O MEU CRIADO JOÃO
No dia em que ele me apareceu, recomendado por uma senhora a quem
me queixara da falta de um bom criado, fiz-lhe as perguntas usuais:
- Como se chama?
- João.
- É português?
- Não, senhor; sou da Ilha da Madeira.
- Ora esta! Se é da Madeira, é português!
- Não, senhor: sou ilhéu.
- Bom; quanto quer ganhar por mês?
- Contento-me com que o patrão me der, contanto que não seja menos
de cinqüenta mil-réis, casa e comida.
Fiquei com o João.
Nesse mesmo dia encontrei-o a lavar as mãos com o meu sabonete
fino, que eu reservava, naturalmente, para o meu uso exclusivo.
- Que é isso? Você serve-se do meu sabonete?
- Não, senhor, não me estou servindo dele; estou a lavá-lo, porque
estava sujo de espuma.
A minha vontade foi mandá-lo embora, mas não o fiz.
Não o fiz e, dali a três dias, entrando em casa, encontrei em
cacos, na cesta dos papéis inúteis, uma estatueta da Vênus de Milo, que era de
gesso, pouco valia, mas eu estimava muito por ser uma reprodução muito fiel do
famoso mármore do Louvre.
Fiquei furioso:
- Quem quebrou isto?
- Fui eu, sim senhor, mas não foi por querer, respondeu-me ele a
rir-se.
- E você ainda em cima se ri!
- Ora, patrão! Já faltavam os dois braços à boneca! Não o mandei
embora.
Uma ocasião, os marinheiros de um dos nossos navios de guerra
recolheram a bordo um pobre cão naufragado, exausto já de tanto lutar com as
ondas.
Como já houvesse cão a bordo, e ninguém o quisesse, veio o animal
para a terra, trazido por um oficial de Marinha que mo ofereceu.
Era um cão ordinário, mas inteligentíssimo. Os seus primitivos
donos tinham-lhe ensinado umas tantas
habilidades; ele comprazia-se em
mostrar-nas, e ficava
muito satisfeito, agitando vertiginosamente a cauda e pondo a
língua de fora, quando eu lhas aplaudia, acariciando-lhe o pêlo. Era muito mais
inteligente que o João.
Uma vez achavam-se reunidos
em minha casa
alguns amigos, e
encantavam-nos as habilidades do
cão, que estava presente.
O João ouvia calado, mas notava-se na sua fisionomia o desejo de
intervir na conversa. Afinal interveio:
- O patrão esqueceu-se de contar aos senhores a maior habilidade
deste cão!
- Qual é? qual é? perguntaram todos em coro.
- Este cão que aqui estão vendo, senhores, sabe nadar!
Ao jantar, como ele nos viesse dizer, muito compungido, que na
venda não havia nem mais uma pedrinha de gelo, para remédio, um dos rapazes
exclamou, gracejando:
- Oh, senhor! pois nessa venda não há nem do tal gelo em latas,
que hoje se encontra em toda a parte?
O João disfarçou, saiu, e pouco depois voltou com esta notícia:
- O dono da venda diz que tinha, mas acabou-se.
- O quê?
- Gelo em latas.
Imaginem que risota!
Eu recomendara terminantemente ao meu criado que me não deixasse
dormir além das oito horas da manhã; ele, porém, não tinha tido jamais ocasião
de cumprir essa ordem, porque às sete já eu estava de pé.
Certa manhã, tendo-me deitado bastante tarde, acordei e,
consultando o relógio, vi que eram já nove horas.
- Ó, João!
- Patrão?
- Pois não lhe tenho eu dito um milhão de vezes que não me deixe
dormir além das oito horas?
O João sorriu - o mesmo sorriso de quando quebrou a Vênus de Milo -, coçou a cabeça e respondeu:
- Eu vim acordar o patrão, vim...
- E então?
- Mas não acordei o patrão porque o patrão estava a dormir!
Mas a melhor foi esta: Uma noite em que lhe mandei oferecer
cerveja às visitas, ele apareceu na sala com uma bandeja em que havia seis
copos cheios e dois vazios.
- Para que esses copos vazios, João?
- É para alguém que não queira...
Dessa vez pu-lo no olho da rua!
---
Nota:
Texto-fonte: Arthur Azevedo: Contos Diversos. Data não identificada
Texto-fonte: Arthur Azevedo: Contos Diversos. Data não identificada
Nenhum comentário:
Postar um comentário