domingo, 31 de março de 2013

Artur de Azevedo: "Quem Ele Era?"


QUEM ELE ERA?


Foi   num   teatro   que   começaram   as   nossas   relações.   Estávamos   na   platéia, sentados ao pé um do outro.

Ele   interessava-se   muito   pelo   espetáculo,   e   de   vez  em   quando   me   fazia   ao ouvido algumas observações críticas, tratando-me pelo meu nome.

Eu estava um tanto contrariado: não gosto de conversar com pessoas que não conheço; mas o meu vizinho da platéia me parecia um homem tão simples, que no meu espírito não se formou nenhuma prevenção desairosa a seu respeito.

- Veja como o F. está representando mal! - disse-me ele, referindo-se a um ator que na realidade metia os pés  pelas mãos. - É pena que o F. seja tão mau artista, sendo tão bom rapaz!

- Conhece-o?

- Há muitos anos... desde criança... somos amigos... um excelente guarda-livros, que poderia ganhar um ordenadão numa boa casa, mas prefere ser ator, para fazer esta figura que se está vendo!

Acabado o espetáculo, entrei num botequim para tomar chocolate, e lá estava o nosso   homem,   que  me  queria  obrigar  a sentar-me   junto  dele;  agradeci-lhe  o obséquio e tomei lugar noutra mesa.

Daí a instantes entrou o ator, o tal que não queria ser guarda-livros, e sentou-se perto de mim.

Perguntei imediatamente:

- Você sabe me dizer quem é aquele sujeito?

-   Não   sei.   Conheço-o  de   vista   há   longos   anos...   somos   velhos   camaradas... tratamo-nos por tu... mas ignoro como se chama e qual seja a sua ocupação.

- É singular!

- É, não há dúvida; mas a vida carioca tem destas coisas...

* * *

Depois   disso,   eu   encontrava   constantemente   o   desconhecido   nas   ruas   nos teatros, nos bondes, nas festas, em toda parte, sempre sozinho e apressado, como se tivesse muito que fazer.

A   princípio   cumprimentava-me   com   certa   reserva   cerimoniosa;   mas   pouco   a pouco os nossos repetidos encontros o familiarizaram comigo, e ele começou a usar de um diminutivo afetuoso:

- Adeus, Arturzinho... - ou do latim macarrônico: - Adeus, Arturibus!

Como nos encontrássemos num leilão (ele freqüentava muito os leilões, mas não comprava nada), apresentou-me, graciosamente, ao respeitável conselheiro B, a quem perguntei depois:

- O conselheiro faz-me um obséquio?

- Estou às suas ordens.

- Diz-me quem é aquele cavalheiro que nos apresentou um ao outro?

- Oh! o senhor não o conhece?

- Não.

- Nem eu! - Há muitos anos lhe falo... trata-me com certa intimidade... mas não sei como se chama nem quem é.

- Deveras?

- Isso pouco me tem importado, porque vejo que ele se dá com o mundo inteiro.

E de todas as pessoas a quem me dirigia para saber, pelo menos, o nome do "meu amigo", ouvia a mesma indefectível resposta:

- Conheço-o há muitos anos, mas não sei quem é.

* * *

O seu tipo nada tinha de característico nem de anormal. Ele vestia-se de um modo que nenhuma indicação poderia fornecer sobre a sua vida ou sobre os seus   hábitos.   A   última   vez   que   o   vi,   ele   trazia,   aparentemente,   a   mesma sobrecasaca,   as   mesmas   calças   brancas   e   o   mesmo   chapéu   alto   com   que estava aquela noite no teatro.

Bem   quisera   eu   perguntar-lhe:   -   Como   te   chamas?   -   e   seria   esse   um   meio infalível de saber o seu nome todo; mas isso é lá pergunta que um homem possa fazer a um camarada que há vinte anos o trata por tu...

Um dia lancei mão de um ardil:

- Tens aí um dos teus cartões de visita para a minha coleção? Estou reunindo num álbum os cartões de todos os meus amigos.

- Cartões de visita? Nunca os tive! Nunca me submeti a essa ridícula exigência da vida social. Sou um boêmio. - Adeus, Arturibus.

* * *

E era, efetivamente, um boêmio.

Entretanto,   dispunha   de   recursos,   não   pedia   nada   a   ninguém   e,   de   vez   em quando, fazia longas que eu o supunha morto.

Quando já estava esquecido, reaparecia, sempre com as suas calças brancas, a sua sobrecasaca, o seu chapéu alto e sozinho sempre, dizendo que tinha feito um viajão.

* * *

Uma vez, passando por certa rua desta cidade, vi grande ajuntamento de povo às portas de uma farmácia.

Curioso, como toda a gente, perguntei o que tinha havido.

Era   um   homem   que,   passando   por   ali,   entrara   incomodado   e   falecera subitamente   de  uma   síncope   cardíaca.   Estavam   à   espera   da   carrocinha   que devia levá-lo para o Necrotério.

Entrei na farmácia e reconheci que o morto era ele, o meu misterioso amigo.

O farmacêutico, homem já maduro, conhecia-o tanto como eu.

- Conhecemo-nos há longos anos - disse-me ele. - Tratava-me por tu, não me  passava pela porta que não me dissesse: - Adeus, Joãozinho! - mas nunca lhe soube o nome, nem o emprego, nem a residência.

Entre os circunstantes, muitos o conheciam de vista; nenhum ligava o nome à pessoa.

* * *
O cadáver foi removido para o Necrotério.

-   Até   que   afinal   vou   saber   quem   ele   era!   A   identidade   do   morto   há   de   ser reconhecida pela polícia.

Pois não foi. A polícia nem ao menos descobriu o domicílio do meu amigo, e, por mais estranho que isto pareça, a verdade é que figurou no obituário como "um desconhecido de 50 anos presumíveis".

Quem ele era?


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Nota:
Texto-fonte: Arthur Azevedo: Contos Diversos. Data não identificada

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