sábado, 30 de março de 2013

Artur de Azevedo: "Chico"


CHICO 


Um dia o Chico, moço muito serviçal, muito amigo do seu amigo, foi chamado à casa do Dr. Miranda, que o conhecia desde pequeno, e abusava sempre do seu caráter obsequioso e humilde.

- Mandei-te chamar, meu rapaz, para te incumbir de uma comissão que só tu poderás desempenhar a meu gosto.

- Estou às suas ordens.

- Conheces a Maricota, minha irmã. É uma tola que, em rapariga, enjeitou bons casamentos,  sempre  à espera  de um  príncipe, como nos  contos de fadas,  e agora, que vai caminhando a passos agigantados para os quarenta, embeiçou-se por um tipo que costuma passar cá por casa e nem ela, nem eu, sabemos
quem é.

- Ele chama-se...?

- Alexandrino Pimentel. É o nome com que assinou a carta, assaz lacônica, em que   declarou   à   Maricota   que   a   amava   e   desejava   ser   seu   esposo.   Já   me disseram - e é tudo quanto sei a seu respeito - que esteve empregado na estrada de   ferro,   onde   não   esquentou   lugar.   Preciso   de   mais   amplas   e   completas informações a respeito desse indivíduo e, para obtê-las, lembrei-me de ti que és esperto e conheces meio mundo.

O Chico dissimulou uma careta.

- Minha irmã, continuou o Dr. Miranda, já fez 37 anos, mas é minha irmã, e eu, como chefe de família, farei o possível para evitar que ela se ligue a um homem que não seja um homem de bem, não achas?

- Certamente.

- Portanto,  meu rapaz, peço-te que  indagues  e me  venhas dizer quem  é, ao certo,   esse   Alexandrino   Pimentel,   que   quer   ser   meu   cunhado.   Peço-te igualmente  que desempenhes  essa  comissão  com a brevidade  possível,  pois uma senhora de 37 anos, quando lhe falam em casamento, fica assanhada que nem um macaco a quem se mostra uma banana.

O  Chico   pôs-se  a  coçar  a  cabeça  e  não   disse   nada.   Bem   sabia   quanto   era espinhosa tal comissão, mas não tinha forças para recusar os seus serviços a pessoa alguma, e muito menos ao Dr. Miranda, que era o seu médico, já o havia sido de seus pais e nunca lhes mandara a conta.

- Está dito?

- Está dito. Vou indagar quem é o tal Alexandrino Pimentel, e pode contar que dentro de três ou quatro dias terá os esclarecimentos que deseja.

No mesmo dia, o Chico foi ter com um velho camarada, empregado antigo da Central,   e   perguntou-lhe   se   conhecia   um   sujeito   que   ali   tinha   estado   algum tempo, chamado Alexandrino Pimentel.

- Um bêbado! - respondeu prontamente o outro.

- Bêbado?

- Bêbado, sim! Foi por isso que o Passos o pôs na rua!

- Mas não se terá corrigido?

- Não sei; nunca mais ouvi falar nele. Quem te pode informar com segurança é o Trancoso. - Sim, que ele era casado com a filha do Trancoso, por sinal que não se dava com o sogro.

- Casado?

- Casado, sim!

- Quem é esse Trancoso?

- Um ex-colega meu, aposentado há uns quatro anos. Mora lá para os lados de Inhaúma.

- Podes dar-me um bilhete de apresentação para ele?

- Pois não!

No dia seguinte o Chico estava em Inhaúma, à procura do tal Trancoso, que já lá não morava; havia seis meses que se mudara para Copacabana, onde adquirira uma casinha; entretanto o pobre rapaz não esmoreceu diante de uma tremenda maçada, e no outro dia, depois de duas horas de indagações, batia à porta do Trancoso.

Veio   abrir-lha   um   velho   asmático,   envolvido   numa   capa,   lenço   de   seda   ao pescoço, carapuça enterrada até às orelhas, barba por fazer, cara de poucos amigos.

Quando o Chico pronunciou o nome de Alexandrino Pimentel, o velho enfureceu-se, gritando que nada tinha de comum com "esse bandido"!

- Mas não é ele seu genro?

- Foi por desgraça minha, mas já o não é, pois deu tantos desgostos à minha filha, que a matou!

-   Eu   desejava   apenas   tomar  algumas   informações   a   respeito   desse   homem. Trata-se de coisa grave. Ele pretende casar-se em segundas núpcias, e foi a família da noiva que me pediu para...

- Pois, meu caro senhor, as informações que lhe tenho a dar são as seguintes: o sujeito de quem se trata é malandro, bêbado, devasso jogador e bruto. Bruto a ponto de bater, como batia na sua própria mulher! Se a tal senhora, com quem ele   se   pretende   casar,   quiser   passar   fome   e   ser   armazém  de  pancada,   não poderá escolher melhor! E agora, meu caro amigo, que tem as informações que desejava, passe muito bem! Deixe-me em paz, porque sou doente, e as visitas aborrecem-me!...

Dizendo isto, o velho foi empurrando o Chico para a porta da rua.

Este saiu perfeitamente edificado a respeito de Alexandrino Pimentel, mas, ao ar livre,   refletiu   que   todas   essas   informações,   partindo   de   um   homem   tão apaixonado e tão grosseiro, poderiam ser, pelo menos até certo ponto, injustas; por isso pôs-se de novo em campo e, indaga daqui, pergunta dacolá, chegou, depois de conversar com dez ou doze pessoas fidedignas, à firme convicção de que tudo aquilo era a pura expressão da verdade.

Essas pesquisas tomaram-lhe mais tempo do que três ou quatro dias dentro dos quais prometera voltar à casa do Dr. Miranda. Quando voltou, já os amores de Maricota   e   Alexandrino   haviam   assumido   proporções   consideráveis,   e   o   Dr. Miranda tinha revelado à irmã que o obsequioso Chico se incumbira de tomar informações a respeito do pretendente.

- Que diabo! Julguei que você não me aparecesse mais. - exclamou o médico ao ver então o seu cliente gratuito.

- A coisa deu mais trabalho do que eu supunha, e eu não quis fazer nada no ar. Trago-lhe informações seguras!

- Boas ou más?

- Péssimas.

O Dr. Miranda chamou a irmã, que acudiu logo.

- Olha, Maricota, aqui tens o Chico; vai dizer-nos quem e o teu Pimentel.

-   Pois   diga!   -   resmungou   Maricota   com   um   olhar   zangado,   adivinhando   os horrores trazidos pelo Chico.

Este voltou-se para o Dr. Miranda e disse-lhe:

- O senhor coloca-me numa situação difícil. Julguei que isto não passasse de nós dois, mas agora, em presença de D. Maricota, sinto-me acanhado e receoso, porque não posso dizer senão a verdade, e a verdade é muito desagradável.

- Minha irmã é a principal interessada neste assunto, redarguiu o doutor, e deve até agradecer-lhe o trabalho que você teve com esse inquérito. O seu dever de amigo está cumprido; ela que o ouça e faça o que entender; é senhora das suas ações.

O Chico, arrependido já de se haver metido naquele incidente de família, contou minuciosamente as diligências que fizera e o resultado a que chegara.

Quando ele acabou o relatório:

- Tudo isso é calúnia, calúnia, calúnia torpe! - bradou Maricota, fula de raiva e batendo o pé. - E quando seja verdade, gosto dele. Ele gosta de mim, e havemos de ser um do outro, venha embora o mundo abaixo!

Não   houve   palavras   que   a   convencessem   de   que   tal   casamento   seria   um desastre. Diante da vergonha, com que ela ameaçou o irmão de sair de casa para ir ter com o seu amado, o Dr. Miranda curvou a cabeça, e o casamento fez-se.

Fez-se, e não há notícia de casal mais venturoso!

Alexandrino, que se empregara numa importante casa comercial, era um marido solícito,  dedicado, carinhoso  e previdente; não ia a passeio ou a divertimento sem levar Maricota; não bebia senão água; não jogava senão a bisca em família - e todas essas virtudes eram naturalmente realçadas pela terrível perspectiva de que ele seria o contrário.

- Maricota apanhou a sorte grande! - diziam os amigos e parentes, inclusive o Dr. Miranda.

Este, desde que as virtudes do cunhado se manifestaram, começou a tratar com frieza o informante.

O   pobre   Chico   perdeu   o   amigo   e   o   médico,   foi   odiado   por   Maricota   por   ter pretendido frustrar a sua aventura, e o regenerado Pimentel, quando soube da comissão que ele desempenhara, segurou-o um dia com as duas mãos pela gola do casaco, e sacudiu-o dizendo-lhe:

-   Eu   devia   quebrar-te   a   cara,   miserável,   mas   perdôo-te,   porque   és   um desgraçado!.

Moralidade do conto: ninguém se meta na vida alheia, principalmente quando se trate de evitar um casamento serôdio.


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Nota:
Texto-fonte: Arthur de Azevedo: Contos Diversos. Data não identificada

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