
JOÃO SILVA
Em casa do comendador Freitas, na Fábrica das Chitas, andavam
todos "intrigados" com aquele flautista misterioso que, em companhia
de um preto velho, taciturno e discreto, morava, havia perto de dois meses,
numa casinha cujos fundos davam para os fundos da chácara.
Quando digo "todos", não digo a verdade, porque o
vizinho não era completamente estranho à srta. Sara, filha única do aludido
comendador. Encontrara-o algumas vezes na cidade, ora nos teatros, ora em
passeio, e sempre lhe parecera que ele a olhava com certa insistência e algum interesse.
Conquanto não fosse precisamente um Adonis, esse desconhecido
começava a impressionar o seu
espírito de moça,
até então despreocupado e
tranqüilo, quando certa
manhã os sons maviosos de uma flauta atraíram a sua
atenção para a casinha dos fundos, e ela reconheceu no vizinho que,
sentado num banco
de ferro, sob
uma velha latada
de maracujás, soprava
o sugestivo instrumento de Pã,
o mesmo indivíduo
cujos olhares a
perseguiam na rua
ou no teatro.
Dizer que esse encontro não produziu o romanesco efeito com que
naturalmente contava o melômano seria faltar à verdade que devo a meus
leitores. Não, a srta. Sara não se contrariou com avistar ali o moço que parecia
distingui-la em toda a parte onde o acaso os reunia. Não quer isto dizer houvesse dentro dela outra
coisa mais que uma sensação passageira, mas o caso é
que a filha
do comendador Freitas
não fez a
esse respeito a
menor confidência a nenhuma pessoa
da casa, e
esta reserva era,
talvez, o prenúncio
de um sentimento
mais decisivo.
Todavia, todos em casa, amos e criados, se preocupavam muito com o
inquilino da casinha dos fundos.
A coisa não era para menos. O rapaz (era ainda um rapaz: poderia
ter trinta anos) erguia-se muito cedo e punha-se a jardinar, plantando,
enxertando, podando, regando, e gastava nisso duas horas. Quando ele foi ali
residir, o quintal estava abandonado, o mato invadira e destruíra tudo, poupando
apenas a latada
de maracujás. Pouco
a pouco, sozinho,
sem o auxílio
de ninguém, trabalhando das seis às oito horas da manhã, ele havia
ajardinado o terreno, onde já se ostentavam lindíssimas flores.
Ás nove horas, o preto velho, que provavelmente acumulava as
funções de criado de quarto, copeiro,
cozinheiro, vinha chamá-lo
para almoçar. Depois
do almoço ele
saía, esperava o bonde, e lá ia para a cidade. Voltava às
quatro horas, jantava; depois do jantar acendia um charuto e passeava no
quintal, examinando as plantas, que umas vezes regava e outras não. Ao cair da
tarde pegava na flauta e saudava o crepúsculo com as suas músicas tristes e
saudosas. Depois, vinham as trevas da noite, e ninguém mais o via senão no dia
seguinte, de manhã muito cedo, recomeçando a existência da véspera.
Nada houvera de notar, se um dia ou outro sofresse qualquer
modificação aquele gênero de vida, mas não!
Aquilo passava-se diariamente com uma uniformidade cronométrica, e toda
a gente em casa do comendador Freitas perdia-se em conjecturas.
O que havia de mais singular na existência daquele moço era,
talvez, o fato de ele não receber visitas nem as fazer. Naquela idade, isso era
inexplicável.
O comendador tinha-o na conta de um misântropo, enfezado contra a
sociedade: na opinião de d. Andreza, sua esposa, era um viuvo inconsolável. D.
Irene, irmã de d. Andreza, tinha, como em geral as solteironas, o mau vezo de
dizer mal de todos, conhecidos e desconhecidos: por isso afirmava que o vizinho
era um bilontra, que se escondia ali para escapar aos credores. Tinha cada qual
a sua opinião, e divergiam todos uns os outros.
O copeiro quis
certificar-se da verdade
interrogando o preto
velho, mas este
a todas as perguntas respondia invariavelmente que
sabia de nada. A dar-lhe crédito, ele ignorava até o nome do patrão.
Entretanto, de olhadela em olhadela, de sorriso em sorriso,
tinha-se estabelecido aos poucos um namoro em regra entre o flautista e a filha
do comendador Freitas.
Da janela do seu quarto, a srta Sara podia namorá-lo, sem ser
vista por ninguém, nem que ninguém suspeitasse, nem mesmo d. Irene, que via
mosquitos na lua.
Naturalmente a moça ardia em desejos de verificar a identidade do
vizinho, e não tardou que o fizesse. Uma tarde, quando os olhares e os sorrisos
dela já se haviam longamente familiarizado com os dele, o solitário, depois de
modular na flauta uma enternecedora melopéia, mostrou à srta. Sara um objeto
que tinha na mão, e atirou-o por cima do muro na chácara, Era uma pedra, envolta num
pedaço papel, em
que vinha uma
declaração de amor
redigida em termos respeitosos.
A moça, que não era avoada, hesitou longos dias se devia ou ao
responder, mas respondeu afinal, servindo-se da mesma pedra.
E durante muito tempo andou a pedra de cá para lá, de lá paca, da
chácara para o quintal, do quintal para
a chácara, aproximando um do outro
aqueles dois corações separados por um
muro.
Por um muro? Não! Por uma invencível muralha!
O namorado chamava-se João Silva, como toda a gente; não tinha
parentes nem aderentes; era um empregado público paupérrimo, ganhando muito
pouco; ainda assim, pediria imediatamente a mão da srta. Sara, se esta se
sujeitasse a viver tão pobremente. Sabia a moça que o pai era ambicioso,
desejava que ela se casasse com algum negociante em boas condições de fortuna ou
pelo menos bem encaminhado, e participou a João Silva os seus receios.
Um velho amigo
do comendador, o comandante
Pedroso, oficial de
Marinha reformado, padrinho de
batismo da srta.
Sara, infalível aos
domingos na Fábrica
das Chitas, havia
se comprometido com a família Freitas a indagar e descobrir quem era o
flautista.
Por esse tempo, o comandante apareceu em casa dos compadres,
levando as mais completas informações acerca do misterioso vizinho, informações
que concordavam inteiramente com o que já sabia a srta. Sara.
- É um empregadinho da Alfândega, disse o comandante com ar
desdenhoso; não tem onde cair morto!
Mas acrescentou:
- Um esquisitão, muito metido consigo; entretanto, não é mau
rapaz, nem mau funcionário.
Essas informações fizeram
com que dali
por diante o
vizinho deixasse de ser
objeto de curiosidade, o que
facilitou extraordinariamente os seus amores, prosseguindo estes com tanta intensidade,
que a srta. Sara, aconselhada por João Silva, resolveu dizer tudo à mãe.
D. Andreza, que desejava ser sogra de um príncipe, caiu das
nuvens, zangou-se, bateu o pé, chorou, quis ter um ataque de nervos, e intimou
a filha a acabar com "essa pouca-vergonha", pois do contrário o pai
mandaria dar uma tunda de pau no tal patife!
D. Irene, a quem d. Andreza transmitiu a confidência que recebera,
ficou furiosa, e aconselhou a irmã que contasse tudo ao marido. A outra assim
fez.
O comendador Freitas, para quem a vida de família correra até
então sem o menor incidente desagradável,
e que não
estava, portanto, preparado
para essa crise
doméstica, perdeu a cabeça, e deu por paus e por pedras. Em
vez de chamar a filha e admoestá-la brandamente, fazendo-lhe ver que futuro a
esperava em companhia de um homem sem recursos para mantê-la dignamente,
esbravejou como um possesso, mandou fechar a pregos a janela do quarto da rapariga,
ameaçou e insultou em altos brados o rapaz, que lhe não respondeu, e levou a
toleima ao ponto de ir à delegacia queixar-se que lhe namoravam a filha! Foi um
escândalo com que se regalou a vizinhança.
Esse tratamento desabrido
fez com que
despertassem na srta.
Sara instintos de
revolta, e aquele inocente capricho, que o carinho paterno
poderia destruir, transformou-se em
paixão indômita e violenta - tão violenta que a moça adoeceu.
Aproveitando o pretexto dessa doença, o pai levou-a para
Jacarepaguá, onde alugou um sítio.
Foi em Jacarepaguá
que o comandante
Pedroso, aparecendo um
belo domingo em
que a convalescente devia fugir
de casa - pois o João Silva, por artes do diabo, que só lembram aos namorados,
achou meios e modos de se comunicar com ela -, foi em Jacarepaguá, dizíamos, que
o comandante Pedroso deu parte ao compadre que tinha arranjado para a afilhada
um casamento de truz: o Pedro Linhares, herdeiro de um dos agricultores mais
abastados de São Paulo. O rapaz
voltara da Europa
e vira, num
teatro, a srta.
Freitas. Sabendo que
ele, comandante, era padrinho da moça, procurara-o para pedir-lhe que o
apresentasse à família.
- Esse casamento seria uma
felicidade, disse o comendador; mas,
infelizmente, a pequena continua
apaixonada pelo flautista; não há meio de lho tirar da cabeça!
- Qual não há meio nem qual carapuça! Você vai logo às do cabo e
quer levar tudo à valentona! Deixe-me falar com ela... verá como a decido a
aceitar o paulista!
- Você!
- Eu, sim!
- Duvido!
- Não custa nada experimentar. Oh, Santa, vem cá, minha filha!
Vamos aí à sala que te quero dar uma palavra!
E voltando-se para os compadres:
- Façam favor de não interromper a nossa conferência!
O padrinho fechou-se na
sala com a afilhada, e tão persuasivo foi, que
um quarto de
hora depois - um quarto de hora apenas! - saíram ambos muito contentes.
A srta. Sara parecia outra!
A estupefação foi geral.
- Conseguiste alguma coisa? - perguntou o pai ao padrinho.
- Consegui tudo. Agora peço-te licença para ir buscar o Pedro
Linhares, que ficou esperando na estrada.
O comandante saiu e voltou logo com o rico paulista, que o esperava
na cancela, à entrada do sitio.
Imaginem qual foi a surpresa da família vendo João Silva, o
flautista!
O comendador começou a esbravejar, conforme o seu costume; d.
Andreza e d. Irene caíram sentadas no canapé, dispondo-se a ter cada uma o seu
ataque de nervos; mas o comandante serenou os ânimos, gritando com toda a força
dos seus pulmões:
- Este é o senhor Pedro Linhares!
Houve um silêncio tumular, que o recém-chegado cortou com estas
palavras:
- Senhor comendador, minhas senhoras, vou explicar-lhes tudo.
Quando cheguei da Europa, fiquei perdido de amores por dona Santa desde o
primeiro dia em que a vi; mas como sou muito rico, e muito desejado, entendi
dever conquistá-la por mim e não pelos meus contos de réis. Por isso, e de
combinação com o meu amigo aqui presente...
E apontou para o comandante, que sorriu.
- ... me fiz passar por um pobretão, representando uma comédia
cujo desenlace foi o mais feliz que podia ser. Hoje que, a despeito da
vigilância paterna, dona Santa deveria fugir deste sítio em companhia de João
Silva, Pedro Linhares, tendo a certeza de que é amado, deixa o seu incógnito, e
vem pedi-la em casamento.
A moralidade do conto é consoladora para os pobres: quem tem muito
dinheiro não confia em si.
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Nota:
Texto-fonte: Arthur de Azevedo: Contos Diversos. Data não identificada
Texto-fonte: Arthur de Azevedo: Contos Diversos. Data não identificada
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