domingo, 31 de março de 2013

Artur de Azevedo: "O Sonho do Conselheiro"


O SONHO DO CONSELHEIRO 


O conselheiro Lapa era o chefe de família mais austero que naquele tempo havia no Rio de Janeiro. Funcionário de elevada categoria, nunca ninguém o viu por essas ruas senão de sobre-casaca preta e chapéu alto. Creio que foi por isso, e pelos óculos, uns óculos de aro de ouro, terrivelmente solenes, que o imperador
lhe deu a carta de conselho, pois ninguém lhe conhecia outros méritos.

O conselheiro Lapa era casado e tinha uma filha, que passara dos vinte anos sem   que   nenhum   rapaz   a   namorasse,   não   porque   fosse   feia   ou   antipática, vaidosa ou mal educada, mas porque ninguém se atrevia a levantar os olhos para a filha de um conselheiro tão grave e tão conspícuo.

Entretanto, um simples escriturário do Tesouro teve um dia a ventura de fazer falar o coração da moça.

Animado pelas intenções mais puras, e competentemente autorizado pela sua bela,   o   escriturário   um   dia   fez   provisão   de   coragem,   subiu   a   escada   do conselheiro, pediu para falar a sua excelência, e quando se viu diante daqueles óculos,   sabe   Deus   como   formulou,   ou   antes,   balbuciou   um   pedido   de casamento.

O conselheiro não se dignou responder; limitou-se a medir o insolente de alto a baixo,   e   a   apontar-lhe   a   porta,   dizendo-lhe   secamente:   -   Não   admito   esses gracejos em minha casa! Rua!. .

* * *

Este procedimento afligiu bastante os dois namorados, e fez naturalmente com que eles se apaixonassem deveras um pelo outro.

A   menina   teve   tal   desgosto,   e   deixou   de   alimentar-se   durante   tantos   dias consecutivos que adoeceu gravemente.

A  esposa  do  conselheiro,   boa  senhora,  mas  muito   fraca,  muito   achacada   de  asma, esgotou diante do implacável marido todos os argumentos que acudiram  ao seu coração de mãe; mas a melhor e mais eloqüente advogada de Rosalina e Alberto, que assim se chamavam os namorados, foi a Teresa, uma bonita mulata que,   em   pequena,   aos   doze   anos,   tinha   sido   contratada   para   ama-seca   de Rosalina,   e   ali   se   fizera   mulher,   sem   ter   querido   nunca   abandonar   a   casa, recusando até o casamento que lhe oferecera um português apatacado, dono da casa de pasto da esquina.

A Teresa tinha trinta e três anos, mas ninguém lhe daria mais de vinte e cinco.

* * *

Apesar de toda a sua austeridade, o nosso conselheiro há quinze anos que não perdia   ocasião   de   fazer   declarações   de   amor   à   agregada,   e   não   perdia   a esperança de que ela um dia cedesse.

A mulata resistia a todas as investidas libidinosas do amo; dizia-lhe que tomasse juízo, que respeitasse o seu lar doméstico, que a senhora e a menina podiam reparar,   etc.,   e,   naturalmente,   o   conselheiro   andava   em  tudo   isso   com   tanta manha e hipocrisia que ninguém suspeitava daquele trabalhinho de quinze anos.

* * *

A Teresa, que estimava deveras a Rosalina, lembrou-se (de que não se lembram as mulheres!) de utilizar em beneficio da menina os maus sentimentos do pai, e, um dia, fingindo-se cansada de tanta perseguição, concedeu ao conselheiro a entrevista que há tanto tempo solicitava.

Na   madrugada   seguinte,   o   austero   pai   de   família,   de  robe   de   chambre  e chinelos, mas sem óculos, entrou devagarinho no quarto da mulata, e esta, mal que   o   apanhou   lá   dentro,   começou   a   gritar   com   todas   as   forças   dos   seus pulmões:

- Sinhazinha! Sinhazinha! Parabéns! Parabéns!...

A velha, apesar de sua asma, e Rosalina saltaram imediatamente das camas, envolveram-se nas colchas, e foram ter, assustadas, ao quarto da Teresa, onde encontraram o conselheiro sem pinga de sangue.

- Parabéns, sinhazinha!  - continuou a gritar a boa mulata. - O patrão teve um sonho tão esquisito, e ficou tão impressionado, que resolveu consentir no seu casamento  com  o  Sr.  Alberto!  Ele  veio  acordar-me  para  eu levar a notícia  à sinhazinha.

O conselheiro não teve o que dizer.


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Nota:
Texto-fonte: Arthur Azevedo: Contos Diversos. Data não identificada

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