O conselheiro Lapa era o chefe de família mais austero que naquele
tempo havia no Rio de Janeiro. Funcionário de elevada categoria, nunca ninguém
o viu por essas ruas senão de sobre-casaca preta e chapéu alto. Creio que foi
por isso, e pelos óculos, uns óculos de aro de ouro, terrivelmente solenes, que
o imperador
lhe deu a carta de conselho, pois ninguém lhe conhecia outros
méritos.
O conselheiro Lapa era casado e tinha uma filha, que passara dos
vinte anos sem que nenhum
rapaz a namorasse,
não porque fosse
feia ou antipática, vaidosa ou mal educada, mas
porque ninguém se atrevia a levantar os olhos para a filha de um conselheiro
tão grave e tão conspícuo.
Entretanto, um simples escriturário do Tesouro teve um dia a
ventura de fazer falar o coração da moça.
Animado pelas intenções mais puras, e competentemente autorizado
pela sua bela, o escriturário um
dia fez provisão
de coragem, subiu
a escada do conselheiro, pediu para falar a sua
excelência, e quando se viu diante daqueles óculos, sabe
Deus como formulou,
ou antes, balbuciou
um pedido de casamento.
O conselheiro não se dignou responder; limitou-se a medir o
insolente de alto a baixo, e a
apontar-lhe a porta,
dizendo-lhe secamente: -
Não admito esses gracejos em minha casa! Rua!. .
* * *
Este procedimento afligiu bastante os dois namorados, e fez
naturalmente com que eles se apaixonassem deveras um pelo outro.
A menina teve
tal desgosto, e
deixou de alimentar-se durante
tantos dias consecutivos que
adoeceu gravemente.
A esposa do
conselheiro, boa senhora,
mas muito fraca,
muito achacada de asma,
esgotou diante do implacável marido todos os argumentos que acudiram ao seu coração de mãe; mas a melhor e mais
eloqüente advogada de Rosalina e Alberto, que assim se chamavam os namorados,
foi a Teresa, uma bonita mulata que,
em pequena, aos
doze anos, tinha
sido contratada para
ama-seca de Rosalina, e
ali se fizera
mulher, sem ter
querido nunca abandonar
a casa, recusando até o
casamento que lhe oferecera um português apatacado, dono da casa de pasto da
esquina.
A Teresa tinha trinta e três anos, mas ninguém lhe daria mais de
vinte e cinco.
* * *
Apesar de toda a sua austeridade, o nosso conselheiro há quinze
anos que não perdia ocasião de
fazer declarações de
amor à agregada,
e não perdia
a esperança de que ela um dia cedesse.
A mulata resistia a todas as investidas libidinosas do amo;
dizia-lhe que tomasse juízo, que respeitasse o seu lar doméstico, que a senhora
e a menina podiam reparar, etc., e,
naturalmente, o conselheiro
andava em tudo
isso com tanta manha e hipocrisia que ninguém
suspeitava daquele trabalhinho de quinze anos.
* * *
A Teresa, que estimava deveras a Rosalina, lembrou-se (de que não
se lembram as mulheres!) de utilizar em beneficio da menina os maus sentimentos
do pai, e, um dia, fingindo-se cansada de tanta perseguição, concedeu ao
conselheiro a entrevista que há tanto tempo solicitava.
Na madrugada seguinte,
o austero pai
de família, de robe de
chambre e chinelos, mas sem
óculos, entrou devagarinho no quarto da mulata, e esta, mal que o
apanhou lá dentro,
começou a gritar
com todas as
forças dos seus pulmões:
- Sinhazinha! Sinhazinha! Parabéns! Parabéns!...
A velha, apesar de sua asma, e Rosalina saltaram imediatamente das
camas, envolveram-se nas colchas, e foram ter, assustadas, ao quarto da Teresa,
onde encontraram o conselheiro sem pinga de sangue.
- Parabéns, sinhazinha! -
continuou a gritar a boa mulata. - O patrão teve um sonho tão esquisito, e
ficou tão impressionado, que resolveu consentir no seu casamento com
o Sr. Alberto!
Ele veio acordar-me
para eu levar a notícia à sinhazinha.
O conselheiro não teve o que dizer.
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Nota:
Texto-fonte: Arthur Azevedo: Contos Diversos. Data não identificada
Texto-fonte: Arthur Azevedo: Contos Diversos. Data não identificada
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