sábado, 30 de março de 2013

Artur de Azevedo: "Uma Aposta"


UMA APOSTA


Se   o  Simplício  Comes   não  fosse  um  rapaz  do  nosso   tempo,  se  não  usasse calças brancas, paletó de alpaca, chapéu de palha e guarda-chuva, daria idéia de um desses quebra-lanças que só se encontram nos romances de cavalaria. De outro qualquer diríamos:

"Ele gostava de Dudu"; tratando-se, porém, do Simplício Comes, empregaremos esta expressão menos familiar: 'Ele amava Edviges."

O   seu   amor   tinha,   realmente,   alguma   coisa   de   puro   e  de  ideal,   que   não   se compadecia com os costumes de hoje.

Começava por ser discreto; Dudu adivinhou, ou antes, percebeu que era amada, mas   ele   nunca   lho   disse,   nunca   se   atreveu   a   dizer-lhe,   não   por   timidez   ou respeito, mas simplesmente porque não tinha confiança no seu merecimento.

Estava bem empregado, poderia casar-se e viver modestamente em família - mas era tão feio, tão pequenino, tão insignificante e ela tão linda e tão esbelta, que o casamento lhe parecia desproporcionado.

Ele não se sentia digno dela, não acreditava que a pudesse fazer feliz, e isso o desgostava profundamente. Ela, por seu lado, não concorria para que a situação se modificasse: fingia ignorar que ele a amava, e atribuía toda aquela solicitude a um afeto desinteressado.

Dudu vivia com a mãe, uma pobre viúva sem outro recurso que não fosse o do meio soldo e o montepio deixados pelo marido, brioso oficial do Exército que viveu   sempre   desprotegido,   porque   não   sabia   lisonjear   nem   pedir;   mas   o Simplício  Gomes,   sem  fumaças  de   protetor,   e  dando  a  esmola   com   ares   de quem a recebia, achava meios e modos de fazer com que naquela casa faltasse apenas o supérfluo.

Como era parente, embora afastado, das duas senhoras, estas consideravam os seus favores simples atenções de família.

O caso é que o Simplício Comes parecia adivinhar os menores desejos de Dudu e nessas ocasiões recorria ao ardil de uma aposta:

- Aposto que hoje chove!

- Que idéia! O dia está bonito!

- Pois sim, mas o calor é excessivo: temos água com toda a certeza!

- Não temos!

- Façamos uma aposta!

- Valeu! Se chover eu perco uma caixa de charutos.

- E eu aquela blusa que você viu na vitrina da Notre-Dame e cobiçou tanto.

- Quem lhe disse que cobicei?

- Ora, esses olhos não me enganam.

No dia seguinte Dudu recebia a blusa.

A velha costumava dizer com muita ingenuidade:

- Você faz mal em apostas, Simplício! - muito caipora, perde sempre, e então, em se tratando de mudança de tempo, é uma lástima!

Conquanto   não   se   atrevesse   a   falar   em   casamento,   o   pobre   rapaz   sofria, oprimido   pela   idéia   de   que,   quando   menos   se   pensasse,   Dudu   teria   um namorado... um noivo... um marido. E, efetivamente, não se passou muito tempo que os seus receios não se realizassem.

Dudu   impressionou-se  por   um  cavalheiro   muito   bem   trajado,   que  começou   a rondar-lhe a porta quase todos os dias, cumprimentando-a, depois sorrindo-lhe, e finalmente escrevendo-lhe, graças à cumplicidade de um molecote da casa.

Depois   de   receber   três   cartas,   Dudu   contestou,   convenceu-se   de   que   as intenções do namorado eram as melhores e mostrou a correspondência à mãe, que imediatamente consultou o Simplício Gomes sem saber o desgosto que lhe causava.  Este,  que  já  havia  notado as idas  e vindas  do  transeunte  suspeito, disfarçou o mais que pôde os seus sentimentos, limitando-se a dizer que Dudu não deveria casar-se com aquele homem sem ter primeiramente certeza de que ele a amava deveras.

A   velha,   com   toda   a   sua   simplicidade,   pediu-lhe   que   se   informasse   da idoneidade do pretendente, e o mísero logo se transformou de quebra-lanças em quebra-esquinas.

Foram desanimadoras (para ele) as informações que obteve: o rival chamava-se Bandeira, era de boa família, de bons costumes, funcionário público de certa categoria, estimado, e tinha alguma coisa. O seu único defeito era ser um pouco genioso.

O   Simplício,   que   não   tinha   o   altruísmo   heróico   de   Cirano   de   Bergerac,   não avolumou as qualidades do outro, mas foi leal: não as diminuiu. Em suma: o Bandeira pediu a mão de Dudu, e começou a freqüentar a casa.

O coitado não articulou uma queixa, mas começou desde logo a emagrecer a olhos   vistos;   perdeu   o   apetite,   ficou   macambúzio,   fúnebre...   Dudu,   que   tudo compreendeu, teve muita pena, teve quase remorsos, mas a velha nem mesmo assim desconfiou que a filha fosse adorada pelo infeliz parente.

Entretanto, o Simplício Gomes começou a ser assíduo em casa de Dudu; o seu desejo   oculto   era   não  deixá-la   sozinha  com   o  tal   Bandeira   enquanto   não  se casassem.

O noivo tinha, efetivamente, boas qualidades, mas era não só genioso, mas de uma   arrogância,   de   uma   empáfia,   de   um   autoritarismo   que   começaram   a inquietar Dudu.

Uma bela tarde em que se achavam ambos sentados no canapé, e o Simplício Gomes afastado, num canto da sala, folheava um álbum de retratos, o Bandeira levantou-se dizendo:

- Vou-me embora; tenho ainda que dar umas voltas antes da noite.

- Ora, ainda é cedo; fique mais um instantinho - replicou Dudu, sem se levantar do canapé.

- Já lhe disse que tenho o que fazer! Peço-lhe que vá desde já se habituando a não  contrariar  as  minhas   vontades!   Olhe  que,  depois  de  casado,  hei   de  sair quantas vezes quiser sem dar satisfações a ninguém

- Bom; não precisa zangar-se.

- Não me zango, mas contrario-me! Não me escravizei; quero casar-me com a senhora, mas não perder a liberdade!

- Faz bem. Adeus. Até quando?

- Até amanhã ou depois.

O Bandeira apertou a mão de Dudu, despediu-se com um gesto do Simplício Comes e saiu batendo passos enérgicos, de dono de casa.

Dudu ficou sentada no canapé, olhando para o chão.

O Simplício Gomes aproximou-se de mansinho, e sentou-se ao seu lado.

Ficaram dez minutos sem dizer nada um ao outro.

Afinal Dudu rompeu o silêncio. Olhou para o céu iluminado por um crepúsculo esplêndido, e murmurou:

- Vamos ter chuva.

- Não diga isso, Dudu: o tempo está seguro!

- Apostemos!

- Pois apostemos!  Eu perco... perco uma coisa bonita para o seu enxoval de noiva. E você?

- Eu... perco-me a mim mesma, porque quero ser tua mulher!

E Dudu caiu, chorando, nos braços de Simplício Gomes.


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Nota:
Texto-fonte: Arthur de Azevedo: Contos Diversos. Data não identificada

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