Um dia o Chico, moço muito serviçal, muito amigo do seu amigo, foi
chamado à casa do Dr. Miranda, que o conhecia desde pequeno, e abusava sempre
do seu caráter obsequioso e humilde.
- Mandei-te chamar, meu rapaz, para te incumbir de uma comissão
que só tu poderás desempenhar a meu gosto.
- Estou às suas ordens.
- Conheces a Maricota, minha irmã. É uma tola que, em rapariga,
enjeitou bons casamentos, sempre à espera
de um príncipe, como nos contos de fadas, e agora, que vai caminhando a passos
agigantados para os quarenta, embeiçou-se por um tipo que costuma passar cá por
casa e nem ela, nem eu, sabemos
quem é.
- Ele chama-se...?
- Alexandrino Pimentel. É o nome com que assinou a carta, assaz
lacônica, em que declarou à
Maricota que a
amava e desejava
ser seu esposo.
Já me disseram - e é tudo quanto
sei a seu respeito - que esteve empregado na estrada de ferro,
onde não esquentou
lugar. Preciso de
mais amplas e
completas informações a respeito desse indivíduo e, para obtê-las,
lembrei-me de ti que és esperto e conheces meio mundo.
O Chico dissimulou uma careta.
- Minha irmã, continuou o Dr. Miranda, já fez 37 anos, mas é minha
irmã, e eu, como chefe de família, farei o possível para evitar que ela se
ligue a um homem que não seja um homem de bem, não achas?
- Certamente.
- Portanto, meu rapaz,
peço-te que indagues e me
venhas dizer quem é, ao certo, esse
Alexandrino Pimentel, que
quer ser meu
cunhado. Peço-te igualmente que desempenhes essa
comissão com a brevidade possível,
pois uma senhora de 37 anos, quando lhe falam em casamento, fica
assanhada que nem um macaco a quem se mostra uma banana.
O Chico pôs-se
a coçar a cabeça e
não disse nada.
Bem sabia quanto
era espinhosa tal comissão, mas não tinha forças para recusar os seus
serviços a pessoa alguma, e muito menos ao Dr. Miranda, que era o seu médico,
já o havia sido de seus pais e nunca lhes mandara a conta.
- Está dito?
- Está dito. Vou indagar quem é o tal Alexandrino Pimentel, e pode
contar que dentro de três ou quatro dias terá os esclarecimentos que deseja.
No mesmo dia, o Chico foi ter com um velho camarada, empregado
antigo da Central, e perguntou-lhe se
conhecia um sujeito
que ali tinha
estado algum tempo, chamado
Alexandrino Pimentel.
- Um bêbado! - respondeu prontamente o outro.
- Bêbado?
- Bêbado, sim! Foi por isso que o Passos o pôs na rua!
- Mas não se terá corrigido?
- Não sei; nunca mais ouvi falar nele. Quem te pode informar com
segurança é o Trancoso. - Sim, que ele era casado com a filha do Trancoso, por
sinal que não se dava com o sogro.
- Casado?
- Casado, sim!
- Quem é esse Trancoso?
- Um ex-colega meu, aposentado há uns quatro anos. Mora lá para os
lados de Inhaúma.
- Podes dar-me um bilhete de apresentação para ele?
- Pois não!
No dia seguinte o Chico estava em Inhaúma, à procura do tal
Trancoso, que já lá não morava; havia seis meses que se mudara para Copacabana,
onde adquirira uma casinha; entretanto o pobre rapaz não esmoreceu diante de
uma tremenda maçada, e no outro dia, depois de duas horas de indagações, batia
à porta do Trancoso.
Veio abrir-lha um
velho asmático, envolvido
numa capa, lenço
de seda ao pescoço, carapuça enterrada até às
orelhas, barba por fazer, cara de poucos amigos.
Quando o Chico pronunciou o nome de Alexandrino Pimentel, o velho
enfureceu-se, gritando que nada tinha de comum com "esse bandido"!
- Mas não é ele seu genro?
- Foi por desgraça minha, mas já o não é, pois deu tantos
desgostos à minha filha, que a matou!
- Eu desejava
apenas tomar algumas
informações a respeito
desse homem. Trata-se de coisa
grave. Ele pretende casar-se em segundas núpcias, e foi a família da noiva que
me pediu para...
- Pois, meu caro senhor, as informações que lhe tenho a dar são as
seguintes: o sujeito de quem se trata é malandro, bêbado, devasso jogador e
bruto. Bruto a ponto de bater, como batia na sua própria mulher! Se a tal
senhora, com quem ele se pretende
casar, quiser passar
fome e ser
armazém de pancada,
não poderá escolher melhor! E agora, meu caro amigo, que tem as
informações que desejava, passe muito bem! Deixe-me em paz, porque sou doente,
e as visitas aborrecem-me!...
Dizendo isto, o velho foi empurrando o Chico para a porta da rua.
Este saiu perfeitamente edificado a respeito de Alexandrino
Pimentel, mas, ao ar livre,
refletiu que todas
essas informações, partindo
de um homem
tão apaixonado e tão grosseiro, poderiam ser, pelo menos até certo
ponto, injustas; por isso pôs-se de novo em campo e, indaga daqui, pergunta
dacolá, chegou, depois de conversar com dez ou doze pessoas fidedignas, à firme
convicção de que tudo aquilo era a pura expressão da verdade.
Essas pesquisas tomaram-lhe mais tempo do que três ou quatro dias
dentro dos quais prometera voltar à casa do Dr. Miranda. Quando voltou, já os
amores de Maricota e Alexandrino
haviam assumido proporções
consideráveis, e o
Dr. Miranda tinha revelado à irmã que o obsequioso Chico se incumbira de
tomar informações a respeito do pretendente.
- Que diabo! Julguei que você não me aparecesse mais. - exclamou o
médico ao ver então o seu cliente gratuito.
- A coisa deu mais trabalho do que eu supunha, e eu não quis fazer
nada no ar. Trago-lhe informações seguras!
- Boas ou más?
- Péssimas.
O Dr. Miranda chamou a irmã, que acudiu logo.
- Olha, Maricota, aqui tens o Chico; vai dizer-nos quem e o teu
Pimentel.
- Pois diga!
- resmungou Maricota
com um olhar
zangado, adivinhando os horrores trazidos pelo Chico.
Este voltou-se para o Dr. Miranda e disse-lhe:
- O senhor coloca-me numa situação difícil. Julguei que isto não
passasse de nós dois, mas agora, em presença de D. Maricota, sinto-me acanhado
e receoso, porque não posso dizer senão a verdade, e a verdade é muito
desagradável.
- Minha irmã é a principal interessada neste assunto, redarguiu o
doutor, e deve até agradecer-lhe o trabalho que você teve com esse inquérito. O
seu dever de amigo está cumprido; ela que o ouça e faça o que entender; é
senhora das suas ações.
O Chico, arrependido já de se haver metido naquele incidente de
família, contou minuciosamente as diligências que fizera e o resultado a que
chegara.
Quando ele acabou o relatório:
- Tudo isso é calúnia, calúnia, calúnia torpe! - bradou Maricota,
fula de raiva e batendo o pé. - E quando seja verdade, gosto dele. Ele gosta de
mim, e havemos de ser um do outro, venha embora o mundo abaixo!
Não houve palavras
que a convencessem de
que tal casamento
seria um desastre. Diante da
vergonha, com que ela ameaçou o irmão de sair de casa para ir ter com o seu
amado, o Dr. Miranda curvou a cabeça, e o casamento fez-se.
Fez-se, e não há notícia de casal mais venturoso!
Alexandrino, que se empregara numa importante casa comercial, era
um marido solícito, dedicado,
carinhoso e previdente; não ia a passeio
ou a divertimento sem levar Maricota; não bebia senão água; não jogava senão a
bisca em família - e todas essas virtudes eram naturalmente realçadas pela
terrível perspectiva de que ele seria o contrário.
- Maricota apanhou a sorte grande! - diziam os amigos e parentes,
inclusive o Dr. Miranda.
Este, desde que as virtudes do cunhado se manifestaram, começou a
tratar com frieza o informante.
O pobre Chico
perdeu o amigo
e o médico,
foi odiado por
Maricota por ter pretendido frustrar a sua aventura, e o
regenerado Pimentel, quando soube da comissão que ele desempenhara, segurou-o
um dia com as duas mãos pela gola do casaco, e sacudiu-o dizendo-lhe:
- Eu devia
quebrar-te a cara,
miserável, mas perdôo-te,
porque és um desgraçado!.
Moralidade do conto: ninguém se meta na vida alheia,
principalmente quando se trate de evitar um casamento serôdio.
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Nota:
Texto-fonte: Arthur de Azevedo: Contos Diversos. Data não identificada
Texto-fonte: Arthur de Azevedo: Contos Diversos. Data não identificada
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