domingo, 31 de março de 2013

Artur de Azevedo: "João Silva"


JOÃO SILVA 


Em casa do comendador Freitas, na Fábrica das Chitas, andavam todos "intrigados" com aquele flautista misterioso que, em companhia de um preto velho, taciturno e discreto, morava, havia perto de dois meses, numa casinha cujos fundos davam para os fundos da chácara.

Quando digo "todos", não digo a verdade, porque o vizinho não era completamente estranho à srta. Sara, filha única do aludido comendador. Encontrara-o algumas vezes na cidade, ora nos teatros, ora em passeio, e sempre lhe parecera que ele a olhava com certa insistência e algum interesse.

Conquanto não fosse precisamente um Adonis, esse desconhecido começava a impressionar o seu   espírito   de   moça,   até   então   despreocupado   e   tranqüilo,   quando   certa   manhã   os   sons maviosos de uma flauta atraíram a sua atenção para a casinha dos fundos, e ela reconheceu no vizinho   que,   sentado   num   banco   de   ferro,   sob   uma   velha   latada   de   maracujás,   soprava   o sugestivo   instrumento  de Pã,  o  mesmo  indivíduo   cujos  olhares  a  perseguiam  na  rua  ou  no teatro.

Dizer que esse encontro não produziu o romanesco efeito com que naturalmente contava o melômano seria faltar à verdade que devo a meus leitores. Não, a srta. Sara não se contrariou com avistar ali o moço que parecia distingui-la em toda a parte onde o acaso os reunia. Não  quer isto dizer houvesse dentro dela outra coisa mais que uma sensação passageira, mas o caso   é   que   a   filha   do   comendador   Freitas   não   fez   a   esse   respeito   a   menor   confidência    a nenhuma   pessoa   da   casa,   e   esta   reserva   era,   talvez,   o   prenúncio   de   um   sentimento   mais decisivo.

Todavia, todos em casa, amos e criados, se preocupavam muito com o inquilino da casinha dos fundos.

A coisa não era para menos. O rapaz (era ainda um rapaz: poderia ter trinta anos) erguia-se muito cedo e punha-se a jardinar, plantando, enxertando, podando, regando, e gastava nisso duas horas. Quando ele foi ali residir, o quintal estava abandonado, o mato invadira e destruíra tudo,   poupando   apenas   a  latada   de  maracujás.   Pouco   a   pouco,   sozinho,  sem   o   auxílio   de ninguém, trabalhando das seis às oito horas da manhã, ele havia ajardinado o terreno, onde já se ostentavam lindíssimas flores.

Ás nove horas, o preto velho, que provavelmente acumulava as funções de criado de quarto, copeiro,   cozinheiro,   vinha   chamá-lo   para   almoçar.   Depois   do   almoço   ele   saía,   esperava   o bonde, e lá ia para a cidade. Voltava às quatro horas, jantava; depois do jantar acendia um charuto e passeava no quintal, examinando as plantas, que umas vezes regava e outras não. Ao cair da tarde pegava na flauta e saudava o crepúsculo com as suas músicas tristes e saudosas. Depois, vinham as trevas da noite, e ninguém mais o via senão no dia seguinte, de manhã muito cedo, recomeçando a existência da véspera.

Nada houvera de notar, se um dia ou outro sofresse qualquer modificação aquele gênero de vida, mas não!  Aquilo passava-se diariamente com uma uniformidade cronométrica, e toda a gente em casa do comendador Freitas perdia-se em conjecturas.

O que havia de mais singular na existência daquele moço era, talvez, o fato de ele não receber visitas nem as fazer. Naquela idade, isso era inexplicável.

O comendador tinha-o na conta de um misântropo, enfezado contra a sociedade: na opinião de d. Andreza, sua esposa, era um viuvo inconsolável. D. Irene, irmã de d. Andreza, tinha, como em geral as solteironas, o mau vezo de dizer mal de todos, conhecidos e desconhecidos: por isso afirmava que o vizinho era um bilontra, que se escondia ali para escapar aos credores. Tinha cada qual a sua opinião, e divergiam todos uns os outros.

O   copeiro   quis   certificar-se   da   verdade   interrogando   o   preto   velho,   mas   este   a   todas   as perguntas respondia invariavelmente que sabia de nada. A dar-lhe crédito, ele ignorava até o nome do patrão.

Entretanto, de olhadela em olhadela, de sorriso em sorriso, tinha-se estabelecido aos poucos um namoro em regra entre o flautista e a filha do comendador Freitas.

Da janela do seu quarto, a srta Sara podia namorá-lo, sem ser vista por ninguém, nem que ninguém suspeitasse, nem mesmo d. Irene, que via mosquitos na lua.

Naturalmente a moça ardia em desejos de verificar a identidade do vizinho, e não tardou que o fizesse. Uma tarde, quando os olhares e os sorrisos dela já se haviam longamente familiarizado com os dele, o solitário, depois de modular na flauta uma enternecedora melopéia, mostrou à srta. Sara um objeto que tinha na mão, e atirou-o por cima do muro na chácara, Era uma pedra, envolta   num   pedaço   papel,   em   que   vinha   uma   declaração   de   amor   redigida   em   termos respeitosos.

A moça, que não era avoada, hesitou longos dias se devia ou ao responder, mas respondeu afinal, servindo-se da mesma pedra.

E durante muito tempo andou a pedra de cá para lá, de lá paca, da chácara para o quintal, do quintal  para a chácara, aproximando  um do outro aqueles dois  corações separados  por  um muro.

Por um muro? Não! Por uma invencível muralha!

O namorado chamava-se João Silva, como toda a gente; não tinha parentes nem aderentes; era um empregado público paupérrimo, ganhando muito pouco; ainda assim, pediria imediatamente a mão da srta. Sara, se esta se sujeitasse a viver tão pobremente. Sabia a moça que o pai era ambicioso, desejava que ela se casasse com algum negociante em boas condições de fortuna ou pelo menos bem encaminhado, e participou a João Silva os seus receios.

Um   velho   amigo   do   comendador,   o   comandante   Pedroso,   oficial   de   Marinha   reformado, padrinho   de   batismo   da   srta.  Sara,   infalível  aos   domingos   na  Fábrica   das   Chitas,   havia   se comprometido com a família Freitas a indagar e descobrir quem era o flautista.

Por esse tempo, o comandante apareceu em casa dos compadres, levando as mais completas informações acerca do misterioso vizinho, informações que concordavam inteiramente com o que já sabia a srta. Sara.

- É um empregadinho da Alfândega, disse o comandante com ar desdenhoso; não tem onde cair morto!

Mas acrescentou:

- Um esquisitão, muito metido consigo; entretanto, não é mau rapaz, nem mau funcionário.

Essas   informações   fizeram   com   que   dali   por   diante   o   vizinho   deixasse   de   ser   objeto   de curiosidade, o que facilitou extraordinariamente os seus amores, prosseguindo estes com tanta intensidade, que a srta. Sara, aconselhada por João Silva, resolveu dizer tudo à mãe.

D. Andreza, que desejava ser sogra de um príncipe, caiu das nuvens, zangou-se, bateu o pé, chorou, quis ter um ataque de nervos, e intimou a filha a acabar com "essa pouca-vergonha", pois do contrário o pai mandaria dar uma tunda de pau no tal patife!

D. Irene, a quem d. Andreza transmitiu a confidência que recebera, ficou furiosa, e aconselhou a irmã que contasse tudo ao marido. A outra assim fez.

O comendador Freitas, para quem a vida de família correra até então sem o menor incidente desagradável,   e   que   não   estava,   portanto,   preparado   para   essa   crise   doméstica,   perdeu   a cabeça, e deu por paus e por pedras. Em vez de chamar a filha e admoestá-la brandamente, fazendo-lhe ver que futuro a esperava em companhia de um homem sem recursos para mantê-la dignamente, esbravejou como um possesso, mandou fechar a pregos a janela do quarto da rapariga, ameaçou e insultou em altos brados o rapaz, que lhe não respondeu, e levou a toleima ao ponto de ir à delegacia queixar-se que lhe namoravam a filha! Foi um escândalo com que se regalou a vizinhança.

Esse   tratamento   desabrido   fez  com   que   despertassem   na   srta.   Sara  instintos  de   revolta,   e aquele  inocente capricho, que o carinho paterno poderia destruir, transformou-se em  paixão indômita e violenta - tão violenta que a moça adoeceu.

Aproveitando o pretexto dessa doença, o pai levou-a para Jacarepaguá, onde alugou um sítio.

Foi   em   Jacarepaguá   que   o   comandante   Pedroso,   aparecendo   um   belo   domingo   em   que   a convalescente devia fugir de casa - pois o João Silva, por artes do diabo, que só lembram aos namorados, achou meios e modos de se comunicar com ela -, foi em Jacarepaguá, dizíamos, que o comandante Pedroso deu parte ao compadre que tinha arranjado para a afilhada um casamento de truz: o Pedro Linhares, herdeiro de um dos agricultores mais abastados de São Paulo.   O   rapaz   voltara   da   Europa   e   vira,   num   teatro,   a   srta.   Freitas.   Sabendo   que   ele, comandante, era padrinho da moça, procurara-o para pedir-lhe que o apresentasse à família.

-  Esse casamento  seria uma   felicidade,   disse  o comendador;   mas,  infelizmente,  a pequena continua apaixonada pelo flautista; não há meio de lho tirar da cabeça!

- Qual não há meio nem qual carapuça! Você vai logo às do cabo e quer levar tudo à valentona! Deixe-me falar com ela... verá como a decido a aceitar o paulista!

- Você!

- Eu, sim!

- Duvido!

- Não custa nada experimentar. Oh, Santa, vem cá, minha filha! Vamos aí à sala que te quero dar uma palavra!

E voltando-se para os compadres:

- Façam favor de não interromper a nossa conferência!

O padrinho  fechou-se na sala  com a afilhada,  e tão persuasivo  foi, que  um  quarto  de  hora depois - um quarto de hora apenas! - saíram ambos muito contentes. A srta. Sara parecia outra!

A estupefação foi geral.

- Conseguiste alguma coisa? - perguntou o pai ao padrinho.

- Consegui tudo. Agora peço-te licença para ir buscar o Pedro Linhares, que ficou esperando na estrada.

O comandante saiu e voltou logo com o rico paulista, que o esperava na cancela, à entrada do sitio.

Imaginem qual foi a surpresa da família vendo João Silva, o flautista!

O comendador começou a esbravejar, conforme o seu costume; d. Andreza e d. Irene caíram sentadas no canapé, dispondo-se a ter cada uma o seu ataque de nervos; mas o comandante serenou os ânimos, gritando com toda a força dos seus pulmões:

- Este é o senhor Pedro Linhares!

Houve um silêncio tumular, que o recém-chegado cortou com estas palavras:

- Senhor comendador, minhas senhoras, vou explicar-lhes tudo. Quando cheguei da Europa, fiquei perdido de amores por dona Santa desde o primeiro dia em que a vi; mas como sou muito rico, e muito desejado, entendi dever conquistá-la por mim e não pelos meus contos de réis. Por isso, e de combinação com o meu amigo aqui presente...

E apontou para o comandante, que sorriu.

- ... me fiz passar por um pobretão, representando uma comédia cujo desenlace foi o mais feliz que podia ser. Hoje que, a despeito da vigilância paterna, dona Santa deveria fugir deste sítio em companhia de João Silva, Pedro Linhares, tendo a certeza de que é amado, deixa o seu incógnito, e vem pedi-la em casamento.

A moralidade do conto é consoladora para os pobres: quem tem muito dinheiro não confia em si.


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Nota:
Texto-fonte: Arthur de Azevedo: Contos Diversos. Data não identificada

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