domingo, 31 de março de 2013

Artur de Azevedo: "Uma Carga de Sono"


UMA CARGA DE SONO 


Como o Alfredo tinha que partir para Minas às 5 horas da manhã, entendeu que o meio mais seguro de não perder o trem, o que mais de uma vez lhe sucedera, era passar a noite em claro.

Assim   foi.   Esteve   no   teatro   até   meia-noite,   foi   cear   com   alguns   amigos, demorou-se   no  restaurante   até   as   2  horas,   deu   um  passeio   de  carro   pela Avenida Beira-Mar e, às 5 horas, estava comodamente sentado no trem, de guarda-pó e boné de viagem.

Partiu o carro ainda ao lusco-fusco, só ali pelas alturas do Encantado o sol resolveu entrar lentamente pelas portinholas.

O Alfredo  começou  então a examinar  um  casal que estava sentado diante  dele. Começou pelo marido: era um sujeito vulgaríssimo, que se parecia com todo   o   mundo,   e   tanto   poderia   ser   negociante   como   empregado   público, industrial, etc. Tinha uma dessas caras inexpressivas, que se adaptam a todas as profissões.

Passou   o   Alfredo   a   examinar   a   senhora   e   não   pôde   conter   um   gesto   de surpresa reconhecendo nela uma bonita mulher que um dia encontrara num bonde das Laranjeiras, e o namorara escandalosamente.

Havia oito meses que o Alfredo a procurava por toda a parte, passando em vão repetidas vezes pela casa daquele bairro onde ela entrara quando saiu do bonde.

O   não   tê-la   encontrado   nunca   mais   lhe   exacerbara   a   impressão   amorosa deixada no seu espírito, mais que no seu coração, por aquela formosa mulher, e não se pode exprimir a alegria que lhe produziu a presença dela naquele trem, embora acompanhada por um indivíduo que, pelos modos, tinha direitos adquiridos sobre ela.

A   desconhecida   animou   o   rapaz   com   um   desses   sorrisos   com   que   as mulheres, num segundo, se entregam de corpo e alma a um homem, e como os dois namorados não podiam apertar a mão um do outro, serviram-se dos  pés como intérpretes dos seus sentimentos. Felizmente o Alfredo não tinha calos, que, se os tivesse, ficariam em petição de miséria.

Era impossível qualquer outra correspondência que não fosse aquela, porque o marido não arredava pé dali. O Alfredo alimentava uma vaga esperança de que   ele   descesse   na   estação   de   Belém   para   tomar   café,   mas   qual,   o homenzinho era inamovível.

Na Barra do Pirai o casal subiu ao restaurante para almoçar, e o Alfredo subiu também, mas não lhe foi possível chegar à fala.

Depois do almoço, o pobre namorado começou a sentir os efeitos da noite passada em claro: as pálpebras pesavam-lhe como se fossem de chumbo, e ele fazia esforços  heróicos  para não dormir; mas  o sono foi implacável, e, quando o trem passou por Juiz de Fora, já ele dormia a sono solto, esquecido dos olhos e do pé da sua bela companheira de viagem.

Foi perto de Palmira que o desgraçado acordou, e - oh, desgraça! – estavam vazios   os   dois   lugares   defronte   dele.   A   moça   desaparecera...   quando?... onde?... em que estação?... Era impossível sabê-lo!

O Alfredo passou os olhos estremunhados por todo o vagão, na esperança de que ela e o marido houvessem simplesmente mudado de lugar. Nada!.

Só então reparou que tinha na mão um anúncio de hotel, desses que em cada estação atiram aos passageiros.

Ele dispunha-se a deitar fora esse pedaço de papel inútil, quando reparou que nas   costas   d0  anuncio   havia   qualquer   coisa   escrita   a   lápis,   com   letra   de mulher.

E o Alfredo leu: "Quem ama não dorme."

Nunca mais a viu.


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Nota:
Texto-fonte: Arthur Azevedo: Contos Diversos. Data não identificada

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