345
- És o rei dos caiporas, e, além disso, não tens a menor parcela
de bom senso! Não fosse eu tua mulher, e não sei o que seria de ti, porque
decididamente não te sabes governar!
- Exageras, nhanhã!
- Não! não sabes! Tens deixado estupidamente um rol de vezes
passar a fortuna perto de ti, sem a agarrar pelos cabelos! Dizem que ela é
cega: cego és tu!
- Já vês que a culpa não é minha...
- Quando houve o Encilhamento, só tu não te arranjaste!
- Mas também não me desarranjei...
- Para seres promovido
a 1o oficial da tua
Repartição, foi preciso
que eu saísse dos meus cuidados e procurasse o ministro.
- Fizeste mal.
- Se o não fizesse, não passarias da cepa torta!
- Não quero obscurecer o mérito da tua diligência, mas olha que
estás enganada, nhanhã.
- Deveras?
- Redondamente enganada. A nomeação era minha. Quando fui
agradecê-la ao ministro, este disse-me: "Não era preciso que sua senhora
se incomodasse: o decreto estava lavrado."
- Pois sim! isso disse ele... E quando o decreto estivesse,
efetivamente, lavrado? Á última hora seriam capazes de substitui-lo por outro!
Pois se és tão caipora!
- Perdoa, nhanhã, mas não sou tão caipora assim... Pelo menos tive
uma grande felicidade na vida!
- Qual foi, não me dirás?
- A de ter casado contigo...
Nhanhã mordeu
os lábios, porque
não achou o
que responder, e naquele dia
as suas impertinências habituais
não foram mais longe.
* * *
O pobre Reginaldo - assim se chamava o marido - habituara-se de
muito àquelas recriminações insensatas, e era um quase fenômeno de resignação e
paciência.
Ela bem sabia
que a coisa
seria outra, se
realmente a fortuna
se deixasse agarrar
pelos cabelos: o que nhanhã não lhe perdoava era a sua pobreza, - não
era o seu caiporismo. Ela não podia ter em casa do marido o mesmo luxo que
tinha em casa do pai; não podia rivalizar com alguma amiga em ostentação: era
isto, só isto que a afligia, ou antes, que os afligia a ambos, marido e mulher.
* * *
Reginaldo tinha aversão ao jogo; nem mesmo a loteria o tentava.
Entretanto, uma tarde meteu-se num bonde do Catete, para
recolher-se à casa, e no Largo do Machado, onde se apeou, pois morava naquelas
imediações, foi perseguido por um garoto que à viva força lhe queria impingir
um bilhete de loteria, - uma grande loteria de cem contos de réis, cuja
extração estava anunciada para o dia seguinte.
Reginaldo resistiu, caminhando apressado sem dar resposta ao
garoto, que o acompanhava insistindo; mas de repente lhe acudiu a idéia de que
aquele maltrapilho poderia ser a fortuna disfarçada. Era preciso agarrá-la
pelos cabelos! Comprou o bilhete, e foi
para casa, onde o esperavam os tristes feijões quotidianos.
* * *
Ele bem sabia que, se dissesse a nhanhã que havia feito essa
despesa extra-orçamentária, não teria a sua aprovação; mas que querem, - o
pobre rapaz era um desses maridos submissos, que não ficam em paz com a
consciência quando não contam por miúdo às caras-metades tudo quanto lhes
sucede.
Ao saber da compra do bilhete, nhanhã pôs as mãos na cabeça:
- Quando eu
digo que tu
não tens a
menor parcela de bom
senso...! Aí está!
Dez mil-réis deitados fora, e
tanta coisa falta nesta casa!...
E seguiu-se, durante
meia hora, a
relação dos objetos
que poderiam ser
comprados com
aqueles dez mil-réis perdidos.
Depois disso, nhanhã pediu para ver o bilhete.
Reginaldo, sem proferir uma palavra, tirou-o do bolso e
entregou-lho.
- Número 345! exclamou ela. Um número tão baixo numa loteria de
cinqüenta mil números! Isto é o que se chama vontade de gastar dinheiro à toa!
Algum dia viste, nessas grandes loterias, ser premiado um número de três
algarismos?
Reginaldo confessou que nem sequer olhara para o número. Como o
garoto se lhe afigurou a fortuna
disfarçada, ele aceitou
o bilhete que
lhe fora oferecido,
entendendo que não
devia argumentar com a fortuna.
- 345! Pois isto é lá número que se compre!
- Agora não há remédio.
- Como não há remédio? Põe o chapéu e volta imediatamente ao Largo
do Machado: o garoto ainda lá deve estar. Dá-lhe o bilhete e ele que te dê o
dinheiro.
- Perdoa, nhanhã, mas isso não faço eu: comprei! Nem o garoto
desfazia a compra!
- Ao menos vai trocar o bilhete por outro, que tenha, pelo menos,
quatro algarismos! Se tiver cinco, melhor!
- Faço-te a vontade: mas olha que sempre ouvi dizer que bilhetes
de loteria não se trocam...
- Faze o que eu disse e não resmungues! Tu és o rei dos caiporas e
eu tenho muita sorte!
Reginaldo não disse mais nada: pôs o chapéu, saiu de casa, foi ao
Largo do Machado, e voltou com outro bilhete.
Desta vez o número tinha cinco algarismos: 38788; nhanhã devia
ficar satisfeita.
Não ficou:
- Devias escolher
um número mais
variado: o 8
fica aqui três
vezes.. - Mas,
enfim, 38788 sempre inspira mais
confiança que 345...
* * *
Pois, senhores, no dia seguinte o n.0 38788 saiu branco, e o n.0 345 foi premiado com a sorte grande.
* * *
Imagine-se o desespero de nhanhã:
- Então, eu não digo que és o rei dos caiporas?
- Perdoa, nhanhã, mas desta
vez não fui o rei: tu é que foste a rainha...
- Cala-te! Se não fosses um songamonga, não me terias feito a
vontade! Ter-me-ias roncado grosso!
- Ora essa!
- Um marido não se deve deixar dominar assim pela mulher!
- Olha que eu pego na palavra...
- Trocar um bilhete de loteria! Que absurdo!...
- Absurdo aconselhado por ti...
- Mas tu já não estás em idade de receber conselhos!
- Bom; de
hoje em diante
baterei com o
pé e roncarei
grosso todas as
vezes que me contrariares! Esta casa vai cheirar a
homem!...
A boas horas vêm esses protestos de energia!
E exclamando com os punhos cerrados e os olhos voltados para o
teto: "Cem contos de réis"!, nhanhã deixou-se cair sentada numa
cadeira, e desatou a chorar.
* * *
Mal que a viu naquele estado aflitivo, Reginaldo correu para junto
dela, e disse-lhe com muito carinho:
- Sossega. Eu fiz uma coisa... mas vê lá! não ralhes comigo...
- Que foi?
- Não troquei o bilhete!
Não trocaste o bilhete? gritou nhanhã erguendo-se de um salto, com
os olhos muito abertos.
- Não! pois eu fazia lá essa asneira! Seria deixar fugir a
fortuna, depois de a ter agarrado pelos cabelos!
- Compraste então o outro bilhete?
- Comprei...
- Nesse caso... estamos ricos?
- Temos cem contos.
- Ora, graças que um dia fizeste alguma coisa com jeito!
- Qual! eu continuo a ser o rei dos caiporas.
- Não digas isso!
- Digo, porque se o não fosse, o número 38788 teria apanhado a
sorte imediata...
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Nota:
Texto-fonte: Arthur Azevedo: Contos Diversos. Correio da Manhã, 16 de outubro de 1904
Texto-fonte: Arthur Azevedo: Contos Diversos. Correio da Manhã, 16 de outubro de 1904
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