domingo, 31 de março de 2013

Artur de Azevedo: "Octogenário"


OCTOGENÁRIO 


Ainda não houve no Rio de Janeiro "república" de estudantes mais séria que a do Coutinho, na Rua do Resende. Na vizinhança diziam todos que os moradores daquela casa pareciam, não estudantes, mas altos funcionários e chefes de família. Era uma "república" modelo.

Como não devia ser assim, se o Coutinho, filho de um rico fazendeiro de Minas, estudioso, tranqüilo   e   morigerado,   reunira   naquele   sobrado   quatro   comprovincíanos   seus,   de   um comportamento irrepreensível, e todos filhos de gente abastada, para que nada faltasse em  casa, nem houvesse credores à porta?

Um   deles   particularmente,   o   Gaspar,   era   tão   grave,   que   raramente   sorria,   poucas   vezes conversava, e parecia ter o dobro da sua idade; entretanto, era o único dos moradores daquela casa que passava as noites fora...

Nunca  ninguém  viu entrar ali mulheres, o que não quer dizer que os cinco rapazes fossem santos.

O   Coutinho,   por   exemplo,   gostava   de   uma   linda   espanhola   da   Rua   do   Riachuelo;   mas   a pequena só admitia que ele a visitasse pela manhã, pois só pela manhã estava livre: do meio-dia em diante pertencia a um velho negociante, octogenário, que lhe tomava toda a tarde e toda a noite sem lhe tomar mais nada, segundo ela dizia e o Coutinho acreditava, porque os rapazes acreditam em tudo quanto as mulheres dizem.

Ora,   um   dia   fez   anos   o  Leandro,   o  mais   alegre  e   o  mais   novo   dos   cinco,   e  ofereceu   aos companheiros  um  almoço  regado por diversas  bebidas,  que  tinham  tanto  de finas  como  de capitosas.

Beberam todos,  inclusive o austero Gaspar, mas  não  se excederam,  embora ficassem  mais expansivos que de costume. Tão expansivos que vieram amores à baila, e o Leandro entrou a contar a sua aventura mais recente.

- Saibam que tenho uma amante! - disse ele.

- Também eu! - acrescentou o Coutinho.

- É espanhola!

- Também a minha.

- Mora na Rua do Riachuelo.

- A minha também! Se disseres que o nome dela é Mercedes, aposto que somos rivais!

- É efetivamente Mercedes, que ela se chama!

- O número da casa?

- Trinta.

- É a mesma! A mesmíssima!

- Que mulher fingida!

- Que desavergonhada! Ela só consente que estejamos juntos antes do meio-dia, porque dessa hora em diante pertence a um octogenário!

- A mim só me recebe à tardinha, porque à noite o octogenário lá está!

- E esse octogenário é um unhas de fome...

- Um vinagre...

- Que não lhe dá tudo quanto ela precisa...

- Pelo que é obrigada a recorrer à minha bolsa...

- E à minha!...

- Que mulher!...

- Que desavergonhada!

No calor da inopinada revelação, cortada pelas gargalhadas sonoras de dois dos companheiros, não repararam os rapazes que o Gaspar chorava convulsivamente, escondendo o rosto entre as mãos.

Os quatro, que atribuíram esse pranto ao vinho (e até certo ponto não se enganavam), correram para ele:

- Então?... Que é isso, Gaspar?... Que é isso?...

O austero estudante ergueu a cabeça e berrou, enquanto as lágrimas lhe deslizavam pelo rosto abaixo:

- O octogenário sou eu!...


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Nota:
Texto-fonte: Arthur Azevedo: Contos Diversos. Data não identificada

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