Se o Simplício
Comes não fosse
um rapaz do
nosso tempo, se
não usasse calças brancas, paletó
de alpaca, chapéu de palha e guarda-chuva, daria idéia de um desses
quebra-lanças que só se encontram nos romances de cavalaria. De outro qualquer
diríamos:
"Ele gostava de Dudu"; tratando-se, porém, do Simplício
Comes, empregaremos esta expressão menos familiar: 'Ele amava Edviges."
O seu amor
tinha, realmente, alguma
coisa de puro
e de ideal,
que não se compadecia com os costumes de hoje.
Começava por ser discreto; Dudu adivinhou, ou antes, percebeu que
era amada, mas ele nunca
lho disse, nunca
se atreveu a
dizer-lhe, não por
timidez ou respeito, mas
simplesmente porque não tinha confiança no seu merecimento.
Estava bem empregado, poderia casar-se e viver modestamente em
família - mas era tão feio, tão pequenino, tão insignificante e ela tão linda e
tão esbelta, que o casamento lhe parecia desproporcionado.
Ele não se sentia digno dela, não acreditava que a pudesse fazer
feliz, e isso o desgostava profundamente. Ela, por seu lado, não concorria para
que a situação se modificasse: fingia ignorar que ele a amava, e atribuía toda
aquela solicitude a um afeto desinteressado.
Dudu vivia com a mãe, uma pobre viúva sem outro recurso que não
fosse o do meio soldo e o montepio deixados pelo marido, brioso oficial do
Exército que viveu sempre desprotegido, porque
não sabia lisonjear
nem pedir; mas o Simplício
Gomes, sem fumaças
de protetor, e
dando a esmola
com ares de quem a recebia, achava meios e modos de
fazer com que naquela casa faltasse apenas o supérfluo.
Como era parente, embora afastado, das duas senhoras, estas consideravam
os seus favores simples atenções de família.
O caso é que o Simplício Comes parecia adivinhar os menores
desejos de Dudu e nessas ocasiões recorria ao ardil de uma aposta:
- Aposto que hoje chove!
- Que idéia! O dia está bonito!
- Pois sim, mas o calor é excessivo: temos água com toda a
certeza!
- Não temos!
- Façamos uma aposta!
- Valeu! Se chover eu perco uma caixa de charutos.
- E eu aquela blusa que você viu na vitrina da Notre-Dame e
cobiçou tanto.
- Quem lhe disse que cobicei?
- Ora, esses olhos não me enganam.
No dia seguinte Dudu recebia a blusa.
A velha costumava dizer com muita ingenuidade:
- Você faz mal em apostas, Simplício! - muito caipora, perde
sempre, e então, em se tratando de mudança de tempo, é uma lástima!
Conquanto não se
atrevesse a falar
em casamento, o
pobre rapaz sofria, oprimido pela
idéia de que,
quando menos se
pensasse, Dudu teria
um namorado... um noivo... um marido. E, efetivamente, não se passou muito
tempo que os seus receios não se realizassem.
Dudu impressionou-se por
um cavalheiro muito
bem trajado, que
começou a rondar-lhe a porta
quase todos os dias, cumprimentando-a, depois sorrindo-lhe, e finalmente
escrevendo-lhe, graças à cumplicidade de um molecote da casa.
Depois de receber
três cartas, Dudu
contestou, convenceu-se de
que as intenções do namorado
eram as melhores e mostrou a correspondência à mãe, que imediatamente consultou
o Simplício Gomes sem saber o desgosto que lhe causava. Este,
que já havia
notado as idas e vindas do
transeunte suspeito, disfarçou o
mais que pôde os seus sentimentos, limitando-se a dizer que Dudu não deveria
casar-se com aquele homem sem ter primeiramente certeza de que ele a amava
deveras.
A velha, com
toda a sua
simplicidade, pediu-lhe que
se informasse da idoneidade do pretendente, e o mísero
logo se transformou de quebra-lanças em quebra-esquinas.
Foram desanimadoras (para ele) as informações que obteve: o rival
chamava-se Bandeira, era de boa família, de bons costumes, funcionário público
de certa categoria, estimado, e tinha alguma coisa. O seu único defeito era ser
um pouco genioso.
O Simplício, que
não tinha o
altruísmo heróico de
Cirano de Bergerac,
não avolumou as qualidades do outro, mas foi leal: não as diminuiu. Em
suma: o Bandeira pediu a mão de Dudu, e começou a freqüentar a casa.
O coitado não articulou uma queixa, mas começou desde logo a
emagrecer a olhos vistos; perdeu
o apetite, ficou
macambúzio, fúnebre... Dudu,
que tudo compreendeu, teve muita
pena, teve quase remorsos, mas a velha nem mesmo assim desconfiou que a filha
fosse adorada pelo infeliz parente.
Entretanto, o Simplício Gomes começou a ser assíduo em casa de
Dudu; o seu desejo oculto era
não deixá-la sozinha
com o tal
Bandeira enquanto não
se casassem.
O noivo tinha, efetivamente, boas qualidades, mas era não só
genioso, mas de uma arrogância, de
uma empáfia, de
um autoritarismo que
começaram a inquietar Dudu.
Uma bela tarde em que se achavam ambos sentados no canapé, e o
Simplício Gomes afastado, num canto da sala, folheava um álbum de retratos, o
Bandeira levantou-se dizendo:
- Vou-me embora; tenho ainda que dar umas voltas antes da noite.
- Ora, ainda é cedo; fique mais um instantinho - replicou Dudu,
sem se levantar do canapé.
- Já lhe disse que tenho o que fazer! Peço-lhe que vá desde já se
habituando a não contrariar as
minhas vontades! Olhe
que, depois de
casado, hei de
sair quantas vezes quiser sem dar satisfações a ninguém
- Bom; não precisa zangar-se.
- Não me zango, mas contrario-me! Não me escravizei; quero
casar-me com a senhora, mas não perder a liberdade!
- Faz bem. Adeus. Até quando?
- Até amanhã ou depois.
O Bandeira apertou a mão de Dudu, despediu-se com um gesto do
Simplício Comes e saiu batendo passos enérgicos, de dono de casa.
Dudu ficou sentada no canapé, olhando para o chão.
O Simplício Gomes aproximou-se de mansinho, e sentou-se ao seu
lado.
Ficaram dez minutos sem dizer nada um ao outro.
Afinal Dudu rompeu o silêncio. Olhou para o céu iluminado por um
crepúsculo esplêndido, e murmurou:
- Vamos ter chuva.
- Não diga isso, Dudu: o tempo está seguro!
- Apostemos!
- Pois apostemos! Eu
perco... perco uma coisa bonita para o seu enxoval de noiva. E você?
- Eu... perco-me a mim mesma, porque quero ser tua mulher!
E Dudu caiu, chorando, nos braços de Simplício Gomes.
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Nota:
Texto-fonte: Arthur de Azevedo: Contos Diversos. Data não identificada
Texto-fonte: Arthur de Azevedo: Contos Diversos. Data não identificada
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