
ALMAS AGRADECIDAS
CAPÍTULO PRIMEIRO
Havia
representação no Ginásio. A peça da moda era então a célebre Dama das camélias. A casa estava cheia. No fim do quarto ato começou a chover um
pouco; do meio do quinto ato em diante, a chuva redobrou de violência.
Quando
acabou o espetáculo, cada família entrou no seu carro; as poucas que não tinham
esperavam uma estiada, e, mediante os guarda-chuvas,
lá saíram com as saias arregaçadas,
..............
aos olhos dando, O que às mãos cobiçosas vão negando.
Os homens
abriam os seus guarda-chuvas; outros chamavam tílburis; e pouco a pouco se foi despejando o saguão,
até que só ficaram dois rapazes, um dos
quais abotoara até o pescoço o paletó, e esperava maior estiada para sair, porque além de não
ter guarda-chuva, não via nenhum tílburi no horizonte.
O outro
também abotoara o paletó, mas tinha guarda-chuva; não parecia, entretanto, disposto a abri-lo. Olhava
de esguelha para o
primeiro, que fumava tranqüilamente um
charuto.
Já o
porteiro havia fechado as duas portas laterais e ia fazer o mesmo à porta
central, quando o rapaz do guarda-chuva dirigiu ao outro estas palavras:
— Para que
lado vai?
O
interpelado compreendeu que o companheiro lhe ia oferecer abrigo e respondeu, com palavras de agradecimento,
que morava na Glória.
— É muito
longe, disse ele, para aceitar o abrigo que naturalmente me quer oferecer. Eu esperarei aqui um
tílburi.
— Mas a
porta vai fechar-se, observou o outro.
— Não importa,
esperarei do lado de fora.
— Não é
possível, insistiu o primeiro; a chuva ainda está forte e pode aumentar mais.
Não lhe ofereço abrigo até casa porque moro na Prainha, que é justamente do lado oposto; mas
posso cobri-lo até ao Rocio, onde encontraremos um tílburi.
— É
verdade, respondeu o rapaz que não tinha guarda-chuva; não me havia ocorrido
isto, aceito com prazer.
Saíram os
dois rapazes e foram até ao Rocio. Nem sombra de tílburi
ou caleça.
— Não
admira, disse o rapaz do guarda-chuva; foram todos com gente do teatro. Daqui a
pouco haverá algum de volta...
— Mas eu
não quisera dar-lhe o incômodo de o reter mais tempo aqui à chuva.
— Cinco ou
dez minutos, talvez; esperaremos.
A chuva
veio contrariar estes bons desejos do rapaz, caindo com furor. Mas o desejo de
servir tem mil maneiras de se manifestar. O rapaz do guarda-chuva propôs um meio excelente
de escapar à chuva e esperar condução: era ir tomar chá ao hotel que mais à mão
lhes ficasse. O convite não era mau; tinha só o inconveniente de vir de um desconhecido.
Antes de lhe responder, o rapaz sem guarda-chuva deitou um rápido olhar ao seu
companheiro, espécie de exame prévio da condição social da pessoa. Parece que a
achou boa, porque aceitou o convite.
— É levar
muito longe a sua bondade, disse ele, mas eu não posso deixar de abusar dela; a
noite está inclemente.
— Eu
também costumo esquecer o guarda-chuva, e amanhã estarei nas suas mesmas
circunstâncias.
Foram para
o hotel e daí a pouco tinham diante de si um excelente pedaço de rosbife frio,
acompanhado de não menos excelente chá.
— Há de
desculpar a minha curiosidade, disse o rapaz sem guarda-chuva; mas eu desejaria
saber a quem devo a obsequiosidade com que sou tratado há vinte minutos.
— Não
somos inteiramente desconhecidos, respondeu o outro; a sua memória é que é
menos conservadora do que a minha.
— Donde me
conhece?
— Do
colégio. Andamos juntos no colégio Rosa...
— Andei
lá, é verdade, mas...
— Não se
lembra do Oliveira? Aquele que trocava as réguas por laranjas? Aquele que
desenhava com giz o retrato do mestre nas costas dos outros meninos?
— Que me
diz? É o senhor?
— De carne
e osso; eu mesmo. Acha-me mudado, não?
— Oh!
muito!
— Não
admira; eu era naquele tempo uma criança rechonchuda e vermelha; hoje como vê,
estou quase tão magro como D. Quixote; e não foram trabalhos, porque eu não os tenho
tido; nem desgostos, que eu ainda não os experimentei. O senhor, porém, é que
não mudou; se não fosse esse pequeno bigode, pareceria o mesmo daquele tempo.
— E
todavia não me hão faltado desgostos, acudiu o outro; minha vida tem sido
atribulada. A natureza tem destas coisas.
—
Casou-se?
— Não; e o
senhor?
— Também
não.
A pouco e
pouco começaram as confidências pessoais; cada um narrou aquilo que podia
narrar, por maneira que, ao fim da ceia, pareciam tão íntimos como no tempo do
colégio.
Sabemos
destas revelações mútuas, que Oliveira era bacharel em direito, e começava a advogar com pouco
sucesso. Herdara alguma coisa da avó, última parenta que conservara até então,
tendo-lhe morrido os pais antes de entrar na adolescência. Estava com certo desejo
de entrar na vida política e contava com a proteção de alguns amigos de seu
pai, para ser eleito deputado à Assembléia Provincial Fluminense.
Magalhães
era o nome do outro; não herdara de seus pais dinheiro, nem amigos políticos. Aos 16 anos, achou-se só
no mundo; exercera vários empregos de caráter particular, até que conseguira
obter uma nomeação para o Arsenal de
Guerra, onde estava atualmente. Confessou
que esteve a ponto de enriquecer, casando com uma viúva rica; mas não revelou
as causas que lhe impediram essa mudança de fortuna.
A chuva
cessara de todo. Já uma parte do céu se havia descoberto deixando aparecer o
rosto da lua cheia, cujos raios pálidos e frios brincavam nas pedras e nos telhados úmidos.
Saíram os
nossos dois amigos.
Magalhães
declarou que iria a pé.
— Não
chove mais, disse ele; ou, pelo menos, nesta meia hora; vou a pé até à Glória.
— Pois
bem, respondeu Oliveira; já lhe disse o número da minha casa e do meu escritório; apareça lá algumas
vezes; folgarei de reatar as nossas relações da meninice.
— Também
eu; até breve.
Despediram-se
na esquina da Rua do Lavradio, e Oliveira enfiou pela de S. Jorge. Ambos foram pensando um no outro.
— Parece ser
um excelente rapaz este Magalhães, dizia o jovem advogado consigo; no colégio,
foi sempre um menino sério. Ainda o é agora, e até parece um pouco reservado,
mas é natural porque sofreu.
CAPÍTULO II
Três dias
depois, apareceu Magalhães no escritório de Oliveira; falou na sala a um porteiro que lhe pediu o cartão.
— Não
tenho cartão, respondeu Magalhães envergonhado; esqueci- me de o trazer;
diga-lhe que é o Magalhães.
— Queira
esperar alguns minutos, tornou o porteiro; ele está conversando com uma pessoa.
Magalhães
assentou-se numa cadeira de braços, enquanto o porteiro assoava silenciosamente
o nariz e tomava uma pitada de rapé, que lhe não ofereceu. Magalhães examinou
detidamente as cadeiras, as estantes, os
quadros de gravuras, os capachos e as escarradeiras. A sua curiosidade era
minuciosa e sagaz; parecia estar avaliando o gosto ou a riqueza de seu ex-colega.
Minutos
depois, ouviu-se um rumor de cadeiras, e não tardou que viesse da sala do fundo
um velho alto e empertigado, vestido com certo apuro, a quem o porteiro fez
largos cumprimentos até o patamar da
escada.
Magalhães
não esperou que o porteiro fosse avisar Oliveira; atravessou o corredor que separava as duas
salas e foi ter com o amigo.
— Ora,
viva! disse este apenas o viu entrar. Estimo que não lhe houvesse esquecido a
promessa. Sente-se; chegou a casa com chuva?
— Começou
a chuviscar, quando eu me achava a dois passos da porta, respondeu Magalhães.
— Que
horas são?
— Pouco
mais de duas, creio eu.
— O meu
relógio está parado, disse Oliveira, lançando o olhar de esguelha para o colete de Magalhães, que não
tinha relógio. Naturalmente, ninguém
mais me procurará hoje; e ainda que venham, quero descansar.
Oliveira
tocou a campainha apenas acabou de proferir estas palavras. Veio o porteiro.
— Se vier
alguém, disse Oliveira, não estou cá.
O porteiro
inclinou-se e saiu.
— Estamos
livres de importunos, disse o advogado, apenas o porteiro virou as costas.
Todas
estas maneiras e palavras de simpatia e cordialidade foram angariando a
confiança de Magalhães, que começou a parecer alegre e franco com o seu ex-colega.
Longa foi
a conversa, que durou até às 4 horas da tarde. As 5 jantava Oliveira; mas o outro jantava às 3, e se o não
disse, era talvez por deferência, se não
fosse por cálculo. Um jantar copioso e escolhido não era melhor que o ramerrão culinário de
Magalhães? Fosse uma ou outra coisa, Magalhães suportou a fome com admirável
denodo. Eram 4 horas da tarde quando
Oliveira deu acordo de si.
— Quatro
horas! exclamou ele, ouvindo as badaladas de um sino próximo. Naturalmente, já
você perdeu a hora do jantar.
— Assim é,
respondeu Magalhães; eu costumo jantar às 3 horas. Não importa; adeus.
— Isso é
que não; há de ir jantar comigo.
— Não;
obrigado...
— Ande cá,
jantaremos no hotel mais próximo, porque a minha casa é longe. Eu ando com
idéia de mudar de casa; estou muito fora do centro da cidade. Vamos aqui ao Hotel de
Europa.
Os vinhos
eram bons; Magalhães gostava de vinhos bons. No meio do jantar, tinha-se-lhe desenvolvido
completamente a língua. Oliveira fazia
quanto podia para tirar ao amigo da infância toda espécie de acanhamento. Isso
e o vinho deram excelente resultado.
Desta
ocasião em diante foi que Oliveira começou a apreciar o ex- colega. Era Magalhães
um rapaz de agudo espírito, boa observação, conversador ameno, um pouco lido em
obras fúteis e correntes. Tinha, além
disso, o dom de ser naturalmente insinuante. Com estas prendas juntas não era difícil, era antes
facílimo angariar as boas graças de
Oliveira, que, à sua extrema bondade, reunia uma natural confiança, ainda não
diminuída pelos cálculos da vida madura. Demais Magalhães tinha sido infeliz; esta
circunstância era aos olhos de Oliveira
um realce. Finalmente, o seu ex-colega já lhe confiara no trajeto do escritório
ao hotel, que não contava um amigo debaixo do sol. Oliveira queria ser esse amigo.
Qual
importa mais à vida, ser Dom Quixote ou Sancho Pança? O ideal ou o prático? A
generosidade ou a prudência? Oliveira não hesitava entre esses dois opostos
papéis; nem sequer pensara neles. Estava no período do coração.
Apertaram-se
os laços da amizade entre os dois colegas. Oliveira mudou-se para a cidade, o que deu azo a que os
dois amigos se encontrassem mais vezes. A freqüência veio a uni-los ainda mais.
Oliveira
apresentou Magalhães a todos os seus amigos; levou-o à casa de alguns. A sua palavra afiançava o
hóspede que, dentro em pouco tempo, captava as simpatias de todos.
Nisto era
Magalhães superior a Oliveira. Não faltava ao advogado inteligência, nem maneiras, nem dom para se
fazer estimado. Mas os dotes de Magalhães superavam os dele. A conversa de
Magalhães era mais picante, mais variada, mais atraente. Há muito quem prefira
a amizade de um homem sarcástico, e
Magalhães tinha seus longes de sarcástico.
Não se
magoava com isto Oliveira, antes parecia ter certa glória em ver que seu amigo
obtinha por seu mérito a estima dos outros.
Facilmente
acreditará o leitor que estes dois amigos se fizessem confidentes de todas as coisas, principalmente
de coisas de amores. Nada esconderam a este respeito um ao outro, com a
diferença de que Magalhães, não tendo amores atuais, confiou ao
amigo apenas algumas proezas antigas, ao
passo que Oliveira, a braços com algumas aventuras, não dissimulou nenhuma
delas, e tudo contou a
Magalhães.
E foi bem
que o fizesse, porque Magalhães era homem de bom conselho, dava ao amigo pareceres sensatos,
que ele ouvia e aceitava com grande
proveito seu e para maior glória da recíproca amizade.
A dedicação
de Magalhães ainda se manifestava por outro modo. Não era raro vê-lo desempenhar um papel de
conciliador, auxiliar uma inocente mentira, ajudar o amigo em todas as
dificuldades que o amor depara aos seus
alunos.
CAPÍTULO III
Um dia de
manhã, leu Oliveira, ainda na casa, a notícia da demissão de Magalhães,
impressa no Jornal do Commercio. Grande foi a sua mágoa, mas ainda maior que a mágoa foi a raiva
que esta notícia lhe causou. Demitir Magalhães! Oliveira mal podia compreender
este ato do ministro. O ministro era necessariamente tolo ou tratante.
Havia
patronato naquilo. Não seria pagamento a algum eleitor solícito?
Estas e
outras conjeturas preocuparam o advogado até a hora do almoço. Almoçou pouco. O
estômago acompanhava a dor do coração.
Magalhães
devia ir nesse dia ao escritório de Oliveira. Com que ansiedade esperou este a
hora marcada! Esteve a ponto de faltar a um depoimento de testemunhas. Mas a hora
chegou e Magalhães não apareceu. Oliveira estava sobre brasas. Qual a razão da
falta? Não atinava com ela.
Eram
quatro horas quando saiu do escritório, e sua resolução imediata foi meter-se
num tílburi e seguir para a Glória.
Assim o
fez.
Quando lá
chegou, estava Magalhães lendo um romance. Não parecia abatido pelo golpe ministerial. Todavia não estava alegre. Fechou o livro lentamente e abraçou o amigo.
Oliveira
não podia conter a sua cólera.
— Lá vi
hoje, disse ele, a notícia da tua demissão. É uma patifaria sem nome...
— Por quê?
— Ainda o
perguntas?
— Sim; por
quê? O ministro é senhor dos seus atos e responsável por eles; podia demitir-me
e fê-lo.
— Mas fez
mal, disse Oliveira.
Magalhães
sorriu tristemente.
— Não
podia deixar de o fazer, disse ele; um ministro é muitas vezes um amanuense do
destino, que só parece ocupar-se em me perturbar a vida e multiplicar todos os
esforços. Que queres? Eu já estou acostumado, não resisto; dia virá em que
estes golpes terão um termo. Dia
virá em que
eu possa vencer
a má fortuna
de uma vez para
sempre. Tenho o remédio nas mãos.
— Deixa-te
de tolices, Magalhães.
— Tolices?
— Mais que
tolices; sê forte!
Magalhães
abanou a cabeça.
— Não
custa aconselhar fortaleza, murmurou ele; mas quem tem sofrido como eu...
— Já não
contas com os amigos?
— Os
amigos não podem tudo.
— Muito
obrigado! Eu te mostrarei se podem.
— Não te
iludas, Oliveira; não te esforces a favor de um homem que a sorte condenou.
—
Histórias!
— Sou um
condenado.
— És um
fracalhão.
—
Acreditas que eu...
— Acredito
que és um fracalhão, e que não pareces aquele mesmo Magalhães que sabe
conservar o sangue frio em todas as ocasiões graves. Descansa, eu tirarei desforra
brilhante. Antes de quinze dias estarás
empregado.
— Não
creias...
—
Desafias-me?
— Não; bem
conheço de que é capaz teu coração nobre e generoso... mas...
— Mas o
quê?
— Receio
que a má fortuna seja mais forte do que tu.
— Verás.
Oliveira
deu um passo para a porta.
— Nada
disso impede que venhas jantar comigo, disse ele, voltando-se para Magalhães.
—
Obrigado; já jantei.
— Anda ao
menos comigo para ver se te distrais.
Magalhães
recusou; mas Oliveira insistiu com tão boa vontade que não havia recusar.
Durante a
noite seguinte, meditou Oliveira acerca do negócio de Magalhães. Tinha amigos importantes, os mesmos
que forcejavam por lhe abrir carreira
política. Oliveira pensou neles como os mais próprios para levar a cabo a obra
de seus desejos. O grande caso para ele
era empregar Magalhães, em cargo tal que despicasse da prepotência ministerial. O substantivo prepotência era a exata expressão de Oliveira.
Não lhe
ocultaram os amigos que o caso não era fácil; mas prometeram que a dificuldade seria vencida.
Não se dirigiram ao ministro da Guerra,
mas a outro; Oliveira pôs em campo o recurso feminino. Duas senhoras de seu
conhecimento foram em pessoa falar ao ministro, em favor do feliz candidato.
Não negou
o digno membro do poder executivo a dificuldade de criar um lugar para dar ao pretendente. Seria
cometer a injustiça de tirar o pão a
empregados úteis ao país.
Instavam,
porém, os padrinhos, audiências e cartas, pedidos de toda sorte; nada ficou por
empregar em favor de Magalhães.
Depois de
cinco dias de lutas e solicitações diárias, declarou o ministro que poderia dar
um bom emprego a Magalhães na Alfândega de Corumbá. Já era boa vontade da parte
do ministro, mas os protetores de
Magalhães recusaram a graça.
— O que se
deseja de V. Excia., disse um deles, é que o nosso afilhado seja empregado aqui
mesmo na Corte. Vai nisso uma questão de honra, e uma questão de comodidade.
Tinha boa
vontade o ministro, e entrou a cogitar no meio de acomodar o pretendente. Havia
em uma das repartições a seu cargo um empregado que durante o ano faltava
muitas vezes ao ponto, e na última
peleja eleitoral votara contra o ministro. Caiu-lhe uma demissão em casa, e
para evitar empenhos mais fortes, no mesmo dia em que apareceu a demissão do
empregado vadio, apareceu a nomeação de
Magalhães.
Foi o
próprio Oliveira que levou a Magalhães o desejado decreto.
— Dá-me cá um braço, disse ele, e reza aí um mea culpa. Venci o destino. Estás nomeado.
— Quê!
será possível?
— Aqui
tens o decreto!
Magalhães
caiu nos braços de Oliveira.
A gratidão
de quem recebe um benefício é sempre menor que o prazer daquele que o faz. Magalhães exprimia todo seu
reconhecimento pela dedicação e perseverança de Oliveira; mas a alegria de Oliveira não tinha limites. A
explicação desta diferença está talvez
neste fundo de egoísmo que há em todos nós.
Em todo
caso, a amizade dos dois ex-colegas ganhou com isso maior solidez.
CAPÍTULO IV
O novo
emprego de Magalhães era muito melhor que o primeiro em categoria e lucro.
De maneira
que a demissão, longe de lhe ser um golpe funesto do destino, foi um lance de
melhor fortuna.
Passou
Magalhães a ter melhor casa e a alargar um pouco mais a bolsa, pois que a tinha agora mais farta que
dantes; Oliveira observava esta mudança
e regozijava-se com a idéia de que contribuíra para ela.
A vida de
ambos continuaria por este teor, plácida e indiferente, se um acontecimento não a viesse perturbar de
repente.
Um dia
achou Magalhães que Oliveira parecia preocupado. Perguntou-lhe francamente o
que era.
— Que há
de ser? disse Oliveira. Eu sou um miserável nessas coisas de amores; estou apaixonado.
— Queres
que te diga uma coisa?
— O quê?
— Acho que
fazes mal em diluir o teu coração com essas mulheres.
— Que
mulheres?
— Essas.
— Não me
compreendes, Magalhães; a minha atual paixão é séria; amo uma menina honesta.
— Que
mágoas então são essas? Casa-te com ela.
— Esse é o
ponto. Creio que ela não me ama.
— Ah!
Houve um
silêncio.
— Mas não
te resta esperança nenhuma? perguntou Magalhães.
— Não
posso dizer isso; não penso que ela seja sempre esquiva ao meu sentimento; mas
por ora nada há entre nós.
Magalhães
entrou a rir.
—
Pareces-me calouro, homem! disse ele. Quantos anos tem ela?
—
Dezessete.
— A idade
da inocência; suspiras em silêncio e queres que ela te adivinhe. Nunca chegarás
ao cabo. Tem-se comparado o amor à guerra.
Assim é. No amor, querem-se atos de bravura como na guerra. Avança afoitamente e vencerás.
Oliveira
ouvia estas palavras com a atenção de um homem sem iniciativa, a quem todo
conselho serve. Confiava no juízo de Magalhães e o parecer dele era razoável.
—
Parece-te então que eu devo expor-me?
— Sem
dúvida.
O advogado
referiu depois todas as circunstâncias do seu encontro com a moça em questão. Pertencia a uma família
com quem esteve em casa de terceiro; o pai era um excelente homem, que o
convidou a freqüentar a casa, e a mãe
uma excelente senhora que ratificou o convite do marido. Oliveira não tinha ido
lá depois disso, porque, segundo imaginava, a moça não correspondia à sua
afeição.
— És um
tolo, disse Magalhães quando o amigo acabou a narração. Vês a rapariga num baile, ficas gostando dela,
e só porque ela não te caiu logo nos braços, desistes de lhe freqüentar a casa.
Oliveira, tem juízo: vai à casa dela, e
dir-me-ás daqui a pouco tempo se te não aproveita o conselho. Queres casar,
não?
— Oh!
podias pôr em dúvida?...
— Não; é
uma pergunta. Não é casamento romântico?
— Que
queres dizer com isso?
— Ela é
rica?
Oliveira
franziu a testa.
— Não te
zangues, disse Magalhães. Eu não sou nenhum espírito rasteiro; também conheço as delicadezas do
coração. Nada vale mais que um amor
verdadeiro e desinteressado. Não se me há de censurar, porém, que eu procure ver o lado prático das
coisas; um coração de ouro vale muito; mas um coração de ouro com ouro vale
mais.
— Cecília
é rica.
— Pois
tanto melhor!
—
Afianço-te, porém, que essa consideração...
— Não
precisas afiançar nada; eu bem sei o que vales, disse Magalhães apertando as
mãos de Oliveira. Anda, meu amigo, não te detenho; procura a tua felicidade.
Animado
por estes conselhos, tratou Oliveira de sondar o terreno para declarar a sua paixão. Omiti de propósito a
descrição de Cecília feita por Oliveira ao seu amigo Magalhães. Não desejava
exagerar aos olhos dos leitores a beleza da moça, que a um namorado parece sempre maior do que realmente é. Mas Cecília
era realmente formosa. Era uma beleza,
uma flor em toda a extensão da palavra. Todas as forças e fulgores da mocidade
estavam nela, que apenas saía da adolescência e parecia anunciar longa e
esplêndida juventude. Não era alta, mas
também não era baixa. Era acima de meã. Era muito corada e viva; tinha uns olhos
brilhantes e buliçosos, olhos de namorada ou namoradeira; era talvez um pouco
afetada, mas deliciosa; tinha certas
exclamações que lhe ficavam bem nos seus lábios finos e úmidos.
Oliveira
não viu logo todas estas coisas na noite em que lhe falou; mas não tardou que
ela se lhe revelasse assim, desde que começou a freqüentar a casa dela.
Nisto era
Cecília ainda um pouco criança; não sabia dissimular, nem era difícil
captar-lhe a confiança. Mas, através das aparências de frivolidade e
volubilidade, descobria-lhe Oliveira sólidas qualidades do coração. O contato redobrou o seu amor. No fim
de um mês, Oliveira parecia perdido por
ela.
Magalhães
continuava a ser o conselheiro de Oliveira e o seu único confidente. Um dia, pediu-lhe o namorado que
fosse com ele à casa de Cecília.
— Tenho
medo, disse Magalhães.
— Por quê?
— Sou
capaz de precipitar tudo, e isso não sei se será conveniente antes de conhecer
bem o terreno. Em qualquer caso, não é mau que eu vá examinar por mim mesmo as
coisas. Irei quando quiseres.
— Amanhã?
— Seja
amanhã.
No dia
seguinte, Oliveira apresentou Magalhães em casa do comendador Vasconcelos.
— É o meu
melhor amigo, disse Oliveira.
Na casa de
Vasconcelos já estimavam o advogado; esta apresentação bastava para recomendar
Magalhães.
CAPÍTULO V
O
comendador Vasconcelos era um velho folgazão. Estouvado na mocidade, não o era menos na velhice. O
estouvamento na velhice é, por via de regra, um senão; todavia, o estouvamento de
Vasconcelos tinha um toque peculiar, um
caráter todo seu, por modo que era impossível
compreender aquele velho sem aquele estouvamento.
Contava já
seus cinqüenta e oito anos, e andaria lépido como um rapaz de vinte anos, se
não fosse uma volumosa barriga que, desde os quarenta anos, lhe começara a
crescer com grave desdouro das suas
graças físicas, que as tinha, e sem as quais era duvidoso que a Sra. D. Mariana
houvesse casado com ele.
D.
Mariana, antes de casar, professava um princípio seu: o casamento é um estado
vitalício; cumpre não precipitar a escolha do noivo. Pelo que, rejeitou três pretendentes que, apesar de
suas boas qualidades, tinham um
defeito físico importante: não eram bonitos. Vasconcelos alcançou o seu
Austerlitz onde os outros haviam achado Waterloo.
Salvante a
barriga, Vasconcelos era ainda um belo velho, uma ruína magnífica. Não tinha paixões políticas: votara
alternadamente com os conservadores e os
liberais para contentar os amigos que tinha em ambos os partidos. Conciliava as opiniões sem
arriscar as amizades.
Quando a
acusavam deste ceticismo político, respondia com uma frase que, se não discriminava as suas
opiniões, abonava o seu patriotismo:
— Somos
todos brasileiros.
Quadrava o
gênio de Magalhães com o de Vasconcelos. A intimidade não tardou muito. Já
sabemos que o amigo de Oliveira tinha a grande qualidade de se fazer querido
com pouco trabalho. Vasconcelos morria
por ele; achava-lhe imensa graça e sólido juízo. D. Mariana chamava-lhe a alegria da casa; Cecília não tinha mais condescendente conversador.
Para os
fins de Oliveira era excelente.
Não se
descuidou Magalhães de sondar o terreno, a ver se podia animar o amigo. Achou o terreno excelente.
Falou uma vez à moça a respeito do amigo e ouviu-lhe palavras de animadora
esperança. Parece-me ser, disse ela, um excelente coração.
— Afirmo
que o é, disse Magalhães; conheço-o há muito tempo.
Quando
Oliveira soube destas palavras, que não eram muita coisa, ficou muito animado.
— Creio
que posso ter esperanças, disse ele.
— Nunca te
disse outra coisa, respondeu Magalhães.
Magalhães
nem sempre podia servir aos interesses do amigo, porque Vasconcelos, a quem
caíra em graça, confiscava-o horas inteiras, ou palestrando, ou jogando o gamão.
Um dia
Oliveira perguntou ao amigo se era conveniente arriscar uma carta.
— Ainda
não, deixa-me preparar a coisa.
Oliveira
acedeu.
A quem ler
estas páginas muito por alto, parecerá inverossímil da parte de Oliveira semelhante necessidade de um
cicerone.
Não é.
Oliveira
nenhuma demonstração dera até ali à moça, que se conservava ignorante do que se
passava dentro dele; e se assim praticava, era por um excesso de timidez, fruto
de suas proezas com mulheres de outra classe.
Nada
intimida mais a um conquistador de mulheres fáceis do que a ignorância e a
inocência de uma donzela de dezessete anos.
Acresce
que, se Magalhães era de opinião que ele não se demorasse em expor os seus sentimentos, já agora pensava
que era melhor não arriscar golpe sem
certeza do resultado.
A
dedicação de Magalhães também parecerá condescendente aos espíritos severos.
Mas a que se não expõe a verdadeira amizade?
Na
primeira ocasião que se lhe deparou, tratou Magalhães de perscrutar o coração
da moça.
Era de
noite; havia gente em casa. Oliveira estava ausente. Magalhães conversava com
Cecília a respeito de um chapéu com que uma senhora idosa entrara na sala.
Magalhães
fazia a respeito do chapéu mil conjeturas burlescas.
— Aquele
chapéu, dizia ele, parece-me um ressuscitado. Houve naturalmente alguma
epidemia de chapéus em que morreu aquele, acompanhado de outros seus irmãos. Aquele
ressuscitou, para vir dizer a este mundo
o que é o paraíso dos chapéus.
Cecília
reprimia uma risada.
Magalhães
continuava:
— Eu, se
fosse aquele chapéu, pedia uma pensão como inválido e
como
raridade.
Isto era
mais burlesco que picante, mais estúrdio que engraçado; todavia, fazia rir Cecília. Repentinamente,
Magalhães ficou sério e consultou o relógio.
— Já se
vai embora? perguntou a moça.
— Não,
senhora, disse Magalhães.
— Guarde
então o relógio.
—
Admira-me que Oliveira ainda não viesse.
— Virá
mais tarde. Os senhores são muito amigos?
— Muito.
Conhecemo-nos desde crianças. É uma bela alma.
Houve um
silêncio.
Magalhães
cravou os olhos na moça, que olhava para o chão, e disse:
— Feliz
aquela que o possuir.
A moça não
revelou a menor impressão ao ouvir estas palavras de Magalhães. Ele repetiu a
frase, e ela perguntou se não seriam horas de tomar chá.
— Já amou,
D. Cecília? perguntou Magalhães.
— Que
pergunta é essa?
— É uma
curiosidade.
— Nunca
amei.
— Por quê?
— Sou
muito criança.
— Criança!
Outro
silêncio.
— Conheço
alguém que a ama muito.
Cecília
estremeceu e ficou muito corada; não respondeu nem se levantou. Para sair, porém, da situação em que
as palavras de Magalhães a deixara, disse rindo:
— Essa
pessoa... quem é?
— Quer
saber o nome?
— Quero. É
seu amigo?
— É.
— Diga o
nome.
Outro
silêncio.
— Promete
não ficar zangada comigo?
— Prometo.
— Sou eu.
Cecília
esperava ouvir outra coisa; esperava ouvir o nome de Oliveira. Qualquer que fosse a sua inocência, tinha
percebido naqueles últimos dias que o rapaz tinha queda por ela. Da parte de
Magalhães não esperava semelhante declaração; todavia, o seu espanto não foi de
cólera, apenas surpresa.
A verdade
é que ela não amava nenhum deles.
Não tendo
a moça respondido logo, Magalhães disse com um sorriso benévolo:
— Já sei
que ama outro.
— Que
outro?
—
Oliveira.
— Não.
Era a
primeira vez que Magalhães apresentava um aspecto grave; penalizada com a idéia
de que lhe houvesse com o silêncio causado alguma tristeza, que ela adivinhava, posto que
não sentisse, Cecília disse ao fim de alguns minutos:
— O senhor
está brincando comigo?
—
Brincando! disse Magalhães. Tudo quanto quiser, menos isso; não se brinca com o
amor ou o sofrimento. Já lhe disse que a amo; responda-me francamente se posso
nutrir alguma esperança.
A moça não
respondia.
— Não
poderei viver ao pé da senhora sem uma esperança, embora remota.
— O papá é
quem decide de mim, disse ela desviando a conversa.
— Pensa
que eu sou desses corações que se contentam com o consentimento paterno? O que
eu desejo possuir primeiro é o seu coração. Diga-me: posso esperar essa
fortuna?
— Talvez,
murmurou a menina, levantando-se envergonhada dessa singela palavra.
CAPÍTULO VI
Era a
primeira declaração que Cecília ouvia da boca de um homem. Não estava preparada
para ela. Tudo o que ouvira lhe causara um inexplicável alvoroço.
Posto que
não amasse nenhum dos dois, apreciava ambos os rapazes, e não seria difícil que
cedesse ao pedido de um deles e viesse a amá-lo apaixonadamente.
Dos dois
rapazes, o que mais depressa conseguiria vencer, dado o caso que se declarassem
ao mesmo tempo, era sem dúvida Magalhães,
cujo espírito galhofeiro e presença insinuante deviam influir mais no espírito da moça.
Minutos
depois da cena narrada no capítulo anterior, já os olhos de Cecília procuravam
os de Magalhães, mas rapidamente, sem se demorar neles; todos os sintomas de um
coração que não se demorará em ceder.
Magalhães
tinha a vantagem de conservar todo o sangue frio no meio da situação que se lhe apresentava, e isso era
excelente para não descobrir aos olhos estranhos o segredo que ele tinha
interesse em conservar.
Pouco
depois, entrou Oliveira. Magalhães deu-se pressa em o chamar de parte.
— Que há?
perguntou Oliveira.
— Boas
notícias.
—
Falaste-lhe?
—
Positivamente não; mas encaminhei o negócio de maneira que talvez em poucos
dias tenha a tua situação mudado completamente.
— Mas que
houve?
—
Falei-lhe de amores; ela pareceu indiferente a essas idéias; disse-lhe então
gracejando que a amava...
— Tu?
— Sim. De
que te admiras?
— E que
disse ela?
— Riu-se.
Então perguntei-lhe velhacamente se amava alguém. E ela a isto respondeu que não, mas por modo que me
parecia uma afirmativa. Deixa o caso por minha conta. Amanhã, desfaço a meada; digo-lhe
que eu estava brincando... Mas paremos aqui, que aí vem o comendador.
Efetivamente
Vasconcelos chegara à janela onde os dois estavam. Uma das manias de
Vasconcelos era comentar durante o dia todas as notícias que os jornais
publicavam de manhã. Os jornais daquele dia falavam de um casal encontrado morto num
quarto da casa em que residia. Vasconcelos desejava saber se os dois amigos
optavam pelo suicídio, circunstância
esta que o levaria a adotar a hipótese do assassinato.
Foi esta
conversa uma completa diversão ao assunto amoroso, e Magalhães aproveitou o
debate entre Oliveira e Vasconcelos para ir conversar com Cecília.
Falaram de
coisas indiferentes, mas Cecília estava menos expansiva; Magalhães supôs a princípio que fosse um
sintoma de esquivança; não era. Bem o notou ele quando, ao sair, Cecília
correspondeu
energicamente
ao seu apertado aperto de mão.
— Pensas
que serei feliz, Magalhães? perguntou Oliveira apenas se acharam na rua.
— Penso.
— Não
imaginas que dia passei hoje.
— Não hei
de imaginar!
— Olha,
nunca pensei que esta paixão pudesse dominar tanto a minha vida.
Magalhães
animou o rapaz, que o convidou a cear, não porque o amor lhe deixasse largo campo às exigências do
estômago, senão porque havia jantado pouco.
Eu peço
perdão aos meus leitores, se entro nestas explicações a respeito da comida.
Quer-se um
herói romântico, acima das necessidades vulgares da vida humana; mas não posso deixar de as
mencionar, não por sistema, mas por ser fiel à história que estou contando.
A ceia foi
alegre, porque Magalhães e a tristeza eram incompatíveis. Oliveira, apesar de
tudo, comeu pouco, Magalhães largamente. Entendia que lhe cumpria pagar a ceia;
mas o amigo não consentiu nisso.
— Olha,
Magalhães, disse Oliveira ao despedir-se dele. A minha felicidade está nas tuas mãos; és capaz de dar
conta dela?
— Não se
devem prometer coisas tais; o que eu te afirmo é que não pouparei esforços.
— E pensas
que serei feliz?
— Quantas
vezes queres que to diga?
— Adeus.
— Adeus.
No dia
seguinte, Oliveira mandou dizer a Magalhães que estava um pouco incomodado.
Magalhães foi visitá-lo.
Achou-o de
cama.
— Estou
com alguma febre, disse o advogado; dize isto mesmo ao comendador, a quem eu
prometi de ir lá hoje.
Magalhães
cumpriu o pedido.
Era a
ocasião de se manifestar a dedicação de Magalhães. Não faltou este moço a tão
sagrado dever. Passava com Oliveira a tarde e as noites e só se separava dele para ir, às
vezes, à casa de Vasconcelos, que era isso mesmo o que Oliveira lhe pedia.
— Fala-lhe
sempre de mim, dizia Oliveira.
— Não faço
outra coisa.
E assim
era. Magalhães não cessava de dizer que vinha ou ia para casa de Oliveira, cuja
doença ia tomando um aspecto grave.
— Que
amigo! murmurava consigo D. Mariana.
— O senhor
é um bom coração, dizia Vasconcelos apertando as mãos de Magalhães.
— O senhor
Oliveira deve querer-lhe muito, dizia Cecília.
— Como a
um irmão.
A doença
de Oliveira era grave; durante todo o tempo que durou, não se desmentiu nunca a
dedicação de Magalhães.
Oliveira
admirava-o. Via que o benefício que lhe fizera não caíra em má terra. Grande
foi a sua alegria quando, ao começar a convalescença,
Magalhães lhe pediu duzentos mil-réis, com promessa de os pagar no fim do mês.
— Quanto
quiseres, meu amigo. Tira-os ali da secretária.
— Acredita
que isto me vexa imensamente, disse Magalhães, metendo na algibeira duas notas
de cem mil-réis. Nunca te pedi dinheiro;
agora, menos que nunca, devia pedir-to.
Oliveira
compreendeu o pensamento do amigo.
— Não
sejas tolo; a nossa bolsa é comum.
— Oxalá
que esse belo princípio possa ser realizado literalmente, disse Magalhães
rindo.
Oliveira
não lhe falou nesse dia a respeito de Cecília. Foi o próprio Magalhães que encetou a respeito dela uma
conversa.
— Queres
ouvir uma coisa? disse ele. Apenas saíres, manda-lhe uma carta.
— Por quê?
Crês que...
— Creio
que é a hora do golpe.
— Só para
a semana poderei sair.
— Não
importa, virá a tempo.
Para
compreender bem a situação singular em que se achavam estes personagens todos,
é mister transcrever aqui as palavras com que nessa mesma noite se despediram
Magalhães e Cecília à janela da casa
desta:
— Até
amanhã, disse Magalhães.
— Virás
cedo?
— Venho às
8 horas.
— Não
faltes.
— Queres
que te jure?
— Não
precisa; adeus.
CAPÍTULO VII
Quando
entrou a semana seguinte, já na véspera do dia em que Oliveira se dispunha a sair e visitar o
comendador, recebeu uma carta de Magalhães.
Leu-a com
pasmo:
“Meu
querido amigo, dizia Magalhães; desde ontem tenho a cabeça fora de mim.
Aconteceu-me a maior desgraça que podia cair sobre nós. Com mágoa e vergonha to
anuncio, meu prezadíssimo amigo, a quem tanto devo.
“Prepara o
teu coração para receber o golpe que já me feriu, e por muito que ele te faça sofrer, não sofrerás
mais do que eu já sofri...”
Saltaram
duas lágrimas dos olhos de Oliveira.
Adivinhava
mais ou menos o que seria. Cobrou forças e continuou a leitura:
“Descobri,
meu querido amigo, que Cecília (como direi?) que Cecília me ama! Não imaginas como me fulminou esta
notícia. Que ela não te amasse, como
ambos desejávamos, era já doloroso; mas que se lembrasse de consagrar os seus
afetos ao último homem que ousaria opor-se
ao seu coração, é uma ironia da fatalidade. Não te contarei meu procedimento;
facilmente o adivinharás. Prometi não voltar lá mais.
“Queria ir
eu mesmo comunicar-te isto; mas não ouso contemplar a tua dor, nem te quero dar
o espetáculo da minha.
“Adeus,
Oliveira. Se a fatalidade ainda consentir que nos vejamos (impossível!), até um dia; se não... Adeus!”
Adivinha o
leitor o golpe que esta carta descarregou no coração de Oliveira. Mas é nas
grandes crises que o espírito do homem se mostra grande. A dor do amante superada pela dor do
amigo. O final da carta de Magalhães aludia vagamente a um suicídio; Oliveira
deu-se pressa em ir impedir esse ato de
nobre abnegação. Demais, que coração tinha ele, a quem confiasse todos os seus
desesperos?
Vestiu-se
apressadamente e correu à casa de Magalhães.
Disseram-lhe
que não estava em casa.
Oliveira
ia subindo:
— Perdão,
disse o criado; eu tenho ordem de não deixar subir ninguém.
— Razão
demais para eu subir, respondeu Oliveira, afastando o criado.
— Mas...
— Trata-se
de uma grande desgraça!
E subiu
apressadamente a escada.
Na sala,
não havia ninguém. Oliveira entrou afoitamente no gabinete. Achou Magalhães
sentado à secretária inutilizando alguns papéis.
Perto dele
havia um copo com um líquido vermelho.
—
Oliveira! exclamou ele, quando o viu entrar.
— Sim,
Oliveira, que vem salvar a tua vida, e dizer-te quanto és grande!
—
Salvar-me a vida? murmurou Magalhães; quem te disse que eu?...
— Tu, na
tua carta, respondeu Oliveira. Veneno! continuou ele, vendo o copo. Oh! nunca!
E despejou
o copo na escarradeira.
Magalhães
parecia atônito.
— Eia!
disse Oliveira; dá cá um braço! Este amor infeliz foi ainda um lance de
felicidade, porque conheci bem que coração de ouro é esse que te bate no peito.
Magalhães
estava de pé; caíram nos braços um do outro. O abraço comoveu Oliveira, que só então deu largas à
sua dor. O amigo consolou-o como pôde.
— Bem,
disse Oliveira, tu que foste causa indireta da minha desgraça, deves ser agora
o remédio que me há de curar. Sê eternamente meu amigo.
Magalhães
suspirou.
—
Eternamente! disse ele.
— Sim.
— Minha
vida é curta, Oliveira; eu devo morrer; se não for hoje, sê- lo-á amanhã.
— Mas isso
é uma loucura.
— Não é:
eu não te disse tudo na carta. Falei-te do amor que Cecília me tem; não te
falei do amor que lhe tenho eu, amor que me nasceu sem eu pensar. Brinquei com fogo, queimei-me.
Oliveira
curvou a cabeça.
Houve um
longo silêncio entre os dois amigos.
Ao cabo de
um longo quarto de hora, Oliveira ergueu os olhos vermelhos de lágrimas e disse
a Magalhães, estendendo-lhe a mão:
— Sê
feliz, que o mereces; não tens culpa disto. Procedeste honradamente; compreendo
que era difícil estar ao pé dela sem sentir o fogo da paixão. Casa-te com Cecília, pois
que se amam, e fica certo de que serei
sempre o mesmo amigo.
— Oh! tu
és imenso!
Magalhães
não ajuntou nenhum substantivo a este adjetivo. Não nos é dado perscrutar o seu pensamento interior.
Caíram os dois amigos nos braços um do
outro com grandes exclamações e protestos.
Uma hora
depois de ali haver entrado, saía Oliveira triste mas consolado.
— Perdi um
amor, dizia ele consigo, mas ganhei um verdadeiro amigo, que já o era antes.
Magalhães
veio logo atrás dele.
—
Oliveira, disse ele, passaremos o dia juntos; receio que faças alguma loucura.
— Não! o
que me ampara nesta queda és tu.
— Não
importa; passaremos o dia juntos.
Assim
aconteceu.
Neste dia,
não foi Magalhães à casa do comendador.
No dia
seguinte, apenas lá apareceu, disse-lhe Cecília:
— Estou
zangada contigo; por que não vieste ontem?
— Tive de
sair da cidade em serviço público e por lá fiquei a noite.
— Como
passaste?
— Bem.
Seis
semanas depois uniam eles os seus destinos. Oliveira não compareceu à festa com grande admiração de
Vasconcelos e de D. Mariana, que não compreendiam essa indiferença da parte de
um amigo.
Nunca
houve a menor sombra de dúvida entre Magalhães e Oliveira.
Foram
amigos até à morte, posto que Oliveira não freqüentasse a casa de Magalhães.
---
Nota:
Texto-fonte: Publicado
originalmente em Jornal das
Famílias, 1871. Disponível digitalmente no site: Domínio Público
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