Foi num teatro
que começaram as
nossas relações. Estávamos
na platéia, sentados ao pé um do
outro.
Ele interessava-se muito
pelo espetáculo, e
de vez em
quando me fazia
ao ouvido algumas observações críticas, tratando-me pelo meu nome.
Eu estava um tanto contrariado: não gosto de conversar com pessoas
que não conheço; mas o meu vizinho da platéia me parecia um homem tão simples,
que no meu espírito não se formou nenhuma prevenção desairosa a seu respeito.
- Veja como o F. está representando mal! - disse-me ele,
referindo-se a um ator que na realidade metia os pés pelas mãos. - É pena que o F. seja tão mau artista,
sendo tão bom rapaz!
- Conhece-o?
- Há muitos anos... desde criança... somos amigos... um excelente
guarda-livros, que poderia ganhar um ordenadão numa boa casa, mas prefere ser
ator, para fazer esta figura que se está vendo!
Acabado o espetáculo, entrei num botequim para tomar chocolate, e
lá estava o nosso homem, que
me queria obrigar
a sentar-me junto dele;
agradeci-lhe o obséquio e tomei
lugar noutra mesa.
Daí a instantes entrou o ator, o tal que não queria ser
guarda-livros, e sentou-se perto de mim.
Perguntei imediatamente:
- Você sabe me dizer quem é aquele sujeito?
- Não sei.
Conheço-o de vista
há longos anos...
somos velhos camaradas... tratamo-nos por tu... mas
ignoro como se chama e qual seja a sua ocupação.
- É singular!
- É, não há dúvida; mas a vida carioca tem destas coisas...
* * *
Depois disso, eu
encontrava constantemente o desconhecido nas
ruas nos teatros, nos bondes,
nas festas, em toda parte, sempre sozinho e apressado, como se tivesse muito
que fazer.
A princípio cumprimentava-me com
certa reserva cerimoniosa; mas
pouco a pouco os nossos repetidos
encontros o familiarizaram comigo, e ele começou a usar de um diminutivo
afetuoso:
- Adeus, Arturzinho... - ou do latim macarrônico: - Adeus,
Arturibus!
Como nos encontrássemos num leilão (ele freqüentava muito os
leilões, mas não comprava nada), apresentou-me, graciosamente, ao respeitável
conselheiro B, a quem perguntei depois:
- O conselheiro faz-me um obséquio?
- Estou às suas ordens.
- Diz-me quem é aquele cavalheiro que nos apresentou um ao outro?
- Oh! o senhor não o conhece?
- Não.
- Nem eu! - Há muitos anos lhe falo... trata-me com certa
intimidade... mas não sei como se chama nem quem é.
- Deveras?
- Isso pouco me tem importado, porque vejo que ele se dá com o
mundo inteiro.
E de todas as pessoas a quem me dirigia para saber, pelo menos, o
nome do "meu amigo", ouvia a mesma indefectível resposta:
- Conheço-o há muitos anos, mas não sei quem é.
* * *
O seu tipo nada tinha de característico nem de anormal. Ele
vestia-se de um modo que nenhuma indicação poderia fornecer sobre a sua vida ou
sobre os seus hábitos. A
última vez que
o vi, ele
trazia, aparentemente, a
mesma sobrecasaca, as mesmas
calças brancas e
o mesmo chapéu
alto com que estava aquela noite no teatro.
Bem quisera eu
perguntar-lhe: - Como
te chamas? -
e seria esse
um meio infalível de saber o seu
nome todo; mas isso é lá pergunta que um homem possa fazer a um camarada que há
vinte anos o trata por tu...
Um dia lancei mão de um ardil:
- Tens aí um dos teus cartões de visita para a minha coleção?
Estou reunindo num álbum os cartões de todos os meus amigos.
- Cartões de visita? Nunca os tive! Nunca me submeti a essa
ridícula exigência da vida social. Sou um boêmio. - Adeus, Arturibus.
* * *
E era, efetivamente, um boêmio.
Entretanto, dispunha de
recursos, não pedia
nada a ninguém
e, de vez
em quando, fazia longas que eu o supunha morto.
Quando já estava esquecido, reaparecia, sempre com as suas calças
brancas, a sua sobrecasaca, o seu chapéu alto e sozinho sempre, dizendo que
tinha feito um viajão.
* * *
Uma vez, passando por certa rua desta cidade, vi grande
ajuntamento de povo às portas de uma farmácia.
Curioso, como toda a gente, perguntei o que tinha havido.
Era um homem
que, passando por
ali, entrara incomodado
e falecera subitamente de
uma síncope cardíaca.
Estavam à espera
da carrocinha que devia levá-lo para o Necrotério.
Entrei na farmácia e reconheci que o morto era ele, o meu
misterioso amigo.
O farmacêutico, homem já maduro, conhecia-o tanto como eu.
- Conhecemo-nos há longos anos - disse-me ele. - Tratava-me por
tu, não me passava pela porta que não me
dissesse: - Adeus, Joãozinho! - mas nunca lhe soube o nome, nem o emprego, nem
a residência.
Entre os circunstantes, muitos o conheciam de vista; nenhum ligava
o nome à pessoa.
* * *
O cadáver foi removido para o Necrotério.
- Até que
afinal vou saber
quem ele era!
A identidade do
morto há de
ser reconhecida pela polícia.
Pois não foi. A polícia nem ao menos descobriu o domicílio do meu
amigo, e, por mais estranho que isto pareça, a verdade é que figurou no
obituário como "um desconhecido de 50 anos presumíveis".
Quem ele era?
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Nota:
Texto-fonte: Arthur Azevedo: Contos Diversos. Data não identificada
Texto-fonte: Arthur Azevedo: Contos Diversos. Data não identificada
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