sábado, 30 de março de 2013

Artur de Azevedo: "O Asa-Negra"


O ASA-NEGRA 


Quando, em 185... poucos momentos antes de nascer Raimundo, sua mãe curtia as dores do parto   e   curvava-se   instintivamente,   agarrando-se   aos   móveis   e   às   paredes,   mandaram chamar   a   toda   pressa   a   única   parteira   que   naquele   tempo   havia   na   pequena   cidade   de Alcântara.

A comadre prodigalizava, naquele momento, os cuidados da sua arte hipotética à mãe de Aureliano, que era mais rica.

Só   algumas   horas   mais   tarde   pôde   acudir   ao   chamado;   mas   já   não   era   tempo:   a   mãe sucumbira  à eclampsia; o filho salvara-se por um  milagre, que  ficou até  hoje gravado na tradição obstétrica de Alcântara.

O pobre órfão devia sofrer, enquanto vivesse, as terríveis conseqüências, não só da inépcia das   mulheres   que   assistiram   a   sua   mãe,   como   do   falecimento   desta.   Era   aleijado, entanguecido, e tinha a cabeça singularmente achatada, nas cavidades frontais, pela pressão grosseira de dedos imperitos. Um menino feio, muito feio.

* * *

Quando Raimundo entrou para a escola, já lá encontrou Aureliano, rapazito lindo, vigoroso e rubicundo;   mas   uma   antipatia   invencível   afastou-o   logo   desse   causador   involuntário   dos infortúnios que lhe cercaram o berço.

Aureliano, que era de um natural orgulhoso, não perdia ensejo de vingar-se da antipatia do outro. Não houve diabrura de que o não acusasse falsamente, e, como Raimundo não era estimado,  por ser feio,  não encontrava defesa, e estendia  resignado a mão pequenina às palmatoadas estúpidas do mestre escola. Isto acontecia diariamente.

O mestre, afinal. cansado de castigá-lo em pura perda, pois que as acusações continuavam da parte de Aureliano, expulsou-o da escola; e, como não houvesse outra em Alcântara, o bode   expiatório   cresceu   à   bruta,   sem   instrução,   não   tendo   achado   no   mundo   espírito compadecido que lhe levasse um raio de luz à treva da inteligência medíocre.

Mais tarde meteram-no a bordo de um barco, e mandaram-no para a capital, consignado a uma casa de comercio.

Aí encontrou Raimundo um protetor desinteressado, que lhe mandou ensinar primeiras letras e rudimentos de escrituração mercantil. A prática faria o resto.

Dentro   de   algum   tempo   o  menino,   que   já   contava   dezesseis   anos,   deveria   entrar,   corno ajudante de guarda-livros, para certo escritório de comissões; mas oito dias antes daquele em que devia tomar conta do emprego, morreu inesperadamente o seu protetor.

Entretanto, Raimundo apresentou-se, no dia aprasado, em casa do futuro patrão.

- Cá estou eu.

- Quem é você?

- O ajudante de guarda-livros de quem lhe falou o defunto Sr. F.

- Ah! sim... lembra-me... mas o meu amiguinho chore na cama que é lugar quente; o serviço não podia esperar, e eu tive que admitir outra pessoa.

E  apontou  para um   rapaz que,  sentado,  em  mangas  de  camisa, a uma  carteira  elevada, parecia absorvido pelo trabalho de escrita.

- Ah! murmurou despeitado o infeliz alcantarense.

O  outro levantou os  olhos,  e  Raimundo  reconheceu-o:  era Aureliano,  que  tinha  os  lábios arqueados por um sorriso verdadeiramente satânico.

* * *

Passaram-se alguns meses, durante os quais Raimundo passeou a sua penúria pelas ruas de S. Luís. Andava maltrapilho e quase descalço.

Arranjou, afinal, um modesto emprego braçal, numa agência de leilões. Só quatro anos mais tarde julgou prudente trocá-lo por um lugar de condutor de bonde.

Durante todo  esse tempo,  Aureliano,  o seu  asa-negra, moveu-lhe  toda  a guerra possível. Diariamente lhe chegavam aos ouvidos os impropérios gratuitos e as pequeninas intrigas do seu patrício.

Raimundo   convenceu-se   de   que   Aureliano,   rapaz   simpático   e   geralmente   estimado   na sociedade em que ambos viviam, nascera no mesmo momento em que ele, como um estorvo ao mecanismo da sua existência. Era o seu asa-negra.

* * *

Foi no bonde que Raimundo viu pela primeira vez os olhos negros e inquietos de Leopoldina.

Não se descreve a paixão que lhe inspirou essa morena bonita, cujos contornos opulentos causariam inveja às louras napéias de Rúbens. A rapariga tinha nos olhos a altivez selvagem e nos lábios a volúpia ingênita das mamelucas. O seu cabelo grosso, abundante e negro, prendia-se,   enrolado   no   descuido   artístico   das   velhas   estátuas   gregas,   deixando   ver   um  cachaço que estava a pedir, não os beijos de um Raimundo anêmico e doentio, porém as rijas dentadas de um gigante.

Pois Raimundo, que não era nenhum Polifemo, um belo dia conduziu ao altar a mameluca bonita, e até o instante da cerimônia esteve, coitado, vê não vê o momento em que Aureliano surgia inopinadamente de trás do altar-mor, para arrebatar-lhe a noiva.

Infelizmente assim não sucedeu.

Nos primeiros tempos de casado, tudo lhe correu às mil maravilhas; mas pouco a pouco a sua insuficiência foi se tornando flagrante. O seu organismo fazia prodígios para corresponder às exigências da esposa, cuja natureza não lhe indagava das forças.

As mulheres ardentes e mal-educadas, como Leopoldina, quando lhe faltam os maridos com a dosimetria do amor, confundem a miséria do sangue com a pobreza da casa. Questão de disfarçar  sentimentos,   e   de   aplicar   o  abstrato   ao   concreto.   Leopoldina,   que   até  então   se contentara   com   a  aurea   mediocritas  relativa   do   condutor   de   bonde,   começou   um   dia   a manifestar apetites de luxo, a sonhar frandulagens e modas.

De então em diante tornou-se um inferno a existência doméstica de Raimundo. Ano e meio depois de casado, ele evitava a convivência da esposa, jantava com os amigos, e só aparecia em casa para pedir ao sono forças para o trabalho do dia seguinte.

* * *

Mas, de uma feita em que se viu forçado a ir à casa em hora desacostumada, surpreendeu Leopoldina nos braços hercúleos de Aureliano.

Excitado   pelo   desespero,   cresceu   para   eles  frenético, espumante; mas os quatro   braços infames desentrelaçaram-se das criminosas delicias, e repeliram-no vigorosamente.

O pobre marido rolou sobre os calcanhares, e caiu de chapa, estatelado, sem sentidos.

Quando voltou a si, os dois amantes haviam desaparecido.

Raimundo não derramou uma lágrima, e voltou cabisbaixo para o trabalho.

Ao chegar à estação dos bondes, o chefe de serviço repreendeu-o, fazendo-lhe ver que a sua falta se tornara sensível. Despedi-lo-ia, se não fosse empregado antigo, que tão boas provas dera até então de si.

O   alcantarense   ergueu   a   cabeça.   Os   olhos   desvairados   saltavam-lhe   das   órbitas   com lampejos estranhos. E respondeu coisas incoerentes. Estava doido.

Dali a uma semana, foi para Alcântara, requisitado por um tio, derradeiro destroço de toda a família.

Pouco tempo durou, iludindo a vigilância do parente, saiu de casa uma noite, e atirou-se ao mar, afogando consigo as suas desgraças nas águas da Baía de São Marcos.

* * *

Dois  dias   depois  deste suicídio,  a Ilha do  Livramento, árido  promontório situado  perto  de Alcântara,   em   frente   àquela   Baia   de  São Nilarcos,   regurgitava   alegremente   de   povo. Realizava-se   a   festa   de   Nossa   Senhora, e  os fiéis  afluíam, tanto   da   capital   como   de Alcântara, à velha ermida solitária.

Aureliano,   alcantarense   da   gema   e   figura   obrigada   de   todas   as   festas   e   romarias, compareceu também ao arraial, exibindo publicamente a sua personalidade, que se tornara escandalosa depois do adultério de Leopoldina.

No Maranhão as paredes não têm somente ouvidos, como diz o adágio: têm também olhos.

* * *

Conquanto   o   céu   anunciasse   próxima   borrasca,   Aureliano   resolveu   deixar   a   Ilha   do Livramento e embarcar, ao escurecer, numa delgada canoa, em demanda de Alcântara, onde tencionava pernoitar. A empresa era sem dúvida arriscada; mas lá, na colina escura que se refletia   vagamente  nas   águas   negras  da   baía,  esperam-no  os  braços  roliços  da viúva do doido.

Embarcou.

Acompanhava-o apenas um remador, que desde pela manhã tomara a seu serviço.

* * *

Em meio da viagem, soprou de súbito rijo nordeste, e o mar, que até então se conservara plácido   e   próspero,   encapelou-se   raivoso.   Em   três   minutos   as   ondas   esbravejavam   já terrivelmente, e a canoa, erguida a grande altura, e de novo arremessada ao pélago, num estardalhaço de vagas, recebia no bojo quantidade de água suficiente para metê-la a pique.

- Cada um cuide de si! bradou o remador, atirando-se ao mar, e oferecendo combate heróico à impetuosidade das ondas. Nadava que nem Leandro.

Aureliano viu-se perdido. A canoa mergulhava. Ele não sabia nadar, o desgraçado! Preparou-se para morrer...

A embarcação submergiu-se.

O náufrago agitava instintivamente os braços e as pernas, esperando talvez que o desespero lhe ensinasse milagrosamente uma prenda que nunca aprendera.

Debalde!

Foi   ao fundo,  vertiginosamente. Voltou  de novo à tona d'água,  chamado  à vida pelo  seu sangue de moço. Bracejou... tentou bracejar... A sua mão encontrou alguma coisa fria. Muito fria... que flutuava. Agarrou-se a esse objeto salvador... boiou muito tempo com ele... e com ele finalmente foi arremessado à praia...

O cadáver de Raimundo salvara Aureliano.


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Nota:
Texto-fonte: Arthur de Azevedo: “Contos Possíveis”, de 1889 

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