

O SEGREDO DO BONZO
CAPÍTULO INÉDITO DE FERNÃO MENDES PINTO
Atrás
deixei narrado o que se passou nesta cidade Fuchéu, capital do reino de Bungo,
com o Padre-mestre Francisco, e de como el-rei se houve com o Fucarandono e
outros bonzos, que tiveram por acertado disputar ao padre as primazias da nossa santa religião. Agora direi
de uma doutrina não menos curiosa que saudável ao espírito, e digna de ser
divulgada a todas as repúblicas da cristandade.
Um dia,
andando a passeio com Diogo Meireles, nesta mesma cidade Fuchéu, naquele ano de
1552, sucedeu deparar-se-nos um ajuntamento de povo, à esquina de uma rua, em
torno a um homem da terra, que discorria com grande abundância de gestos e
vozes. O povo, segundo o esmo mais baixo, seria passante de cem pessoas, varões
somente, e todos embasbacados. Diogo Meireles, que melhor conhecia a língua da
terra, pois ali estivera muitos meses, quando andou com bandeira de veniaga
(agora ocupava-se no exercício da medicina, que estudara convenientemente, e em
que era exímio) ia-me repetindo pelo nosso idioma o que ouvia ao orador, e que
em resumo, era o seguinte: — Que ele não queria outra coisa mais do que afirmar
a origem dos grilos, os quais procediam do ar e das folhas de coqueiro, na conjunção
da lua nova; que este descobrimento, impossível a quem não fosse, como ele,
matemático, físico e filósofo, era fruto de dilatados anos de aplicação,
experiência e estudo, trabalhos e até perigos de vida; mas enfim, estava feito,
e todo redundava em glória do reino de Bungo, e especialmente da cidade Fuchéu,
cujo filho era; e, se por ter aventado
tão sublime verdade, fosse necessário aceitar a morte, ele a aceitaria ali mesmo,
tão certo era que a ciência valia mais do que a vida e seus deleites.
A
multidão, tanto que ele acabou, levantou um tumulto de aclamações, que esteve a
ponto de ensurdecer-nos, e alçou nos braços o homem bradando: “Patimau, Patimau,
viva Patimau, que descobriu a origem dos grilos!” E todos se foram com ele ao
alpendre de um mercador, onde lhe deram refrescos e lhe fizeram muitas saudações
e reverências, à maneira deste gentio, que é em extremo obsequioso e cortesão.
Desandando
o caminho, vínhamos nós, Diogo Meireles e eu, falando do singular achado da
origem dos grilos, quando, a pouca distância daquele alpendre, obra de seis
credos, não mais, achamos outra multidão de gente, em outra esquina, escutando
a outro homem. Ficamos espantados com a semelhança do caso, e Diogo Meireles,
visto que também este falava apressado, repetiu-me da mesma maneira o teor da
oração. E dizia este outro, com grande admiração e aplauso da gente que o cercava, que enfim descobrira o
princípio da vida futura, quando a terra houvesse de ser inteiramente
destruída, e era nada menos que uma certa gota de sangue de vaca; daí provinha
a excelência da vaca para habitação das almas humanas, e o ardor com que esse
distinto animal era procurado por muitos homens à hora de morrer; descobrimento
que ele podia afirmar com fé e verdade, por ser obra de experiências repetidas
e profunda cogitação, não desejando nem pedindo outro galardão mais que dar
glória ao reino de Bungo e receber dele a estimação que os bons filhos merecem.
O povo, que escutara esta fala com muita veneração, fez o mesmo alarido e levou
o homem ao dito alpendre, com a diferença
que o trepou a uma charola; ali chegando, foi regalado com obséquios iguais aos
que faziam a Patimau, não havendo nenhuma distinção entre eles, nem outra
competência nos banqueteadores, que não fosse a de dar graças a ambos os banqueteados.
Ficamos
sem saber nada daquilo, porque nem nos parecia casual a semelhança exata dos
dois encontros, nem racional ou crível a origem dos grilos, dada por Patimau,
ou o princípio da vida futura, descoberto por Languru, que assim se chamava o
outro. Sucedeu, porém, costearmos a casa de um certo Titané, alparqueiro, o
qual correu a falar a Diogo Meireles, de quem era amigo. E, feitos os
cumprimentos, em que o alparqueiro chamou as mais galantes coisas a Diogo Meireles,
tais como — ouro da verdade e sol do pensamento, — contou-lhe este o que
víramos e ouvíramos pouco antes. Ao que Titané acudiu com grande alvoroço: —
Pode ser que eles andem cumprindo uma nova doutrina, dizem que inventada por um bonzo de muito saber, morador em umas
casas pegadas ao monte Coral. E porque ficássemos cobiçosos de ter alguma
notícia da doutrina, consentiu Titané em
ir conosco no dia seguinte às casas do bonzo, e acrescentou: — Dizem que ele não a confia a nenhuma pessoa, senão às que de
coração se quiserem filiar a ela; e,
sendo assim, podemos simular que o queremos unicamente com o fim de a ouvir; e
se for boa, chegaremos a praticá-la à nossa vontade.
No dia
seguinte, ao modo concertado, fomos às casas do dito bonzo, por nome Pomada, um
ancião de cento e oito anos, muito lido e sabido nas letras divinas e humanas,
e grandemente aceito a toda aquela gentilidade, e por isso mesmo mal visto de
outros bonzos, que se finavam de puro ciúme. E tendo ouvido o dito bonzo a
Titané quem éramos e o que queríamos, iniciou-nos primeiro com várias cerimônias
e bugiarias necessárias à recepção da doutrina, e só depois dela é que alçou a
voz para confiá-la e explicá-la.
— Haveis
de entender, começou ele, que a virtude e o saber têm duas existências paralelas,
uma no sujeito que as possui, outra no espírito dos que o ouvem ou contemplam.
Se puserdes as mais sublimes virtudes e os mais profundos conhecimentos em um
sujeito solitário, remoto de todo contato com outros homens, é como se eles não
existissem. Os frutos de uma laranjeira, se ninguém os gostar, valem tanto como as urzes e plantas
bravias, e, se ninguém os vir, não valem nada; ou, por outras palavras mais
enérgicas, não há espetáculo sem espectador. Um dia, estando a cuidar nestas
coisas, considerei que, para o fim de alumiar um pouco o entendimento, tinha
consumido os meus longos anos, e, aliás, nada chegaria a valer sem a existência
de outros homens que me vissem e honrassem;
então cogitei se não haveria um modo de obter o mesmo efeito, poupando tais
trabalhos, e esse dia posso agora dizer que foi o da regeneração dos homens,
pois me deu a doutrina salvadora.
Neste
ponto, afiamos os ouvidos e ficamos pendurados da boca do bonzo, o qual, como
lhe dissesse Diogo Meireles que a língua da terra me não era familiar, ia falando com grande pausa, porque eu nada
perdesse. E continuou dizendo: — Mal podeis adivinhar o que me deu idéia da
nova doutrina; foi nada menos que a pedra
da lua, essa insigne pedra tão luminosa que, posta no cabeço de uma montanha ou
no píncaro de uma torre, dá claridade a uma campina inteira, ainda a mais dilatada. Uma tal pedra, com tais
quilates de luz, não existiu nunca, e ninguém jamais a viu; mas muita gente crê
que existe e mais de um dirá que a viu com os seus próprios olhos. Considerei o
caso, e entendi que, se uma coisa pode existir na opinião, sem existir na
realidade, e existir na realidade, sem existir na opinião, a conclusão é que
das duas existências paralelas a única necessária é a da opinião, não a da
realidade, que é apenas conveniente. Tão depressa fiz este achado especulativo,
como dei graças a Deus do favor especial, e determinei-me a verificá-lo por
experiências; o que alcancei, em mais de um caso, que não relato, por vos não
tomar o tempo. Para compreender a eficácia do meu sistema, basta advertir que
os grilos não podem nascer do ar e das folhas de coqueiro, na conjunção da lua
nova, e por outro lado, o princípio da vida futura não está em uma certa gota
de sangue de vaca; mas Patimau e Languru, varões astutos, com tal arte souberam meter estas duas idéias no
ânimo da multidão, que hoje desfrutam a nomeada de grandes físicos e maiores
filósofos, e têm consigo pessoas capazes de dar a vida por eles.
Não
sabíamos em que maneira déssemos ao bonzo as mostras do nosso vivo contentamento e admiração. Ele interrogou-nos ainda algum tempo,
compridamente, acerca da doutrina e dos
fundamentos dela, e depois de reconhecer que a entendíamos, incitou-nos a praticá-la, a divulgá-la cautelosamente,
não porque houvesse nada contrário às leis divinas ou humanas, mas porque a má
compreensão dela podia daná-la e perdê-la em seus primeiros passos; enfim,
despediu-se de nós com a certeza (são palavras suas) de que abalávamos dali com
a verdadeira alma de pomadistas; denominação esta que, por se derivar do nome
dele, lhe era em extremo agradável.
compridamente, acerca da doutrina e dos
fundamentos dela, e depois de reconhecer que a entendíamos, incitou-nos a praticá-la, a divulgá-la cautelosamente,
não porque houvesse nada contrário às leis divinas ou humanas, mas porque a má
compreensão dela podia daná-la e perdê-la em seus primeiros passos; enfim,
despediu-se de nós com a certeza (são palavras suas) de que abalávamos dali com
a verdadeira alma de pomadistas; denominação esta que, por se derivar do nome
dele, lhe era em extremo agradável.
Com
efeito, antes de cair a tarde, tínhamos os três combinado em pôr por obra uma
idéia tão judiciosa quão lucrativa, pois não é só lucro o que se pode haver em moeda,
senão também o que traz consideração e louvor, que é outra e melhor espécie de
moeda, conquanto não dê para comprar damascos ou chaparias de ouro. Combinamos,
pois, à guisa de experiência, meter cada um de nós, no ânimo da cidade Fuchéu,
uma certa convicção, mediante a qual houvéssemos os mesmos benefícios que
desfrutavam Patimau e Languru; mas, tão certo é que o homem não olvida o seu
interesse, entendeu Titané que lhe cumpria lucrar de duas maneiras, cobrando da experiência ambas as
moedas, isto é, vendendo também as suas
alparcas: ao que nos não opusemos, por nos parecer que nada tinha isso com o essencial da doutrina.
Consistiu
a experiência de Titané em uma coisa que não sei como diga para que a entendam.
Usam neste reino de Bungo, e em outros destas remotas partes, um papel feito de
casca de canela moída e goma, obra mui prima, que eles talham depois em pedaços
de dois palmos de comprimento, e meio de largura, nos quais desenham com vivas
e variadas cores, e
pela língua do
país, as notícias
da semana, políticas, religiosas,
mercantis e outras, as novas leis do reino, os nomes das fustas, lancharas,
balões e toda a casta de barcos que navegam estes mares, ou em guerra, que a há
freqüente, ou de veniaga. E digo as notícias da semana, porque as ditas folhas
são feitas de oito em oito dias, em grande cópia, e distribuídas ao gentio da
terra, a troco de uma espórtula, que cada um dá de bom grado para ter as
notícias primeiro que os demais moradores. Ora, o nosso Titané não quis melhor
esquina que este papel, chamado pela nossa língua Vida e claridade
das coisas mundanas e celestes, título
expressivo, ainda que um tanto derramado. E, pois, fez inserir no dito papel
que acabavam de chegar notícias frescas
de toda a costa de Malabar e da China, conforme as quais não havia outro cuidado
que não fossem as famosas alparcas dele Titané; que estas alparcas eram chamadas
as primeiras do mundo, por serem mui sólidas e graciosas; que nada menos de vinte e dois mandarins iam requerer
ao imperador para que, em vista do esplendor das famosas alparcas de Titané, as
primeiras do universo, fosse criado o título honorífico de “alparca do Estado”,
para recompensa dos que se distinguissem em qualquer disciplina do
entendimento; que eram grossíssimas as encomendas feitas de todas as partes, às
quais ele Titané ia acudir, menos por amor
ao lucro do que pela glória que dali provinha à nação; não recuando, todavia,
do propósito em que estava e ficava de dar de graça aos pobres do reino umas
cinqüenta corjas das ditas alparcas, conforme já fizera declarar a el-rei e o repetia
agora; enfim, que apesar da primazia no fabrico das alparcas assim reconhecida
em toda a terra, ele sabia os deveres da moderação, e nunca se julgaria mais do
que um obreiro diligente e amigo da glória do reino de Bungo.
A leitura
desta notícia comoveu naturalmente a toda a cidade Fuchéu, não se falando em
outra coisa durante toda aquela semana. As alparcas de Titané, apenas
estimadas, começaram de ser buscadas com muita curiosidade e ardor, e ainda
mais nas semanas seguintes, pois não deixou ele de entreter a cidade, durante
algum tempo, com muitas e extraordinárias anedotas acerca da sua mercadoria. E
dizia-nos com muita graça: — Vede que obedeço ao principal da nossa doutrina,
pois não estou persuadido da superioridade das tais alparcas, antes as tenho
por obra vulgar, mas fi-lo crer ao povo, que as vem comprar agora, pelo preço
que lhes taxo. — Não me parece, atalhei, que tenhais cumprido a doutrina em seu
rigor e substância, pois não nos cabe inculcar aos outros uma opinião que não temos,
e sim a opinião de uma qualidade que não possuímos; este é, ao
certo, o essencial dela.
Dito isto,
assentaram os dois que era a minha vez de tentar a experiência, o que imediatamente
fiz; mas deixo de a relatar em todas as suas partes, por não demorar a narração da experiência de Diogo
Meireles, que foi a mais decisiva das três, e a melhor prova desta deliciosa
invenção do bonzo. Direi somente que, por algumas luzes que tinha de música e
charamela, em que aliás era mediano, lembrou-me congregar os principais de
Fuchéu para que me ouvissem tanger o instrumento;
os quais vieram, escutaram e foram-se repetindo que nunca antes tinham ouvido
coisa tão extraordinária. E confesso que alcancei um tal resultado com o só
recurso dos ademanes, da graça em arquear os braços para tomar a charamela, que
me foi trazida em uma bandeja de prata, da rigidez do busto, da unção com que
alcei os olhos ao ar, e do desdém e ufania com que os baixei à mesma
assembléia, a qual neste ponto rompeu em um tal concerto de vozes e exclamações
de entusiasmo, que quase me persuadiu do meu merecimento.
Mas, como
digo, a mais engenhosa de todas as nossas experiências, foi a de Diogo Meireles.
Lavrava então na cidade uma singular doença, que consistia em fazer inchar os
narizes, tanto e tanto, que tomavam metade e mais da cara ao paciente, e não só
a punham horrenda, senão que era molesto carregar tamanho peso. Conquanto os
físicos da terra propusessem extrair os narizes inchados, para alívio e
melhoria dos enfermos, nenhum destes consentia em prestar-se ao curativo, preferindo
o excesso à lacuna, e tendo por mais aborrecível que nenhuma outra coisa a
ausência daquele órgão. Neste apertado lance mais de um recorria à morte voluntária, como um remédio, e a tristeza era
muita em toda a cidade Fuchéu. Diogo Meireles, que desde algum tempo praticava
a medicina, segundo ficou dito atrás, estudou a moléstia e reconheceu que não
havia perigo em desnarigar os doentes,
antes era vantajoso por lhes levar o mal, sem trazer fealdade, pois tanto valia
um nariz disforme e pesado como nenhum; não alcançou, todavia, persuadir os
infelizes ao sacrifício. Então ocorreu-lhe uma graciosa invenção. Assim foi
que, reunindo muitos físicos, filósofos, bonzos, autoridades e povo,
comunicou-lhes que tinha um segredo para eliminar o órgão; e esse segredo era
nada menos que substituir o nariz achacado por um nariz são, mas de pura
natureza metafísica, isto é, inacessível aos sentidos humanos, e contudo tão
verdadeiro ou ainda mais do que o
cortado; cura esta praticada por ele em várias partes, e muito aceita aos físicos
de Malabar. O assombro da assembléia foi imenso, e não menor a incredulidade de
alguns, não digo de todos, sendo que a maioria não sabia que acreditasse, pois
se lhe repugnava a metafísica do nariz, cedia entretanto à energia das palavras
de Diogo Meireles, ao tom alto e convencido com que ele expôs e definiu o seu
remédio. Foi então que alguns filósofos, ali presentes, um tanto envergonhados
do saber de Diogo Meireles, não quiseram ficar-lhe atrás, e declararam que havia bons fundamentos para uma
tal invenção, visto não ser o homem todo outra coisa mais do que um produto da
idealidade transcendental; donde resultava que podia trazer, com toda a
verossimilhança, um nariz metafísico, e juravam ao povo que o efeito era o
mesmo.
A
assembléia aclamou a Diogo Meireles; e os doentes começaram de buscá-lo, em tanta
cópia, que ele não tinha mãos a medir. Diogo Meireles desnarigava-os com muitíssima
arte; depois estendia delicadamente os dedos a uma caixa, onde fingia ter os
narizes substitutos, colhia um e aplicava-o ao lugar vazio. Os enfermos, assim
curados e supridos, olhavam uns para os outros, e não viam nada no lugar do
órgão cortado; mas, certos e certíssimos de que ali estava o órgão substituto,
e que este era inacessível aos sentidos humanos, não se davam por defraudados,
e tornavam aos seus ofícios. Nenhuma outra prova quero da eficácia da doutrina
e do fruto dessa experiência, senão o fato de que todos os desnarigados de
Diogo Meireles continuaram a prover-se dos mesmos lenços de assoar. O que tudo
deixo relatado para glória do bonzo e benefício do mundo.
---
Nota:
Nota:
Texto-fonte: Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II, Nova
Aguilar, Rio de Janeiro, 1994. Publicado originalmente por Lombaerts & Cia,
Rio de Janeiro, 1882. Disponível
digitalmente no site: Domínio
Público
Nenhum comentário:
Postar um comentário