fazer um
ruidoso sucesso. São 5 horas da tarde. Serve-se o chá, em lindas taças de
porcelana
chinesa; e, nos cálices de cristal, brilha o tom aceso do rhum da
Jamaica.
Agora,
parece que Júlio, o escultor, arriscou um galanteio mais forte. Porque a
viscondessinha, corada, morde os lábios e, para disfarçar a sua comoção, contempla
um quadro grande, que está na parede do atelier, cópia de Raphael.
Júlio,
falando baixo, inclina-se mais, ainda mais:
— Então,
viscondessa, então?
Ela,
para desviar a conversa, pergunta uma banalidade:
—
Diga-me, senhor Álvaro, o senhor, que é pintor, deve saber isso... Porque é que,
em todos os quadros, os anjos são representados só com cabeça e asas?
De canto
a canto da sala, suspende-se a conversa. Álvaro, sorrindo, responde:
— Nada
mais fácil, viscondessa... queremos assim indicar que os anjos só têm espírito;
damo-lhes unicamente a cabeça em que reside o pensamento, e a asa que é o
símbolo da imaterialidade...
Mas o
poeta Carlos, puxando uma longa fumaça de seu cheiroso Henri Clay, adianta-se
até o meio da sala:
— Não é
só isso, Álvaro, não é só isso... Vou dar à viscondessa a verdadeira explicação
do caso...
Tomou um
gole de rhum,
e continuou:
—
Antigamente, nos primitivos tempos da Bíblia, os anjos não tinham apenas cabeças
e asas: tinham braços, pernas e tudo. Depois do incêndio de Gomorra, foi que
Deus os privou de todo o resto do corpo, deixando-lhes apenas a cabeça que é a
sede do pensamento e a asa que é o símbolo da imaterialidade....
— Depois
do incêndio de Gomorra? — perguntaram todos — porque?
— Já vão
ver!
E
Carlos, dirigindo-se a uma estante, tirou uma Bíblia, abriu-a e leu:
— IX.
Então, como as abominações daquela cidade maldita indignassem ao Senhor, mandou
ele que dois Anjos fossem converter os perversos e aconselhar-lhes que se
deixassem de abusar das torpezas da carne. X. E foram os Anjos, e bateram às
portas da cidade. IX. E os habitantes foram tão infames, que os deixaram
entrar, e assim que os tiveram dentro, também os violentaram, abusando deles..."
Houve um
silêncio constrangido no atelier...
— Aí
está. E o Senhor, incendiou a cidade, e, para evitar que os anjos continuassem
a estar expostos a essas infâmias determinou que, dali em diante, eles só
tivessem cabeças e asas...
A
viscondessinha, dando um muxoxo, murmurou:
— Shoking!
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Nota bibliográfica:
Olavo Bilac (com o pseudônimo de Bob): "Contos para Velhos", obra digitalizada por: NEAD – Núcleo de Educação à Distância, da Universidade da Amazônia.
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