UMA POR OUTRA
Era por sessenta e tantos... Musa,
lembra-me as causas desta paixão romântica, conta as suas fases e o seu
desfecho. Não fales em verso, posto que nesse tempo escrevi muitos. Não; a
prosa basta, desataviada, sem céus azuis nem garças brancas, a prosa do
tabelião que sou neste município do Ceará.
Era no Rio de Janeiro. Tinha eu vinte
anos feitos e malfeitos, sem alegrias, longe dos meus, no pobre sótão de
estudante, à Rua da Misericórdia. Certamente a vida do estudante de matemáticas
era alegre, e as minhas ambições, depois do café e do cigarro, não iam além de
um e outro teatro, mas foi isto mesmo que me deitou "uma gota amarga na
existência". É a frase textual que escrevi em uma espécie de diário daquele tempo, rasgado anos
depois. Foi no teatro que vi uma
criaturinha bela e rica, toda sedas e jóias, com o braço pousado na borda do
camarote, e o binóculo na mão. Eu, das galerias onde estava, dei com a pequena
e gostei do gesto. No fim do primeiro ato, quando se levantou, gostei da
figura. E daí em diante, até o fim do
espetáculo, não tive olhos para mais
ninguém, nem para mais nada; todo eu era ela.
Se estivesse com outros colegas, como
costumava, é provável que não gastasse mais de dois minutos com a pequena; mas
naquela noite estava só, entre pessoas estranhas, e inspirado. Ao jantar,
fizera de cabeça um soneto. Demais, antes de subir à galeria quedara-me à porta
do teatro a ver entrar famílias. A procissão de mulheres, a atmosfera de
cheiros, a constelação de pedrarias entonteceram-me. Finalmente, acabava de ler
um dos romances aristocráticos de Feuillet, exemplar comprado por um cruzado
não sei em que belchior de livros. Foi nesse estado de alma que descobri aquela
moça do quinto camarote, primeira ordem, à esquerda, Teatro Lírico.
Antes de acabar o espetáculo, desci a
escada, quatro a quatro, e vim colocar-me no corredor, defronte do camarote de
Sílvia. Dei-lhe este nome, por ser doce, e por havê-lo lido não sei onde.
Sílvia apareceu à porta do camarote, logo depois de cantada a ópera, metida em
capa rica de cachemira, e com uns olhos que eu não pudera ver bem de cima, e
valiam, só por si todas as jóias e todas as luzes do teatro. Outra senhora
estava com ela, e dois homens também deram-lhes os braços, e eu acompanhei-as
logo. A marcha foi lenta, eu desejava que não acabasse mais, mas acabou. Sílvia
entrou no carro que esperava a família, e os cavalos pegaram do meu tesouro e o
levaram atrás de si.
Nessa
mesma noite escrevi os meus versos A Visão. Dormi
mal e acordei cedo. Abri a janela do
sótão, e a luz que entrou no meu pobre aposento
ainda mais aumentou o meu delírio da véspera. Comparei as minhas alfaias de estudante com as sedas, cachemiras,
jóias e cavalos de Sílvia, e compus umas
sextilhas que não transcrevo aqui para não dar ciúmes à minha tabelioa, a quem já
as recitei, dizendo
que não prestavam para nada. E creio que não. Se as
citasse não seria mais que por veracidade
e modéstia, mas prefiro a paz doméstica ao complemento do escrito. Em verdade,
não há negar que por esses dias andei
tonto. Não seria exatamente por aquela moça do teatro, mas por todas as outras da mesma condição e de iguais
atavios. Tornei ao teatro dali a dias, e
vi-a, em outro camarote, com igual luxo e a mesma graça fina. Os meus companheiros de
escola não me permitiram fitá-la exclusivamente: mas como deveras amavam a música,
e a ouviam sem mais nada, eu aproveitava os melhores trechos da ópera para
mirar a minha incógnita.
— Quem é aquela moça? perguntei a um
deles, à saída do saguão.
— Não sei.
Ninguém me disse nada, não a
encontrei mais, nem na Rua do Ouvidor, nem nos bairros elegantes por onde me
meti, à espera do acaso. Afinal abri mão deste sonho, e deixei-me estar no meu
sótão, com os meus livros e os meus versos. Foi então que a outra moça me apareceu.
O meu sótão dava para o morro do
Castelo. Numa daquelas casas trepadas no
morro, desordenadamente, vi um vulto de mulher, mas só adivinhei que o era pelo vestido. Cá de longe,
e um pouco de baixo, não podia distinguir as feições. Estava afeito a ver
mulheres nas outras casas do morro, como
nos telhados da Rua da Misericórdia, onde algumas vinham estender as roupas que
lavavam. Nenhuma me atraía mais que por
um instante de curiosidade. Em que é que aquela me prendeu mais tempo? Cuido que, em primeiro
lugar, o meu estado de vocação amorosa, a necessidade de uma droga que me
curasse daquela febre recente e mal extinta. Depois, — e pode ser que esta fosse
a principal causa, — porque a moça de que trato parecia justamente olhar de
longe para mim, ereta no fundo escuro da janela. Duvidei disto a princípio, mas erigi também o
corpo, ergui a cabeça, adiantei-a sobre o telhado, recuei, fiz uma série de
gestos que revelassem o interesse e a admiração. A mulher deixou-se estar, — nem
sempre na mesma atitude, inclinava-se, olhava para um e outro lado, mas tornava logo, e continuava ereta no
fundo escuro.
Isto aconteceu de manhã. De tarde,
não pude vir a casa, jantei com os rapazes.
Na manhã seguinte, quando abri a janela, já achei na outra do morro a figura da
véspera. Esperava-me, decerto; a atitude era a mesma, e, sem poder jurar que lhe vi algum
movimento de longe, creio que fez algum. Era natural fazê-lo, caso me
esperasse. No terceiro dia
cumprimentei-a cá de baixo; não respondeu ao gesto e pouco depois entrou. Não tardou que voltasse,
com os mesmos olhos, se os tinha, que eu
não podia ver nada, estirados para mim. Estes preliminares duraram cerca de duas semanas.
Então eu fiz uma reflexão filosófica,
acerca da diferença de classes; disse comigo que a própria fortuna era por essa
graduação dos homens, fazendo com que a
outra moça, rica e elegante, de alta classe,
não desse por mim, quando estava a tão poucos passos dela, sem tirar dela os
olhos, ao passo que esta outra, medíocre ou pobre, foi a primeira que me viu e
me chamou a atenção. É assim mesmo, pensei eu; a sorte destina-me esta outra
criatura que não terá de subir nem descer, para que as nossas vidas se
entrelacem e nos dêem a felicidade que
merecemos. Isto me deu uma idéia de versos. Lancei-me à velha mesa de pinho, e
compus o meu recitativo das Ondas: "A vida é onda dividida em duas..." "A vida é
onda dividida em duas..." Oh! quantas vezes disse eu este recitativo aos
rapazes da Escola e a uma família da Rua
dos Arcos! Não freqüentava outras casas; a família compunha-se de um casal e de uma tia, que
também fazia versos. Só muitos anos depois vim a entender que os versos dela
eram maus; naquele tempo achava-os excelentes. Também ela gostava dos meus, e
os do recitativo dizia-os sublimes. Sentava-se ao piano um pouco desafinado, logo que eu lá entrava, e, voltada
para mim:
— Sr. Josino, vamos ao recitativo.
— Ora D. Adelaide, uns versos que...
— Que o quê? Ande: "A vida é
onda dividida em duas..."
E eu:
— A vida é onda dividida em duas...
— Delicioso! exclamava ela no fim,
entornando os olhos murchos e cobiçosos.
Os meus colegas da Escola eram menos
entusiastas; alguns gostavam dos versos, outros não lhes davam grande valor,
mas eu lançava isto à conta da inveja ou da incapacidade estética. Imprimi o
recitativo nos semanários do tempo.
Sei que foi
recitado em várias
casas, e ainda agora
me lembro que, um dia, passando pela Rua do Ouvidor, ouvi a uma senhora dizer a
outra: "Lá vai o autor das Ondas".
Nada disso me fez esquecer a moça do
morro do Castelo, nem ela esquecia. De longe, sem nos distinguirmos um ao outro, continuávamos aquela contemplação
que não podia deixar de ser muda, posto que eu às vezes desse por mim a falar
alto: "Mas quem será aquela
criatura?" e outras palavras equivalentes. Talvez ela perguntasse a mesma coisa. Uma vez,
lembrando-me de Sílvia, consolei-me com esta reflexão:
"Será uma por outra; esta pode
ser até que valha mais. Elegante é; isso
vê-se cá mesmo de longe e de baixo."
Os namoros dos telhados são pouco
sabidos das pessoas que só têm namorado nas ruas; é por isso que não têm igual
fama. Mais graciosos são, e romanescos
também. Eu já estava acostumado a eles. Tivera muitos, de sótão a sótão, e mais
próximos um do outro. Víamo-nos os dois, ela estendendo as roupas molhadas da
lavagem, eu a folhear os meus
compêndios. Risos de cá e de lá, depois rumo diverso, um pai ou mãe que
descobria a troca de sinais e mandava fechar as janelas, uma doença, um arrufo e tudo acabava.
Desta vez, justamente quando eu não
podia distinguir as feições da moça, nem
ela as minhas, é que o namoro estava mais firme e continuava. Talvez por isso mesmo.
O vago é muito em tais negócios; o desconhecido atrai mais. Assim foram
decorrendo dias e semanas. Já tínhamos horas certas, dias especiais em que a
contemplação era mais longa. Eu, depois
dos primeiros tempos, temi que houvesse engano da minha parte, isto é, que a
moça olhasse para outro sótão, ou simplesmente para o mar. O mar não digo: não
prenderia tanto, mas a primeira hipótese era possível. A coincidência, porém,
dos gestos e das atitudes, a espécie de
respostas dadas à espécie de perguntas que eu lhe fazia, trouxeram-me a
convicção de que realmente éramos nós dois os namorados. Um colega da Escola, por esse
tempo meu camarada íntimo, foi o
confidente daquele mistério.
— Josino, disse-me ele, e por que é
que não vais ao morro do Castelo?
— Não sei onde fica a casa.
— Ora essa! Marca bem a posição cá de
baixo, vê as que lhe ficam ao pé e sobe;
se não estiver
na ladeira, há
de estar no
alto em algum lugar...
— Mas não é só isto, disse eu; penso
que se lá for e achar a casa é o mesmo que nada. Poderei conhecê-la, mas como é
que ela saberá quem eu sou?
— É boa! Tu ficas conhecendo a
pessoa, e escreve-lhe depois que o moço
assim e assim lhe passou pela porta, em tal dia, a tantas horas, é o mesmo do
sótão da Rua da Misericórdia.
— Já pensei nisso, respondi dali a um
instante, mas confesso-te que não quis tentar nada.
— Por quê?
— Filho, o melhor deste meu namoro é
o mistério...
— Ah! poesia!
— Não é poesia. Eu, se me aproximo
dela, posso vir a casar, e como me hei de casar sem dinheiro? Para ela esperar
que eu me forme, e arranje um emprego...
— Bem; é então um namoro de passagem,
sempre dá para versos e para matar tempo.
Deitei fora o cigarro, apenas
começado (estávamos no Café Carceler), e
dei um murro no mármore da mesa; acudiu o criado a perguntar o que queríamos,
respondi-lhe que fosse bugiar, e após alguns instantes declarei ao meu colega
que não pensava em matar tempo.
— Vá que faça versos; é um desabafo,
e ela merece-os; mas matar o tempo, deixá-la ir aos braços de outro...
— Então... queres... raptá-la?
— Oh! não! Tu bem sabes o que eu
quero, Fernandes. Eu quero e não quero; casar é o que eu quero, mas não tenho
meios, e estou apaixonado. Esta é a
minha situação.
— Francamente, Josino; fala sério,
não me respondas com chalaças. Tu estás
deveras apaixonado por essa moça?
— Estou.
— Essa moça, quero dizer, esse vulto,
porque tu não sabes ainda se é moça ou
velha.
— Isso vi; a figura é de moça.
— Em suma, um vulto. Nunca lhe viste
a cara, não sabes se é feia ou bonita.
— É bonita.
— Adivinhaste?
— Adivinhei. Há um certo sentido na
alma dos que amam que faz ver e saber as coisas ocultas ou obscuras, como se
fossem claras e patentes. Crê, Fernandes; esta moça é bela, é pobre, e está
doida por mim; eis o
que te posso afirmar, tão certo corno
aquele tílburi estar ali parado.
— Que tílburi, Josino? perguntou-me
ele depois de puxar uma fumaça ao
cigarro. Aquilo é uma laranjeira. Parece tílburi por causa do cavalo, mas todas as laranjeiras têm um cavalo, algumas
dois; é a matéria do nosso segundo ano.
Tu mesmo és um cavalo pegado a uma laranjeira, como eu; estamos ambos ao pé de um muro, que é
o muro de Tróia, Tróia é dos troianos, e
a tua dama naturalmente cose para fora. Adeus, Josino, continuou ele erguendo-se
e pagando o café; não dou três meses que
não estejas doido, a menos que o doido não seja eu.
— Vai caçoar para o diabo que te
leve! exclamei furioso.
— Amém!
Este Fernandes era o chalaceiro da
Escola, mas todos lhe queriam bem, e eu mais que todos. No dia seguinte foi
visitar-me ao sótão. Queria ver a
casa do morro
do Castelo. Verifiquei
primeiro se ela estava
à janela; vendo que não, mostrei-lhe a casa. Reparou bem onde era, e acabou dizendo-me que ia passar por lá.
— Mas eu não te peço isto.
— Não importa. Vou descobrir a caça,
e direi depois se é má ou boa. Ora espera; lá está um vulto.
— Entra, entra, disse-lhe puxando por
ele. Pode ver-te e desconfiar que estou publicando o nosso namoro. Entra e
espera. Lá está, é ela...
A vista de meu colega não dava para
descobrir de baixo e de longe as feições
da minha namorada. Fernandes não pôde saber se ela era feia ou bonita, mas
concordou que o ar do corpo era elegante. Quanto à casa estava marcada; iria rondar por ela, até
descobrir a pessoa. E por que não
comprava eu um binóculo? perguntou-me. Achei-lhe razão. Se na ocasião achasse
igualmente dinheiro teria o binóculo na manhã seguinte; mas, na ocasião
faltava-me dinheiro e os binóculos já então não eram baratos. Respondi com a verdade, em
primeiro lugar; depois aleguei ainda a
razão do vago e do incerto. Era melhor não conhecer a moça completamente. Fernandes riu-se e
despediu-se.
A situação não mudou. Os dias e as
semanas não fizeram mais que apartar-nos um ao outro, sem estreitar a
distância. Mostras e contemplações de longe. Cheguei aos sinais de lenços e ela
também. De noite, tinha vela acesa até tarde; ela, se não ia até à mesma hora, chegava
às dez, uma noite apagou a vela às onze. De ordinário, apesar de já não ver a luz dela, conservava a minha
acesa, para que ela dormisse tarde,
pensando em mim.
As noites não
foram assim seguidas, desde princípio; tinha hábitos
noturnos, passeios, teatros, palestras ou cafés, que eram grande parte da minha
vida de estudante; não mudei logo. Mas
ao cabo de um mês, entrei a ficar todas
as noites em casa. Os outros estudantes notavam a ausência; o
meu confidente espalhava que eu
trazia uns amores secretos e criminosos.
O resto do tempo era dado às musas.
Convocava-as, — elas vinham dóceis e
amigas. Horas e horas enchíamos o papel com versos de vária casta e metro,
muitos dos quais eram logo divulgados pelas gazetas. Uma das composições foi
dedicada à misteriosa moça
do Castelo. Não tinham outra indicação; aquela
pareceu-me bastante ao fim proposto, que
era ser lido e entendido. Valha-me Deus! Julguei pelas suas atitudes daquele dia que realmente os versos
foram lidos por ela, entendidos
finalmente e beijados.
Chamei-lhe Pia. Se me perguntares a
razão deste nome, ficarás sem resposta; foi o primeiro que me lembrou, e talvez
porque a Ristori representava então a Pia de Tolomei. Assim como chamei Sílvia à outra,
assim chamei Pia a esta; mania de lhe dar um nome. A diferença é que este se
prestava melhor que o outro a alusões poéticas e morais; atribuí naturalmente à desconhecida
a piedade de uma grande alma para com uma pobre vida, e disse isto mesmo em
verso, — rimado e solto.
Um dia, ao abrir a janela, não vi a
namorada. Já então nos víamos todos os dias, a hora certa, logo de manhã. Posto
que eu não tivesse relógio, sabia que acordava cedo, à mesma hora; quando
erguia a vidraça, já a via à minha espera, no alto. Daquela vez a própria
janela estava fechada. Estaria dormindo,
esperei; o tempo correu, saí para o almoço
e para a Escola. O mesmo no dia seguinte. Supus que seria ausência ou moléstia;
esperei. Passaram-se dois dias, três, uma semana. Fiquei desesperado; não
exagero, fiquei fora
de mim. E não pude dissimular esse estado; o meu confidente
da Escola desconfiou que havia alguma coisa, eu contei-lhe tudo. Fernandes não
acabava de crer.
— Mas como, Josino? Pois uma criatura
que nem sequer conheces... é impossível! A verdade é que nunca a viste; mirar
de longe um vulto não é ver uma pessoa.
— Vi-a, gosto dela, ela gosta de mim,
aí tens.
— Confessa que amanhã, se a
encontrares na rua, não és capaz de a conheceres.
— O meu coração há de conhecê-la.
— Poeta!
— Matemático!
Tínhamos razão os dois. Não é preciso
explicar a afirmação dele; explico a
minha. O meu amor, como vistes, era puramente intelectual; não teve outra origem. Achou-me, é verdade,
inclinado a amar, mas não brotou nem cresceu de outra maneira. Tal era o estado
da minha alma, — e por que não do meu tempo? — que assim mesmo me governou. Acabei amando um fantasma. Vivi por
uma sombra. Um puro conceito, — ou
quase, — fazia-me agitar o sangue. Essa mulher, — casada ou solteira, feia ou bonita, velha ou
moça, — quem quer que era que eu não conheceria na rua, se a visse, enchia-me
de saudades. Fiquei arrependido de não a ter buscado no morro; haver-lhe-ia escrito,
saberia quem era, e para onde fora, ou se estava doente. Esta última hipótese
sugeriu-me a idéia de ir ao morro procurar a casa. Fui; ao cabo de algum tempo e trabalho dei com a
casa fechada. Os vizinhos disseram-me
que a família saíra para um dos arrabaldes, não sabiam qual deles.
— Está certo que é a família Vieira?
perguntei eu cheio de maquiavelismo.
— Vieira? Não, senhor; é a família
Maia, um Pedro Maia, homem do comércio.
— Isso mesmo; tem loja na Rua de S.
Pedro, Pedro ou Sabão...
— A rua não sabemos; não se dá com
vizinhos. Há de crer que só ultimamente nos cumprimentava? Muito cheio de si.
Se é seu amigo, desculpe...
Fiz um gesto de desculpa, mas fiquei
sem saber a loja do homem, nem o
arrabalde para onde fora; sabia só que tornaria à casa, e era muito. Desci
animado. Bem: não a perdi, ela volta, disse comigo.
— E terá pensado em mim?
Resolvi pela afirmativa. A imaginação
mostrou-me a desconhecida vendo passar
as horas e os dias, onde quer que estava com a família, a cuidar no
desconhecido da Rua da Misericórdia. Talvez me tivesse feito na véspera da
partida algum sinal que não pude ver. Se cuidou que sim, estaria um pouco mais
consolada, mas a dúvida poderia assaltá-la, e a inquietação complicaria a
tristeza.
Entramos nas férias. A minha idéia
era não ir à província, ficar por qualquer
pretexto, e esperar a volta da minha diva. Não contava com a fatalidade. Perdi minha mãe; recebi carta do
meu pai, dizendo estar à minha espera. Haveis de crer que hesitei? Hesitei; mas
a ordem era imperiosa, a ocasião triste,
e meu pai não brincava.
— Vou, não tenho remédio, mas...
Como dizer à misteriosa Pia que ia à
província, que voltaria dois ou três
meses depois, e que me esperasse? A princípio, lembrou-me incumbir o meu colega
Fernandes de a avisar, de manter o sacro fogo, até que me achasse de volta.
Fernandes era assaz engenhoso e tenaz para
desempenhar-se disto; mas abri mão dele, por vergonha. Então lembrou-me outra
coisa; não deixaria o sótão, conservá-lo-ia alugado, mediante a garantia do correspondente de meu
pai, a pretexto de não haver melhor lugar para residência de estudante. Quando
voltasse, já ela estaria ali também. Não
se enganaria com outro, porque nunca a janela se abriria na minha ausência; eu,
apenas tornasse, recomeçaria a conversação de outro tempo. Isto feito, meti-me
no vapor. Custa-me dizer que chorei, mas chorei.
Tudo o que vos acabo de dizer é
vergonhoso, como plano, e dá idéia de uma sensibilidade mui pouco matemática;
mas, sendo verdade, como é, e consistindo nesta o único interesse da narração,
se algum lhe achais, força é que vos diga o que se passou naquele tempo.
Embarquei, e fui para a província. Meu pai
achou-me forte e belo, disse que tinha boas notícias minhas, tanto de rapaz
como de estudante, dadas pelo correspondente e outras pessoas.
Gostei de ouvi-lo e cuidei de
confirmar a opinião, metendo-me a estudar nas férias. Dois dias depois,
declarou-me ele que estava disposto a
fazer-me trocar de carreira. Não entendi. Ele explicou-me que, bem pensado, era melhor bacharelar-me em
direito; todos os seus conhecidos
mandavam os filhos para o Recife. A advocacia e a magistratura eram bonitas
carreiras, não contando que a Câmara dos Deputados e o Senado estavam cheios de
juristas. Todos os presidentes de província não eram outra coisa. Era muito
mais certo, brilhante e lucrativo. Repetiu-me isto por dias. Eu rejeitei os
presentes de Artaxerxes; combati as suas
idéias, desdenhei da jurisprudência, e nisto era sincero; as matemáticas e a
engenharia faziam-me seriamente crer que o estudo e a prática das leis eram
ocupações ocas. Para mim a linha mais curta entre os dois pontos valia mais que
qualquer axioma jurídico. Assim que, não
era preciso ter nenhuma paixão amorosa para me animar a recusar o Recife; é
certo, porém, que a moça do Castelo deu algum calor à minha palavra. Já agora queria
acabar um romance tão bem começado.
Sobretudo havia em mim, relativamente
à moça do Castelo, uma aventura particular. Não queria morrer sem conhecê-la. O
fato de haver deixado o Rio de Janeiro sem tê-la visto de perto, cara a cara, pareceu-me
fantástico. Achei razão ao Fernandes. A distância tornava mais dura esta circunstância, e a minha alma
começou a ser castigada pelo delírio. Delírio é termo excessivo e ambicioso,
bem sei; maluquice diz a mesma coisa, é
mais familiar e dá a esta confissão uma nota de chufa que não destoa muito do
meu estado. Mas é preciso alguma nobreza de estilo em um namorado daqueles tempos,
e namorado poeta, e poeta cativo de uma sombra. Meu pai, depois de teimar algum
tempo no Recife, abriu mão da idéia e consentiu em que eu continuasse as matemáticas. Como me mostrasse
ansioso por tornar à Corte, desconfiou que andassem comigo alguns amores
espúrios, e falou de corrupção carioca.
— A Corte sempre foi um poço de
perdição; perdi lá um tio...
O que lhe confirmou esta suspeita foi
o fato de haver ficado por minha conta o sótão da Rua da Misericórdia.
Custou-lhe muito aceitar este arranjo, e
quis escrever ao correspondente; não escreveu, mas agora pareceu-lhe que o
sótão ficara em poder de alguma moça minha, e como não era de biocos, disse-me
o que pensava e ordenou-me que lhe confessasse tudo.
— Antes quero que me fales verdade,
qualquer que seja. Sei que és homem e
posso fechar os olhos, contanto que te não percas... Vamos, o que é.
— Não é nada, meu pai.
— Mau! fala verdade.
— Está falada. Meu pai escreva ao Sr.
Duarte, e ele dirá se o sótão não está
fechado à minha espera. Não há muitos sótãos vagos no Rio de Janeiro; quero
dizer em lugar que sirva, porque não hei de ir para fora da cidade, e um
estudante deve estar perto da Escola. E aquele é tão bom! continuei com o pensamento na minha Pia.
Não pode imaginar que sótão, a posição, o tamanho, a construção; no telhado há
um vaso com miosótis, que dei à gente de baixo, quando embarquei; hei de comprar
outro.
— Comprar outro? Mas tu estudas para
engenheiro ou para jardineiro?
— Meu pai, as flores alegram, e não
há estudante sério que não tenha um ou
dois vasos de flores. Os próprios lentes...
Hoje dói-me escrever isto; era já uma
troça de estudante, tanto mais condenável
quanto meu pai era bom e crédulo. Certamente, eu possuía o vaso e a doce flor
azul, e era verdade que o tinha dado à gente da casa; mas vós sabeis que o resto era invenção.
— E depois és poeta, concluiu meu pai
rindo.
Parti para a Corte alguns dias antes
do prazo. Não esqueço dizer que, durante as férias, compus e mandei publicar na
imprensa fluminense várias poesias datadas da província. Eram dedicadas "à
moça do Castelo", e algumas falavam de janelas cerradas. Comparava-me aos pássaros que emigram, mas prometem voltar
cedo, e voltam. Jurava neles que
tornaria a vê-la em breves dias. Não assinei esses versos; meu pai podia lê-los, e acharia assim
explicado o sótão. Para ela a assinatura era desnecessária, visto que me não
conhecia.
Encontrei a bordo um homem, que vinha
do Pará, e a quem meu pai me apresentou
e recomendou. Era negociante do Rio de Janeiro; trazia mulher e filha, ambas
enjoadas. Gostou de mim, como se gosta a bordo, sem mais cerimônia, e viemos conversando
por ali fora. Tinha parentes em Belém, e era associado em um negócio de
borracha.
Contou-me coisas infinitas da borracha e do
seu futuro. Não lhe falei de versos; dando comigo a ler alguns, exclamou rindo:
— Gosta de versos? A minha Estela
gosta, e desconfio até que é poetisa.
— Também faço o meu versinho de pé
quebrado, disse eu com modéstia.
— Sim? Pois ela... Não confunda, não
falo de minha mulher, mas de minha filha. Já uma vez dei com Estela a escrever,
com uma amiga, na mesma mesa, uma de um
lado, outra de outro, e as linhas não iam ao fim. Feliciana falou-lhe nisso, e ela
respondeu rindo — que era engano meu; desconfio que não.
No porto de Recife, vi Estela e a
mãe, e daí até o Rio de Janeiro, pude conversar com elas. A filha, como eu lhe
falasse do que o pai me contara,
autorizado por ele, que disse que os poetas naturalmente têm mais confiança entre si, que com estranhos,
respondeu envergonhada que era falso; tinha composto meia dúzia de quadrinhas
sem valor. Naturalmente protestei contra
o juízo, e esperei que me desse alguma estrofe, mas teimou em calar. Era
criatura de vinte anos, magra e pálida; faltava-lhe a elegância e a expressão
que só em terra lhe vi, uma semana
depois de chegados. Os olhos eram cor do mar. Esta circunstância fez-me
escrever um soneto que lhe ofereci, e que ela ouviu com muito prazer, entre a mãe e o pai. O
soneto dizia que os olhos, como as vagas do mar, encobriam o movimento de uma
alma grande e misteriosa. Assim, em
prosa, não tem graça; os versos não eram
absolutamente feios, e ela fez-me o favor de os achar parecidos com os de Gonçalves Dias, o que era pura
exageração. No dia seguinte disse-lhe o meu recitativo das Ondas: "A vida é onda dividida em duas..."
Achou-o muito bonito.
— Tem a beleza da oportunidade;
estamos no mar, retorqui eu.
— Não senhor, são bonitos versos.
Peço-lhe que os escreva no meu álbum
quando chegarmos.
Chegamos. O pai ofereceu-me a casa;
eu dei-lhe o número da minha, explicando que era um sótão de estudante.
— Os pássaros também moram alto,
disse Estela.
Sorri, agradeci, apertei-lhe a mão, e
corri para a Rua da Misericórdia. A moça
do Castelo chamava-me. De memória, tinha ante mim aquele corpo elegante, ereto
no escuro da janela, erguendo os braços curvos, como asas de uma ânfora... Pia,
Pia, santa e doce, dizia o meu coração batendo; aqui venho, aqui trago o sangue
puro e quente da mocidade, ó minha doce
Pia santa!
Nem Pia, nem nada. Durante três,
quatro, cinco dias, não me apareceu o vulto do Castelo. Não sabendo que eu
tornara ao sótão, é natural que não viesse ali às nossas horas de outro tempo. Também podia estar doente,
ou fora, na
roça ou na
cidade. A idéia de que se houvesse mudado só me acudiu no fim de duas semanas, e
admirou-me que não houvesse pensado
nisso mais cedo.
— Mudou-se, é o que é.
A esperança disse-me que era
impossível haver-se mudado. Mudado para onde? Onde iria uma moça, cujo busto
ficava tão bem no escuro da janela e no
alto do morro, com espaço para se deixar admirar de longe, levantar os braços e
tão em direitura do meu sótão? Era impossível; assim ninguém se muda.
Já então visitara o negociante. A
filha deu-me o álbum para escrever o recitativo das Ondas, e
mostrou-me duas poesias que fizera depois de chegar: Guanabara e Minhas
Flores.
— Qual acha mais bonita?
— Ambas são bonitas.
— Mas uma há de ser mais que a outra,
insistiu Estela; é impossível que o
senhor não ache diferença.
— Tem a diferença do assunto; a
primeira canta a cidade e as águas; a segunda é mais íntima, fala das flores
que não quiseram esperar pela dona, e
compara-as às felicidades que também não esperam; eis a diferença.
Estela ouviu-me com os olhos muito
abertos, e toda a vida neles. Uma sombra de sorriso mostrava que a minha
apreciação lhe dava gosto. Após alguns instantes abanou a cabeça.
— Parece-me que o senhor gosta mais
da Guanabara...
— Não há tal!
— Então não presta?
— Que idéia, D. Estela! Pois um
talento como o seu há de fazer versos que não prestem?
— Acha-me talento?
— Muito.
— É bondade sua. Então a outra é que
lhe parece melhor?
Como teimasse muito, achei de bom
aviso concordar que uma delas era melhor, e escolhi Minhas Flores. E pode ser que fosse assim mesmo; Guanabara era uma reminiscência de Gonçalves Dias. Pois a escolha foi o meu
mal. Estela ficou meio alegre, meio triste, e daí em diante quando me mostrava alguns versos, e eu
os achava bons, tinha de lutar muito
para prová-lo; respondia-me sempre que já da primeira vez a enganara.
A ação do tempo fez-se naturalmente
sentir, em relação à moça do Castelo. Um dia vi ali um vulto, e acreditei que
fosse a minha incógnita; tinha uma blusa branca; atentei bem, era um homem em mangas de camisa. Fiquei tão vexado de mim e
daquela interminável esperança, que
pensei em mudar de casa. A alma do rapaz é que principalmente reagiu, — e as
matemáticas venceram a fantasia, — coisa que poderiam ter feito muito antes.
Conto assim a minha história, sem
confiança de ser crido, não por ser mentira, mas por não saber contá-la. A
coisa vai como me lembra e a pena sabe, que não é muito nem pouco. As
matemáticas não só venceram a fantasia, mas até quiseram acabar com os versos;
disseram-me que nem fosse mais à casa de
Estela.
— É o que vou fazer; nem versos de
homens nem de mulheres. E depois, já
penso demais naquela espevitada...
Espevitada! Daí a algumas semanas a
lembrança deste nome enchia-me de remorsos; estava apaixonado por ela. Achava-lhe
os versos deliciosos, a figura angélica, a voz argentina (rimando com divina, musa divina) toda ela uma perfeição, uma fascinação, uma salvação. Os versos que fiz por esse tempo não têm conta
na aritmética humana. A musa entrou-me em casa e pôs fora as matemáticas. Ficou
ela só, e os seus metros e consoantes, que ainda não eram ricos nem raros como
agora. As flores que rimei
com amores, os céus que rimei com véus, podiam receber outros mundos e cobri-los a todos. Ela era menos fecunda que eu, mas os versos
continuavam a ser deliciosos. Já então
eu os declarava tais com entusiasmo.
— Não está caçoando?
— Não, meu anjo! Pois eu hei de... ?
São lindíssimos; recita outra vez.
E ela recitava, e eu ouvia com os
olhos em alvo. Projetamos imprimir e publicar
os nossos versos em um só volume comum, com esse título: Versos Dela e Dele. A idéia foi minha, e ela gostou tanto que começou logo a
copiá-los em um livro que tinha em branco. As composições seriam alternadas, ou as de cada um de nós
formariam uma parte do livro? Nesta
questão gastamos muitos dias. Afinal resolvemos alterná-las.
— Uns serão conhecidos pela própria
matéria, outros pela linguagem, disse eu.
— Quer dizer que a minha linguagem
não presta para nada?
— Que idéia, minha Estela!
— E acho que não tem razão: não
presta.
Como estávamos sós, ajoelhei-me e
jurei pelo céu e pela terra, pelos olhos
dela, por tudo o que pudesse haver mais sagrado que não pensava assim. Estela
perdoa-me e começou a cópia dos versos.
Nisso estávamos, eu ia pouco à
Escola, e via raras vezes o Fernandes; este um dia levou-me a um café, e
disse-me que ia casar.
— Tu?
— Sim; caso-me no princípio do ano,
depois de tomar o grau, e mal sabes com quem.
— Pois também eu caso-me, disse-lhe
daí a alguns segundos.
— Também?
— Ainda não está pedida a noiva, mas
é certo que me caso, e não espero o fim dos estudos. Há de ser daqui a meses.
— Não é a do Castelo?
— Oh! não! Nem pensei mais nisso: é
outra, e falta só pedir-lhe autorização e falar ao pai. É filha de um negociante.
Conheci-a a bordo.
— Que singular caso! exclamou o
Fernandes. Sabes tu com quem me caso?
com a moça do Castelo.
Explicou-me tudo. Sabendo que a noiva
morava no Castelo, falou-lhe de mim e do namoro; ela negou, mas ele insistiu
tanto que Margarida acabou confessando e
rindo muito do caso.
— Sabes que não sou de ciúmes
retrospectivos. Queres tu vê-la? Agora que vocês dois estão para casar, e nunca
se conheceram, há de ser curioso verem-se e conhecerem-se; eu direi a Margarida
que és tu, mas que tu não sabes; tu ficas sabendo que é ela e que ela não sabe.
Poucos dias depois, Fernandes
levou-me à casa da noiva. Era na Rua do
Senado, uma família de poucos meios, pai, mãe, duas filhas, uma de onze anos. Margarida recebeu-me com
afabilidade; estimava muito conhecer um
amigo e colega do noivo, e tão distinto como lhe ouvira dizer muitas vezes. Não
respondi nada; quis honrar a escolha da esposa que o meu Fernandes fizera, mas
não achei palavra que exprimisse este pensamento. Todo eu era, ou devia ser uma
boca aberta e pasmada. Realmente, era
uma bela criatura. Ao vê-la, recordei os nossos gestos de janela a janela,
estive a ponto de lhe atirar, como
outrora, o beijo simbólico, e pedir-lhe que levantasse os braços. Ela não
respondera nunca aos beijos, mas erguia os braços de si mesma por um instinto estético. E as longas
horas, as tardes, as noites... Todas
essas reminiscências vieram ali de tropel, e por alguns minutos, encheram-me a
alma, a vista, a sala, tudo o que nos cercava.
— O doutor fala-me muita vez no
senhor, insistiu Margarida.
— Fala de um amigo, murmurei
finalmente.
Tendo-me ele dito que ela sabia ser
eu o namorado do sótão, pareceu-me ver em cada gesto da moça alguma repetição
daquele tempo. Era ilusão; mas que esperar de uma alma de poeta, perdida em matemáticas?
Saí de lá com recordações do passado. A vista da rua e do presente, e sobretudo
a imagem de Estela desfizeram aqueles fumos.
Há encontros curiosos. Enquanto eu
conversava com Margarida, e evocava os dias de outrora, Estela compunha versos,
que me mostrou no dia seguinte, com este título: Que é o
passado? Imediatamente peguei do lápis,
respondi com outros que denominei: Nada. Não os transcrevo
por não me parecerem dignos do prelo; falo dos meus. Os dela eram bons, mas não devo divulgá-los. São
segredos do coração. Digo só que a modéstia de Estela fê-los achar inferiores
aos meus, e foi preciso muito trabalho para convencê-la do contrário. Uma vez convencida,
releu-os à minha vista três e quatro vezes; pelo meio da noite, dei com os olhos dela perdidos no ar,
e, como tinha ciúmes, perguntei-lhe se
pensava em alguém.
— Que tolice!
— Mas...
— Estava recitando os versos. Você
acha mesmo que são bonitos?
— São muito bonitos.
— Recite você.
Peguei dos versos de Estela e recitei-os
outra vez. O prazer com que ela os ouvia
foi, não digo enorme, mas grande, muito grande; tão grande que ainda os recitei
uma vez mais.
— São lindos! exclamei no fim.
— Não diga isso!
— Digo, sim; são deliciosos.
Não acreditou, posto sorrisse; o que
fez foi recitar os versos ainda uma vez
ou duas, creio que duas. Eram só três estrofes; vim de lá com elas de cor.
A poesia dava à minha namorada um
toque particular. Quando eu estava com o
Fernandes dizia-lhe isso, ele dizia-me outras coisas de Margarida, e assim
trocávamos as nossas sensações de felicidade. Um dia comunicou-me que ia casar dali a três
meses.
— Assentou-se tudo ontem. E tu?
— Eu vou ver, creio que breve.
Casaram no dito prazo. Lá estive na
igreja do Sacramento. Ainda agora penso como é que pude assistir ao casamento
da moça do Castelo. Verdade é que estava preso à outra, mas as recordações,
qualquer que fosse o meu atual estado, deviam fazer-me repugnante aquele espetáculo
da felicidade de um amigo, com uma pessoa que... Margarida sorria encantada para ele, e aceitou
os meus cumprimentos sem a menor reminiscência do passado... Sorriu também para
mim, como qualquer outra noiva. Um tiro que levasse a vida ao meu amigo seria duro para mim, far-me-ia padecer muito e
longo; mas houve um minuto, não me recordo bem qual, ao entrar ou sair da
igreja, ou no altar, ou em casa, minuto houve em que, se ele cai ali com umas cãibras,
eu não amaldiçoaria o céu. Expliquem-me isto. Tais foram as sensações e idéias que me assaltaram, e com
algumas delas saí da casa deles, às dez horas da noite; iam dançar.
— Então a noiva estava bonita?
perguntou-me Estela no dia seguinte.
— Estava.
— Muito?
Refleti um instante e respondi.
— Menos que você, quando cingir o
mesmo véu.
Estela não acreditou, por mais que
lhe jurasse, que tal era minha convicção: eram cumprimentos. Tinha justamente
composto na véspera uma poesia, sobre o assunto, mas tão ruim, que não a mostraria;
disse apenas o primeiro verso:
— Se hei de cingir um véu de noiva ou
freira...
— Diga os outros!
— Não digo, que não prestam.
Como eu não teimasse, e ela quisesse
provar que não prestavam, recitou-os
assim mesmo, e confesso que não os achei tão ruins. Foi o nosso primeiro e sério arrufo. Estela
suspeitou que eu estava caçoando, e não
me falou durante uns vinte minutos. Afinal reconciliamo-nos. Como eu lhe não
pedisse os versos, viu nisso a
prova de que eles não prestavam para
nada, e disse-mo. Provei-lhe o contrário, arrancando-lhe o papel da mão.
— Amanhã lhe dou cópia deles.
Copiei-os à noite, sonhei com ela, e
no dia seguinte levei-lhe a cópia. Encontrei-a
em caminho, com algumas amigas: iam ver um grande casamento. Acompanhei-as; à
porta da igreja estavam ricas carruagens,
cavalos magníficos, librés de bom gosto, povo à porta, povo dentro. Os noivos,
os pais, os convidados esperavam o padre, que apareceu alguns minutos depois.
Compreendi o gosto das moças em ver
casamentos alheios; também eu estava alvoroçado. O que ninguém ali teve, creio
e juro, foi a impressão que recebi quando dei com os olhos na noiva; era nada
menos que a moça do teatro, a quem eu
dera o nome de Sílvia, por lhe não saber outro. Só uma vez a vira, mas as feições não se apagaram da memória
apesar de Margarida, apesar de Estela. O
estremeção que tive não foi visto por ninguém: todos os olhos eram poucos para
ela e para ele? Quem era ele? Um jovem
médico.
Não houvera entre mim e esta moça
mais que o encontro daquela noite do
teatro; mas a circunstância de assistir ao seu casamento, como já assistir ao de Margarida, davam-lhe
agora um cunho especial. Estaria eu
destinado a ver ir para os braços alheios os meus sonhos mais íntimos? Assisti ao casamento de Sílvia o
menos que pude, olhando para outras pessoas; afinal tudo acabou, os noivos, os
pais e os convidados saíram; Estela e as
amigas foram vê-los entrar nas carruagens.
— Que é que tem? perguntou-me ela na
rua.
— Dir-lhe-ei depois.
— Quando?
— Logo.
Em casa disse-lhe que pensava no dia
em que fôssemos objeto da curiosidade pública, e a nossa felicidade se
consumasse assim.
— Não tardará muito, acrescentei; uma
vez formado, virei pedi-la.
Os olhos dela confirmavam este
acordo, e a musa o fez por versos que foram dos mais belos que li da minha
poetisa.
Sim, o casamento aparecia-me como uma
necessidade cada vez maior. Tratei de ir
preparando as coisas de modo que, uma vez formado, não me demorasse muito.
Antes disso, era impossível que meu pai consentisse. Estela estava por tudo;
assim mo disse em prosa e verso. A prosa era a das nossas noites de
conversação, ao canto da janela. O verso foi o de um soneto em que se comparava
à folha, que vai para onde o vento a
leva; o fecho era este:
Eu sou a folha, tu serás o vento.
Ao recordar todas essas coisas, sinto
que muitas delas era melhor que se
perdessem; revivê-las não paga o esforço, menos ainda a tristeza, a saudade, ou como quer que chamemos a um
sentimento que, sem levar a gente a
detestar o dia de hoje, traz não sei que remoto sabor do dia de ontem... Não,
não deixo o meu cartório de tabelião do Ceará; na minha idade, e depois da
minha vida, é o melhor Parnaso que conheço. As escrituras, se não rimam umas
com outras, rimam com as custas, e
sempre me dão algum prazer para recordar versos perdidos, de par com outros que
são eternos... Fiquemos tabelião.
Íamos passando o tempo, sem grave
incidente, quando uma tarde o pai de Estela entrou em casa, anunciando à mulher
e à filha que tinha de ir a
S. Paulo. Não
compreendi por que razão D. Feliciana empalideceu. Era uma senhora de
vida severa e monótona, sem paixões, sem emoções. Depois é que me contaram algo
que me explicou tudo. O marido de D. Feliciana tinha agora os negócios complicados,
e parece que uma vez falara à mulher em fugir do Rio de Janeiro. Foi o que me disseram uns; outros falavam
de amores. Tudo era mentira, mas D.
Feliciana creio que teve medo de uma e de outra coisa, senão de ambas, e, com
uma doçura incomparável, murmurou:
— Guimarães, leva-me a S. Paulo!
Guimarães recusou; mas a esposa
insistiu, alegando que tinha imensa vontade de ver S. Paulo. Como o marido
continuasse a negar, dizendo-lhe que ia a negócios e não podia carregar
família, além de ser um desarranjo, a mulher trocou de maneiras, e pôs nos
olhos tal expressão de desconfiança que o fez recuar.
— Vamos todos, Guimarães; havemos de
ir todos a S. Paulo.
— Sim, podíamos ir... mas é que...
por tão pouco tempo... cinco ou seis
semanas, dois meses... Valerá a pena, Feliciana? Mas, vamos, se queres; os
vapores são pouco cômodos.
Olhei para Estela, pedindo-lhe com o
gesto que interviesse contra o desejo da mãe. Estela empalidecera e perdera a
voz; foi o que me pareceu, mas a prova
do contrário é que, passados alguns instantes, como ouvisse ao pai dizer que
sim, que iriam a S. Paulo, suspirou esta palavra cheia de resignação e melancolia:
— Outra vez o mar! Um dia ir-me-ei ao
fundo, procurar a pérola da morte!
— Dias de poesia, menina! ralhou a
mãe. O mar até faz bem às pessoas.
As nossas despedidas foram o que são
despedidas de namorados, ainda por ausências curtas de um ou dois meses. Na
véspera da minha partida tivemos inspiração igual, compor uns versos em que chorássemos a dor da separação e ríssemos a
alegria da volta. Ainda desta vez os
versos dela eram melhores; mas, ou a tristeza ou outra cousa fez-lhe crer o
contrário, e gastamos alguns minutos em provar, eu a superioridade dos dela,
ela a dos meus. Não menos namorado que poeta,
murmurei finalmente:
— Quaisquer que sejam eles, os
melhores versos são as tuas lágrimas.
Estela não chorava; esta minha
palavra fê-la chorar. Mordeu o beiço, levou
o lenço aos olhos, e disse com um tom único, um tom que nunca mais esqueci:
— Já sei! é que os meus versos não
prestam para nada, são próprios para o
fogo; nem arte nem inspiração, nada, nada!
— Que dizes, Estela?
— Basta: compreendo. O senhor nunca
me teve amor.
— Meu anjo!
— Nunca!
Não pude pegar-lhe na mão; correra à
janela. Como eu ali fosse também, entrou
novamente. Só depois de grande resistência consentiu em ouvir gabar-lhe os
versos e explicar a preferência dada às lágrimas; era por serem dela. As
lágrimas, disse-lhe eu, eram os próprios
versos dela mudados em pérolas finas... Estela engoliu um sorriso vago, enxugou
os olhos e releu para si os versos, depois alto, depois quis que eu os relesse também, e
novamente os releu, até que o pai veio
ter conosco.
— Doutor, disse-me ele, e se fosse
também conosco?
— A S. Paulo?
— Sim.
— Iria, se pudesse. Já pensei nisso,
mas os exames do fim do ano...
— Também são apenas dois meses, ou
menos.
Embarcaram para Santos. Fui
despedir-me a bordo, e ao voltar para o meu sótão, comecei logo a escrever a primeira
carta; no dia seguinte, remeti-a. Três
dias depois tive a primeira carta de Estela, uma breve e triste carta em que falava mais do mar que de
mim, mais de si que do mar, e mais da
poesia que de nenhum dos três. “A musa é a consolação final de tudo”.
Compreendi que assim fosse, teria mostrado a carta à mãe, e não conviria
escrever intimidades. Cuidei de ser mais discreto que na primeira. Assim se passaram as
primeiras semanas. No fim das seis ainda me falava em vir, mas não veio.
Passados dois meses, contei-lhe as minhas saudades. Não me respondeu;
escrevi-lhe outra; recebi um bilhete em que me contava um baile do presidente
da província, descrição longa e amorosa, as valsas, as quadrilhas, e no fim uns
versos que compôs na seguinte manhã, com o pedido de os fazer imprimir em
alguma folha, “e um pequeno juízo”.
— Não me ama! bradei desesperado.
Nunca esta criatura gostou de mim! Nem uma palavra de consolação ou de
explicação! Bailes? Que são bailes?
E fui por aí adiante, com tal
desvario, que falava às paredes, aos ares, e falaria ao diabo, se ali me
aparecesse; ao menos, ele seria pessoa viva. As paredes ficaram surdas; os ares
apenas repercutiram as minhas vozes.
Entretanto, copiei os versos, pus-lhe algumas palavras de louvor, e levei-os ao Correio Mercantil, onde
um amigo me
fez o favor de os publicar na parte editorial. Foi
um dos elementos da minha desgraça.
Os versos entraram por S. Paulo, com
os elogios do Correio
Mercantil. Todos os leram, as pessoas das
relações de Estela ficaram admirando esta moça que merecia tanto da imprensa da
Corte. Era um grande talento, um gênio; um dos poetas da Faculdade de Direito
chamou-lhe Safo. E ela subiu às nuvens, talvez acima.
Escasseando as cartas, resolvi ir a
S. Paulo; mas então o pai escreveu-me dizendo que iriam a Sorocaba e outros
lugares, e só daí a dois ou três meses
poderiam estar de volta. Estela escreveu-me um bilhetinho de três linhas, com
um soneto, para o Correio
Mercantil. Posto me não falasse em juízo algum
da folha, e o meu desejo fosse estrangulá-la, não deixei de escrever quatro palavras de
"louvor ao grande talento da nossa ilustre patrícia". Agradeceu-me
com um bilhetinho, fiquei sem mais
cartas. Onde estariam? Na casa comercial do pai é que me iam informando do itinerário da família, pelas
cartas que recebiam dele.
Um dia, anunciaram-me ali que o
Guimarães vinha à Corte, mas só.
— Só!
— É o que ele diz.
— Mas a família... ?
— A família parece que fica.
Veio só. Corri a vê-lo, recebeu-me
com polidez, mas frio e triste, vexado, penalizado. Não me disse nada nos
primeiros dias, mas uma notícia grave e um acontecimento certo e próximo não
são coisas que se guardem por muito tempo: Estela ia casar. Casava em
Sorocaba...
Não ouvi o resto. A noite, o mar, as
ruas é que ouviram as minhas imprecações e lamentações, não sei quanto tempo.
Assim pois, uma por outra, vim trocando as mulheres possíveis e perdendo-as sucessivamente.
Aquela com quem afinal me casei é que não substituiu nenhuma Sílvia, Margarida
ou Estela; é uma senhora do Crato, meiga e amiga, robusta apesar de magra, é
mãe de dois filhos que vou mandar para o Recife, um dia destes.
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Nota:
Texto-fonte: Obra Completa de Machado de Assis, Vol. II,
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.
Publicado originalmente em A Estação, 15 de setembro a 15 de dezembro de
1897.
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