
O ANEL
DE POLÍCRATES
A — Lá vai o Xavier.
Z — Conhece o Xavier?
A — Há que
anos! Era um nababo, rico, podre de rico, mas pródigo...
Z — Que
rico? que pródigo?
A — Rico e
pródigo, digo-lhe eu. Bebia pérolas diluídas em néctar. Comia línguas de
rouxinol. Nunca usou papel mata-borrão, por achá-lo vulgar e mercantil; empregava areia nas cartas, mas uma certa
areia feita de pó de diamante. E mulheres! Nem toda a pompa de Salomão pode dar
idéia do que era o Xavier nesse particular. Tinha um serralho: a linha grega, a
tez romana, a exuberância turca, todas
as perfeições de uma raça, todas as prendas de um clima, tudo era admitido no harém do Xavier. Um dia
enamorou-se loucamente de uma senhora de alto coturno, e enviou-lhe de mimo
três estrelas do Cruzeiro, que então contava
sete, e não pense que o portador foi aí qualquer pé-rapado. Não, senhor. O
portador foi um dos arcanjos de Milton, que o Xavier chamou na ocasião em que ele
cortava o azul para levar a admiração dos homens ao seu velho pai inglês. Era assim o Xavier. Capeava os cigarros com um
papel de cristal, obra finíssima, e, para acendê-los, trazia consigo uma
caixinha de raios do sol. As colchas da cama eram nuvens purpúreas, e assim
também a esteira que forrava o sofá de repouso, a poltrona da secretária e a rede. Sabe quem
lhe fazia o café, de manhã? A Aurora,
com aqueles mesmos dedos cor-de-rosa, que Homero lhe pôs. Pobre Xavier! Tudo o
que o capricho e a riqueza podem dar, o raro, o esquisito, o maravilhoso, o
indescritível, o inimaginável, tudo teve e devia ter, porque era um galhardo rapaz, e um bom coração. Ah! fortuna,
fortuna! Onde estão agora as pérolas, os diamantes, as estrelas, as nuvens
purpúreas? Tudo perdeu, tudo deixou ir por água abaixo; o néctar virou zurrapa,
os coxins são a pedra dura da rua, não manda estrelas às senhoras, nem tem
arcanjos às suas ordens...
Z — Você
está enganado. O Xavier? Esse Xavier há de ser outro. O Xavier nababo! Mas o
Xavier que ali vai nunca teve mais de duzentos mil-réis mensais; é um homem poupado, sóbrio, deita-se com as
galinhas, acorda com os galos, e não escreve cartas a namoradas, porque não as
tem. Se alguma expede aos amigos é pelo
correio. Não é mendigo, nunca foi nababo.
A — Creio;
esse é o Xavier exterior. Mas nem só de pão vive o homem. Você fala de Marta, eu falo-lhe de Maria; falo do Xavier
especulativo...
Z — Ah! —
Mas ainda assim, não acho explicação; não me consta nada dele. Que livro, que
poema, que quadro...
A — Desde
quando o conhece?
Z — Há uns
quinze anos.
A — Upa!
Conheço-o há muito mais tempo, desde que ele estreou na Rua do Ouvidor, em
pleno Marquês de Paraná. Era um endiabrado, um derramado, planeava todas as
coisas possíveis, e até contrárias, um livro, um discurso, um medicamento, um jornal, um poema, um romance,
uma história, um libelo político, uma viagem à Europa, outra ao sertão de
Minas, outra à lua, em certo balão que inventara, uma candidatura política, e
arqueologia, e filosofia, e teatro, etc., etc., etc. Era um saco de espantos.
Quem conversava com ele sentia vertigens. Imagine uma cachoeira de idéias e
imagens, qual mais original, qual mais bela, às vezes extravagante, às vezes
sublime. Note que ele tinha a convicção dos seus mesmos inventos. Um dia, por
exemplo, acordou com o plano de arrasar o morro do Castelo, a troco das
riquezas que os jesuítas ali deixaram,
segundo o povo crê. Calculou-as logo em mil
contos, inventariou-as com muito cuidado,
separou o que era moeda, mil contos, do que eram obras de arte e pedrarias;
descreveu minuciosamente os objetos, deu-me dois tocheiros de ouro...
segundo o povo crê. Calculou-as logo em mil
contos, inventariou-as com muito cuidado,
separou o que era moeda, mil contos, do que eram obras de arte e pedrarias;
descreveu minuciosamente os objetos, deu-me dois tocheiros de ouro...
Z —
Realmente...
A — Ah!
impagável. Quer saber de outra? Tinha lido as cartas do Cônego Benigno, e
resolveu ir logo ao sertão da Bahia, procurar a cidade misteriosa. Expôs-me o plano,
descreveu-me a arquitetura provável da cidade, os templos, os palácios, gênero
etrusco, os ritos, os vasos, as roupas, os costumes...
Z — Era
então doido?
A —
Originalão apenas. Odeio os carneiros de Panúrgio, dizia ele, citando Rabelais:
Comme vous savez estre du
mouton le naturel, toujours suivre le
premier, quelque part qu'il aille. Comparava a
trivialidade a uma mesa redonda de hospedaria, e jurava que antes comer um mau
bife em mesa separada.
Z —
Entretanto, gostava da sociedade.
A —
Gostava da sociedade, mas não amava os sócios. Um amigo nosso, o Pires, fez-lhe um
dia esse reparo; e sabe o que é que ele respondeu? Respondeu com um apólogo, em
que cada sócio figurava ser uma cuia d’água, e a sociedade uma banheira. — Ora,
eu não posso lavar-me em cuias d’água, foi a sua conclusão.
Z — Nada
modesto. Que lhe disse o Pires?
A — O
Pires achou o apólogo tão bonito que o meteu numa comédia, daí a tempos. Engraçado é que o Xavier ouviu o
apólogo no teatro e aplaudiu-o muito, com
entusiasmo; esquecera-se da paternidade; mas a voz do sangue... Isto leva-me à
explicação da atual miséria do Xavier.
Z — É
verdade, não sei como se possa explicar que um nababo...
A —
Explica-se facilmente. Ele espalhava idéias à direita e à esquerda, como o céu chove,
por uma necessidade física, e ainda por duas razões. A primeira é que era impaciente,
não sofria a gestação indispensável à obra escrita. A segunda é que varria com
os olhos uma linha tão vasta de coisas, que mal poderia fixar-se em qualquer
delas. Se não tivesse o verbo fluente, morreria de congestão mental; a palavra
era um derivativo. As páginas que então falava, os capítulos que lhe borbotavam
da boca, só precisavam de uma arte de os imprimir no ar, e depois no papel, para serem páginas e capítulos
excelentes, alguns admiráveis. Nem tudo era límpido; mas a porção límpida
superava a porção turva, como a vigília de Homero paga os seus cochilos.
Espalhava tudo, ao acaso, as mãos cheias, sem ver onde as sementes iam cair;
algumas pegavam logo...
Z — Como a
das cuias.
A — Como a
das cuias. Mas, o semeador tinha a paixão das coisas belas, e, uma vez que a
árvore fosse pomposa e verde, não lhe perguntava nunca pela semente sua mãe. Viveu assim longos anos, despendendo
à toa, sem cálculo, sem fruto, de noite e de dia, na rua e em casa, um
verdadeiro pródigo. Com tal regímen, que era a ausência de regímen, não admira
que ficasse pobre e miserável. Meu amigo, a imaginação e o espírito têm
limites; a não ser a famosa botelha dos saltimbancos e a credulidade dos
homens, nada conheço inesgotável debaixo do sol. O Xavier não só perdeu as
idéias que tinha, mas até exauriu a faculdade de as criar; ficou o que sabemos.
Que moeda rara se lhe vê hoje nas mãos? Que sestércio de Horácio? que drama de
Péricles? Nada. Gasta o seu lugar-comum, rafado das mãos dos outros, come à
mesa redonda, fez-se trivial, chocho...

Z — Cuia,
enfim.
A —
Justamente: cuia.
Z — Pois
muito me conta. Não sabia nada disso. Fico inteirado; adeus.
A — Vai a
negócio?
Z — Vou a
um negócio.
A — Dá-me
dez minutos?
Z —
Dou-lhe quinze.
A — Quero
referir-lhe a passagem mais interessante da vida do Xavier. Aceite o meu braço,
e vamos andando. Vai para a Praça? Vamos juntos. Um caso interessantíssimo. Foi
ali por 1869 ou 70, não me recordo; ele mesmo é que me contou. Tinha perdido
tudo; trazia o cérebro gasto, chupado, estéril, sem a sombra de um conceito, de
uma imagem, nada. Basta dizer que um dia chamou rosa a uma senhora, — “uma
bonita rosa”; falava do luar saudoso, do sacerdócio da imprensa, dos jantares opíparos, sem
acrescentar ao menos um relevo qualquer a toda essa chaparia de algibebe.
Começara a ficar hipocondríaco; e, um dia, estando à janela, triste, desabusado
das coisas, vendo-se chegado a nada, aconteceu
passar na rua um taful a cavalo. De repente, o cavalo corcoveou, e o taful veio
quase ao chão; mas sustentou-se, e meteu as esporas e o chicote no animal; este
empina-se, ele teima; muita gente parada na rua e nas portas; no fim de dez
minutos de luta, o cavalo cedeu e continuou a marcha. Os espectadores não se fartaram de admirar o garbo, a coragem,
o sangue-frio, a arte do cavaleiro. Então o Xavier, consigo, imaginou que
talvez o cavaleiro não tivesse ânimo nenhum;
não quis cair diante de gente, e isso lhe deu a força de domar o cavalo. E daí
veio uma idéia: comparou a vida a um cavalo xucro ou manhoso; e acrescentou
sentenciosamente: Quem não for cavaleiro, que o pareça. Realmente, não era uma idéia extraordinária; mas a
penúria do Xavier tocara a tal extremo, que esse cristal pareceu-lhe um
diamante. Ele repetiu-a dez ou doze vezes, formulou-a de vários modos, ora na
ordem natural, pondo primeiro a definição, depois o complemento; ora dando-lhe
a marcha inversa, trocando palavras, medindo-as, etc.; e tão alegre, tão alegre
como casa de pobre em dia de peru. De noite, sonhou que efetivamente montava um
cavalo manhoso, que este pinoteava com ele e o sacudia a um brejo. Acordou
triste; a manhã, que era de domingo e chuvosa, ainda mais o entristeceu;
meteu-se a ler e a cismar. Então lembrou-se... Conhece o caso do anel de
Polícrates?
Z —
Francamente, não.
A — Nem
eu; mas aqui vai o que me disse o Xavier. Polícrates governava a ilha de Samos.
Era o rei mais feliz da terra; tão feliz, que começou a recear alguma viravolta
da Fortuna, e, para aplacá-la antecipadamente, determinou fazer um grande sacrifício: deitar ao mar o anel
precioso que, segundo alguns, lhe servia de sinete. Assim fez; mas a Fortuna
andava tão apostada em cumulá-lo de obséquios,
que o anel foi engolido por um peixe, o peixe pescado e mandado para a cozinha do rei, que assim voltou à posse do
anel. Não afirmo nada a respeito desta anedota; foi ele quem me contou, citando
Plínio, citando...
Z — Não
ponha mais na carta. O Xavier naturalmente comparou a vida, não a um cavalo, mas...
A — Nada
disso. Não é capaz de adivinhar o plano estrambótico do pobre-diabo. Experimentemos
a fortuna, disse ele; vejamos se a minha idéia, lançada ao mar, pode tornar ao
meu poder, como o anel de Polícrates, no bucho de algum peixe, ou se o meu
caiporismo será tal, que nunca mais lhe ponha a mão?
Z — Ora
essa!
A — Não é
estrambótico? Polícrates experimentara a felicidade; o Xavier quis tentar o
caiporismo; intenções diversas, ação idêntica. Saiu de casa, encontrou um amigo,
travou conversa, escolheu assunto, e acabou dizendo o que era a vida, um cavalo
xucro ou manhoso, e quem não for cavaleiro que o pareça. Dita assim, esta frase
era talvez fria; por isso o Xavier teve o cuidado de descrever primeiro a sua tristeza,
o desconsolo dos anos, o malogro dos esforços, ou antes os efeitos da imprevidência, e quando o peixe ficou de boca
aberta, digo, quando a comoção do amigo chegou ao cume, foi que ele lhe atirou
o anel, e fugiu a meter-se em casa. Isto que lhe conto é natural, crê-se, não é
impossível; mas agora começa a juntar-se à realidade uma alta dose de
imaginação. Seja o que for, repito o que ele me disse. Cerca de três semanas
depois, o Xavier jantava pacificamente no Leão de Ouro ou no Globo, não me lembro bem, e ouviu de outra
mesa a mesma frase sua, talvez com a troca de um adjetivo. “Meu pobre anel,
disse ele, eis-te enfim no peixe de Polícrates.” Mas a idéia bateu as asas e
voou, sem que ele pudesse guardá-la na memória. Resignou-se. Dias depois, foi
convidado a um baile: era um antigo
companheiro dos tempos de rapaz, que celebrava a sua recente distinção nobiliária.
O Xavier aceitou o convite, e foi ao baile, e ainda bem que foi, porque entre o sorvete e o chá ouviu de um grupo de
pessoas que louvavam a carreira do barão, a sua vida próspera, rígida, modelo,
ouviu comparar o barão a um cavaleiro emérito. Pasmo dos ouvintes, porque o
barão não montava a cavalo.
Mas o
panegirista explicou que a vida não é mais do que um cavalo xucro ou manhoso,
sobre o qual ou se há de ser cavaleiro ou parecê-lo, e o barão era-o excelente.
— “Entra, meu querido anel, disse o Xavier, entra no dedo de Polícrates”. Mas
de novo a idéia bateu as asas, sem querer ouvi-lo. Dias depois...
Z —
Adivinho o resto: uma série de encontros e fugas do mesmo gênero.
A — Justo.
Z — Mas,
enfim, apanhou-o um dia.
A — Um dia
só, e foi então que me contou o caso digno de memória. Tão contente que ele
estava nesse dia! Jurou-me que ia escrever, a propósito disto, um conto fantástico, à maneira de Edgar Poe, uma página
fulgurante, pontuada de mistérios, — são as suas próprias expressões; — e
pediu-me que o fosse ver no dia
seguinte. Fui; o anel fugira-lhe outra vez. “Meu caro A, disse-me ele, com um sorriso
fino e sarcástico, tens em mim o Polícrates do caiporismo; nomeio-te meu ministro honorário e gratuito”. Daí em diante
foi sempre a mesma coisa. Quando ele supunha pôr a mão em cima da idéia, ela
batia as asas, plás, plás, plás, e perdia-se no ar, como as figuras de um
sonho. Outro peixe a engolia e trazia, e sempre o mesmo desenlace. Mas dos
casos que ele me contou naquele dia, quero dizer-lhe três...
Z — Não
posso; lá se vão os quinze minutos.
A —
Conto-lhe só três. Um dia, o Xavier chegou a crer que podia enfim agarrar a fugitiva,
e fincá-la perpetuamente no cérebro. Abriu um jornal de oposição, e leu estupefato
estas palavras: “O ministério parece ignorar que a política é, como a vida, um
cavalo xucro ou manhoso, e, não podendo ser bom cavaleiro, porque nunca o foi,
devia ao menos parecer que o é”.
— “Ah!
enfim! exclamou o Xavier, cá estás engastado no bucho do peixe; já me não podes
fugir”. Mas, em vão! a idéia fugia-lhe, sem deixar outro vestígio mais do que
uma confusa reminiscência. Sombrio, desesperado, começou a andar, a andar, até
que a noite caiu; passando por um teatro, entrou; muita gente, muitas luzes,
muita alegria; o coração aquietou-se-lhe. Cúmulo de benefícios: era uma comédia do Pires, uma comédia nova. Sentou-se
ao pé do autor, aplaudiu a obra com entusiasmo, com sincero amor de artista e
de irmão. No segundo ato, cena VIII, estremeceu. “D. Eugênia, diz o galã a uma
senhora, o cavalo pode ser comparado à
vida, que é também um cavalo xucro ou manhoso; quem não for bom cavaleiro, deve
cuidar de parecer que o é”. O autor, com o olhar tímido, espiava no rosto do
Xavier o efeito daquela reflexão, enquanto o Xavier repetia a mesma súplica das
outras vezes: — “Meu querido anel...”
Z — Et nunc et semper... Venha o último encontro, que são horas.
A — O
último foi o primeiro. Já lhe disse que o Xavier transmitira a idéia a um amigo.
Uma semana depois da comédia cai o amigo doente, com tal gravidade que em
quatro dias estava à morte.
O Xavier
corre a vê-lo; e o infeliz ainda o pôde conhecer, estender-lhe a mão fria e trêmula,
cravar-lhe um longo olhar baço da última hora, e, com a voz sumida, eco do
sepulcro, soluçar-lhe: “Cá vou, meu Caro Xavier, o cavalo xucro ou manhoso da
vida deitou-me ao chão: se fui mau cavaleiro, não sei; mas forcejei por parecê-
lo bom”. Não se ria; ele contou-me isto com lágrimas. Contou-me também que a idéia
ainda esvoaçou alguns minutos sobre o cadáver, faiscando as belas asas de cristal,
que ele cria ser diamante depois estalou um risinho de escárnio, ingrato e parricida,
e fugiu como das outras vezes, metendo-se no cérebro de alguns sujeitos, amigos
da casa, que ali estavam, transidos de dor, e recolheram com saudade esse pio
legado do defunto. Adeus.
---
Nota:
Nota:
Texto-fonte: Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II, Nova
Aguilar, Rio de Janeiro, 1994. Publicado originalmente por Lombaerts & Cia,
Rio de Janeiro, 1882. Disponível
digitalmente no site: Domínio
Público
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