Naquela noite o Flores
entrou em casa oprimido por um
sentimento penoso, que não podia definir.Tinham-lhe dito que estava no Rio de
Janeiro a Ritinha, aquela interessante menina que há trinta anos, lá na
província, fora o seu primeiro amor e a sua primeira mágoa.Andou morto por
vê-la, não que lhe restasse no coração nem no espírito outra coisa senão a
saudade que todos nós sentimos
da infância e
da adolescência, -
queria vê-la por
mera curiosidade.Satisfizera o seu desejo naquela noite, quando menos o
esperava, num teatro. Ela ocupava quase um camarote inteiro com a sua
corpulência descomunal.
Mostrou-lha um comprovinciano e amigo:
- Não querias ver a Ritinha? Olha! Ali a tens!
- Onde?
- Naquele camarote.
- Quê! aquela velha gorda?...
- É a Ritinha!
- Virgem Nossa Senhora! - E
aquele homem de óculos azuis, que está
de pé, no fundo do camarote? É o marido!
- Qual marido! É o genro, casado com a filha, aquela outra senhora
muito magra que está ao lado dela. O marido é o velhote que está quase
escondido por trás do enorme corpanzil da tua ex-namorada.
O Flores, estupefato, contemplou e analisou longamente aquela
mulher, que fora o seu primeiro amor e a sua primeira mágoa.
ão podia haver dúvida: era ela. O olhar tinha ainda coisa do olhar
de outrora. Com aqueles destroços ele foi reconstituindo mentalmente, peça por
peça, a estátua antiga. Tinha a visão exata do passado.Representava-se uma
comédia. Ritinha ria-se de tudo, de todas as frases, de todos os gestos, de
todas as jogralices dos atores com uma complacência, de espectadora mal-educada
e por isso mesmo pouco exigente.Aquelas banhas flácidas, agitadas pelo riso,
tremiam convulsivamente dentro da seda do vestido, manchado pelo suor dos
sovacos.
O genro, que
se conservava sério
e imperturbável, lançava-lhe
uns olhos repreensivos e inquietos através dos óculos azuis. Ela
não dava por isso.
- Que diabo vieram eles fazer ao Rio de Janeiro? perguntou o
Flores.
- Nada... apenas passear.. . estão de passagem para a Europa.
* * *
E aí está
por que o
Flores entrou em
casa oprimido por
um sentimento que
não sabia definir.Quando ele se
espichou na cama estreita de solteirão, e abriu o livro que o esperava todas as
noites sobre o velador, não conseguiu ler uma página. Todo o seu passado lhe
afluía à memória.Ele e Ritinha foram companheiros de infância. Eram
vizinhos, - brincaram juntos e juntos cresceram. Tinham a mesma idade.Depois de dezessete anos,
aquela afeição tomou, nele, nela não, um caráter mais grave: transformou-se em
amor.
Mas Ritinha era já uma senhora e Flores ainda um fedelho.
Como o desenvolvimento fisiológico da mulher é mais precoce que o
do homem, raro é o moço que ao desabrochar da vida não teve amores malogrados.
Foi o que sucedeu
ao nosso Flores.
Ritinha não esperou
que ele crescesse e aparecesse: tendo-se-lhe
apresentado um magnífico partido, fez-se noiva aos dezoito anos.
O desespero do rapaz foi violento e sincero. Ele era ainda um
criançola, mas tinha a idade de Romeu, a idade em que já se ama.
Um pensamento horroroso lhe atravessou o cérebro: assassinar
Ritinha e em seguida suicidar-se.
Premeditou e preparou a cena: comprou um revólver, carregou-o com
seis balas, e marcou para o dia seguinte a perpetração do atentado.
Deitou-se, e naturalmente passou toda a noite em claro.
Ergueu-se pela manhã, vestiu-se, apalpou a algibeira e não
encontrou a arma.
- Oh!
Procurou-a no chão, atrás do baú, por baixo da cômoda: nada!
* * *
- Para que precisas tu de
um revólver, meu filho? perguntou a mãe do rapaz,
entrando no quarto.
- Está com a senhora?
- Está.
- Mas como soube...?
- As mães adivinham.
Flores não disse mais nada: caiu nos braços da boa senhora, e
chorou copiosamente.
Ela, que conhecia os amores do filho, deixou-o chorar a vontade;
depois, enxugou-lhe os olhos
com os seus beijos sagrados, e perguntou-lhe:
- Que ias tu fazer, meu filho? Matar-te?
- Sim, mas primeiro matá-la-ia também!
- E não te lembraste de mim?... não te lembraste de tua mãe?...
- Perdoe.
E nova torrente de lágrimas lhe inundou a face.
- Ouve meu filho: na tua idade feliz um amor cura-se com. outro. O
que neste momento se te afigura
uma desgraça irremediável, mais
tarde se converterá
numa recordação risonha
e aprazível. Se todos os moços da tua idade se matassem por causa disso,
e matassem também as suas ingratas, há muito tempo que o mundo teria acabado.
Raros são os que se casam Com a sua primeira namorada. O que te sucedeu não é a
exceção, é a regra. O mal de muitos consolo
é.
- Eu quisera que Ritinha não pertencesse a nenhum outro homem!
- Matá-la? Para quê? Ela desaparecerá sem morrer... nunca mais terá
dezoito anos... A idade transforma-nos tal qual a morte. Não imaginas como tua
mãe foi bela!
O velho Flores, pai do rapaz, informado por sua mulher do que se
passara, e receoso de que o filho,
impulsivo por natureza,
praticasse algum desatino,
resolveu mandá-lo para
o Rio de Janeiro, onde ele chegou meses antes do
casamento de Ritínha.
* * *
Naquela noite o Flores, quase qüinquagenário, chefe de repartição,
lembrava-se das palavras maternas e reconhecia quanta verdade continham.
Ainda naquele momento sua mãe, que há tantos anos estava morta,
parecia falar-lhe, parecia dizer-lhe:
- Não te dizia eu?
- E que impressão receberia Ritinha se me visse? pensou ele.
Também eu sou uma ruína...
* * *
O Flores apagou a vela, adormeceu e sonhou com ambas as Ritinhas,
a do passado e a do presente.
Dali por diante, todas as vezes que encontrava esta última, dizia
consigo:
- Olhem se eu a tivesse matado!
---
---
Nota:
Texto-fonte: Arthur de Azevedo: “Contos Possíveis”, de 1889
Texto-fonte: Arthur de Azevedo: “Contos Possíveis”, de 1889
Nenhum comentário:
Postar um comentário