domingo, 31 de março de 2013

Artur de Azevedo: "Elefantes e Ursos"


ELEFANTES E URSOS


Era uma delícia ouvir o coronel Ferraz contar as suas façanhas de caça; mas ele só vibrava, e só era verdadeiramente genial a inventar carapetões quando tinha um bom auditório, quando via em volta de si olhos espantados e bocas abertas.

Dizem   que   na   intimidade,   conversando   com   um   amigo,   ou   mesmo   dois,   era incapaz de pregar uma peta.

Ora, uma ocasião estava ele no meio de um grupo de vinte pessoas, em que estavam representados ambos os sexos e todas as idades.

As palavras do coronel, proferidas com aquela voz reboante e áspera, feita para comandar exércitos, eram avidamente bebidas. Apenas um rapaz do grupo, o Miranda, o maior estróina que Deus pusera no mundo, tinha na fisionomia um ar de mofa e parecia não tomar a sério as proezas cinegéticas do nosso herói.

Mas   isso   não   foi   nada   -   dizia   este   retorcendo   as   pontas   dos   seus   enormes bigodes grisalhos. - Isso não foi nada à vista do que me aconteceu numa aldeia do Ganges, aonde me levou a minha vida aventurosa. Um casal de elefantes corria   atrás   de   um   moço   que   lhes   maltratara   o   filho,   um   elefantinho   deste tamanho (e o coronel indicou o tamanho de um elefantão). O macho ia atingir o moço   com   a  tromba,   quando   o abati   com  um   tiro  da  minha  espingarda,   que nunca   falhou.   Mas   restava   a   fêmea...   A   arma   estroa   descarregada,   mas   eu, carioca   da   gema,   lembrei-me   do   nosso   jogo   de   capoeira,   e   passei-lhe   uma rasteira  tão na regra, que a prostrei por terra!  Antes que se erguesse aquela pesada   massa,   tive   tempo  de   carregar   a   espingarda   e  mandá-la   passear   no outro mundo. O moço estava salvo.

Houve no auditório um murmúrio de admiração. O coronel continuou:

- O moço, mal o sabia eu, era um príncipe, filho de um rajá, ou coisa que o valha, muito   estimado   na   localidade:   por   isso,   ergueram   sobre   o   corpo   do   elefante macho uma espécie de trono em que me colocaram, deram-me a beber um licor sagrado, investiram-me não sei de que dignidade oficial, e fizeram-me assistir a umas danças intermináveis. Foi uma festa a que concorreram mais de vinte mil pessoas.

Passado o frêmito do auditório, o Miranda tomou a palavra:

- O coronel foi mais feliz no Ganges do que eu em Ceilão.

- Você já esteve em Ceilão? - perguntou o coronel.

- Ora! Onde não tenho estado? Um dia, estando a caçar - sim, porque também sou caçador! - saiu-me pela frente um enorme urso, que avançou para mim. Quis levar a mão à espingarda, mas tremia tanto, que não consegui pegá-la. E o urso a avançar! Nisto, senti um bafo no meu cachaço. Olhei para trás: era outro urso, de goela aberta e dentes arreganhados!

- E que fez você? - perguntou o coronel, interessado deveras.

- Não fiz nada - respondeu o Miranda. - Fui comido!



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Nota:
Texto-fonte: Arthur Azevedo: Contos Diversos. Data não identificada

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