UM INCÊNDIO
Que esta perna trouxe eu dali ferida.
CAMÕES, Os Lusíadas, c. V, est. XXXIII.
Não inventei o que vou contar, nem o
inventou o meu amigo Abel. Ele ouviu o fato com todas as circunstâncias, e um
dia, em conversa, fez resumidamente a narração
que me ficou de memória, e aqui vai tal qual. Não lhe acharás o pico, a alma
própria que este Abel põe a tudo o que exprime, seja uma idéia dele, seja, como
no caso, uma história de outro. Paciência; por mais que percas a respeito da forma, não perderás nada acerca da
substância. A razão é que me não esqueceu
o que importa saber, dizer e imprimir.
B... era um oficial da marinha inglesa, trinta
a trinta e dois anos, alto, ruivo, um pouco
cheio, nariz reto e pontudo, e os olhos dois pedaços de céu claro batidos de
sol. Convalescia de uma perna quebrada. Já então andava (não ainda na rua) apoiado
a uma muleta pequena. Andava na sala do hospital inglês, aqui no Rio, onde Abel o viu e lhe foi apresentado, quando
ali ia visitar um amigo enfermo, também
inglês e padre.
Padre, oficial de marinha e
engenheiro (Abel é engenheiro) conversavam freqüentemente de várias coisas
deste e do outro mundo. Especialmente o oficial
contava cenas de mar e de terra, lances de guerra e aventuras de paz, costumes diversos, uma infinidade de
reminiscências que podiam ser dadas ao prelo e agradar. Foi o que lhe disse o
padre um dia.
— Agradar não creio, respondeu ele
modestamente.
— Afirmo-lhe que sim.
— Afirma demais. E daí pode ser que,
não ficando inteiramente bom da perna, deixe
a carreira das armas. Nesse caso, escreverei memórias e viagens para alguma das
nossas revistas. Irão sem estilo, ou em estilo marítimo...
— Que importa uma perna? interrompeu
Abel. A Nélson faltava um braço.
— Não é a mesma coisa, redargüiu B...
sorrindo. Nelson, ainda sem braço, faria o que eu fiz no mês de abril, na cidade de
Montevidéu. Estou eu certo de o fazer agora?
Digo-lhe que não.
— Apostou alguma corrida? Mas a batalha
de Trafalgar pode-se ganhar sem braço ou sem perna. Tudo é mandar, não acha?
A melancolia do gesto do oficial foi
grande, e por muito tempo ele não conseguiu falar. Os olhos chegaram a perder
um tanto a luz intensa que traziam, e ficaram pregados ao longe, em algum ponto que se não
podia ver nem adivinhar. Depois voltou B... a si, sorriu, como quando dera a
segunda resposta. Enfim, arrancou do peito a história que queria guardar, e foi
ouvida pelos dois, repetida a mim por um
deles e agora impressa, como anunciei a princípio.
Era um sábado de abril. B... chegara
àquele porto e descera a terra, deu alguns passeios, bebeu cerveja, fumou e, à
tarde, caminhou para o cais, onde o esperava
o escaler de bordo. Ia a recordar lances de Inglaterra e quadros da China. Ao dobrar uma esquina, viu certo
movimento no fim da outra rua, e, sempre
curioso de aventuras, picou o passo a descobrir o que era. Quando ali chegou já
a multidão era maior, as vozes muitas e um rumor de carroças que chegavam de
toda parte. Indagou em mau castelhano, e soube que era um incêndio.
Era um incêndio no segundo andar de
uma casa; não se sabia se o primeiro também
ardia. Polícia, autoridades, bombas iam começar o seu ofício, sem grande ordem, é verdade, nem seria possível. O
principal é que havia boa vontade. A gente curiosa e vizinha falava das moças —
que seria das moças? onde estariam as
moças? Com efeito, o segundo andar da casa era uma oficina de costura, regida por uma francesa, que
ensinava e fazia trabalhar a muitas raparigas da terra. Foi o que o oficial
pôde entender no meio do tumulto.
Deteve-se para assistir ao serviço, e
também recolher alguma cena ou costume com que divertisse os companheiros de
bordo e, mais tarde a família na Escócia. As palavras castelhanas iam-lhe bem
ao ouvido, menos bem que as inglesas, é verdade, mas há só uma língua inglesa.
O fogo crescia, comendo e apavorando, não
que se visse tudo cá de fora, mas ao fundo da casa, no alto, surgiam flamas cercadas de fumo, que se espalhavam como se
quisessem passar ao quarteirão inteiro.
B... viu episódios interessantes, que
esqueceu logo, tal foi o grito de angústia e terror saído da boca de um homem
que estava ao pé dele. Nunca mais lhe esqueceu tal grito; ainda agora parecia
escutá-lo. Não teve tempo nem língua em que perguntasse ao desconhecido o que
era. Nem foi preciso; este recuara, com
a cabeça voltada para cima, os olhos na janela da casa e a mão trêmula, apontando... Outros seguiram a direção; o
oficial de marinha fez o mesmo. Ali, no
meio do fumo que rompia por uma das janelas, destacava-se do clarão, ao fundo, a figura de uma mulher. Não se podia
distinguir bem, pela hora e pela distância,
se o clarão vinha de outro compartimento que ardia, ou se era já o fogo que invadia a sala da frente.
A mulher parecia hesitar entre a
morte pelo fogo e a morte pela queda. Qualquer delas seria horrível. Ora o fumo
encobria toda figura, ora esta reaparecia, como que inerte, dominando todas as
demais partes da catástrofe.
Os corações cá de baixo batiam com
ânsia, mas os pés, atados ao chão pelo terror,
não ousavam ir levá-los acima. Tal situação durou muito ou pouco, o oficial não
pôde saber se dois segundos, se dois minutos. Verdadeiramente não soube nada.
Quando deu acordo de si ouviu um clamor novo, que os jornais do dia seguinte
disseram ser de protesto e de aplauso, a um tempo, ao vê-lo correr na direção
da casa. A alma generosa do oficial não se conteve, rompeu a multidão e enfiou pelo corredor. Um soldado
atravessou-se-lhe na frente, ele deitou
o soldado ao chão e galgou os degraus da escada.
Já então sentia calor de fogo, e o
fumo que descia era um grande obstáculo. Tinha que rompê-lo, respirá-lo, fechar os
olhos. Não se lembrava como pôde fazer
isso; lembrava-se que, a despeito das dificuldades, chegou ao segundo andar,
voltou à esquerda, na direção de uma porta, empurrou-a, estava aberta; entrou
na sala. Tudo aí era fumo, que ia saindo pelas janelas, e o fogo, vindo do gabinete contíguo, começava a devorar as
cortinas da sala. Lá embaixo, fora continuava o clamor. B... empurrou cadeiras,
uma pequena mesa, até chegar à janela. O
fumo rasgou-se de modo que ele pôde ver o busto da mulher... Vencera o perigo;
cumpria vencer a morte.
— A mulher, — disse ele ao terminar a
aventura, e provavelmente sem as reticências que Abel metia neste ponto da
narração, — a mulher era um manequim, o
manequim de costureira, posto ali de costume ou no começo do incêndio, como
quer que fosse, era um manequim.
A morte agora, não tendo mulher que
levasse, parecia espreitá-lo a ele, salvador
generoso. O oficial duvidou ainda um instante da verdade; o terror podia ter
tirado à pessoa humana todos os movimentos, e o manequim seria acaso mulher. Foi-se chegando; não, não era
mulher, era manequim; aqui estão as costas encarnadas e nuas, aqui estão os
ombros sem braços, aqui está o pau em que toda a máquina assenta. Cumpria agora
fugir à morte. B... voltou-se rápido; tudo era já fumo, a própria sala ardia.
Então ele, com tal esforço que nunca
soube o que fez, achou-se fora da sala, no patamar. Desceu os degraus a quatro
e quatro.
No primeiro andar deu já com homens
de trabalho empunhando tubos de extinção.
Um deles quis prendê-lo, supondo ser ladrão que se aproveitasse do desastre
para vir buscar valores, e chegou a pegá-lo pela gola; depressa reconheceu a farda e foi andando. Não tendo
que fazer ali, embora o perigo fosse
menor, o oficial cuidou de descer. Verdade é que há muita vez algum que se não espera. Transpondo a porta da sala para
o corredor, quando a multidão ansiosa
estava a esperá-lo, na rua, uma tábua, um ferro, o que quer que era caiu do alto e quebrou-lhe a perna...
— Quê... ? interrompeu Abel.
— Justamente, confirmou o oficial.
Não sei de onde veio nem quis sabê-lo. Os jornais contaram a coisa, mas não li essa
parte das notícias. Sei que logo depois vieram buscar-me dois soldados, por
ordem do comandante de polícia.
Tratou-se a bordo e em viagem. Não
continuou por falta de comodidades que só em terra podia ter. Desembarcando aqui, no Rio
de Janeiro, foi para o hospital onde
Abel o conheceu. O vaso de guerra esperava por ele. Contava partir em breves dias. Não perdia tempo; emprestavam-lhe
o Times, e livros de história e de religião. Enfim, saiu para a Europa.
Abel não se despediu dele. Mais tarde soube que, depois de alguma demora em
Inglaterra, foi mandado a Calcutá, onde descansou da perna quebrada, e do
desejo de salvar ninguém.
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Nota:
Texto-fonte: Texto Fonte: Obra Completa de Machado de
Assis, Vol. II, Rio de Janeiro: Nova
Aguilar, 1994. Publicado originalmente em Almanaque Brasileiro Garnier, 1906.
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