Mostrando postagens com marcador Assunto para um Conto. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Assunto para um Conto. Mostrar todas as postagens

domingo, 31 de março de 2013

Artur de Azevedo: "Assunto para um Conto"


ASSUNTO PARA UM CONTO


Como sou um contador de histórias, e tenho que inventar um conto por semana, sendo, aliás, menos infeliz que Scherazada, porque o público é um sultão Shariar menos exigente e menos sanguinário que o das  Mil e Urna Noites,  sou constantemente abordado por indivíduos que me oferecem assuntos, e aos quais não dou atenção, porque eles em geral não têm uma idéia aproveitável.

Entre esses indivíduos há um funcionário aposentado, que na sua roda é tido por espirituoso, o qual, todas as vezes que me  encontra, obriga-me a parar, diz-me, invariavelmente, que estou ficando muito preguiçoso, e, com um ar de proteção, o ar de um Mecenas desejoso de prestar um serviço que aliás não lhe foi pedido, conclui, também invariavelmente:

- Deixe estar, que tenho um magnífico assunto para você escrever um conto! Qualquer dia destes, quando eu estiver de maré, lá lh'o mandarei.

Há dias, tomando o bonde para ir ao Leme espairecer as idéias, sentei-me por acaso ao lado do meu  Mecenas, que na forma do costume  começou por invectivar  a minha  preguiça, e prosseguiu assim:

- Creio que já lhe disse que tenho um assunto para o amiguinho escrever um conto...

- Já m'o disse mais de vinte vezes!

- Qualquer dia lá lh'o mandarei.

- Não!  Há de ser agora! O senhor tem me prometido esse assunto um rol de vezes, e não cumpre a sua promessa. Nós vamos a Copacabana, estamos ao lado um do outro, temos multo tempo... Venha o assunto!...

- Não; agora não!

- Pois há de ser agora, ou então convenço-me de que tal assunto não existe, e o senhor mentiu todas as vezes que m'o prometeu!

- Ora essa!

- Sim, que o senhor tem feito como aquele cidadão que prometia ao Eduardo Garrido, todas as  vezes  que  o  encontrava,  um  calembour  para   ser encaixado   na  primeira  peça  que  ele escrevesse. Até hoje o Garrido espera pelo calembour!

- Eu tenho o assunto do conto, explicou o Mecenas, mas queria escrevê-lo...

- Para quê? Basta que m'o exponha verbalmente.

- Então lá vai: é a história de uma herança falsa, um sujeito residente na Espanha escreve a outro sujeito residente no Rio de Janeiro uma carta dizendo que morreu lá um homem podre de   rico,   chamado,   por   exemplo,   D.   Ramon,   e   que   esse   homem   não   deixou   herdeiros  conhecidos: a herança foi toda recolhida pela nação; mas o tal sujeito residente na Espanha, que é um finório, manda dizer ao tal sujeito residente no Rio de Janeiro, que é um simplório, que existem aqui herdeiros, cujos nomes ele não revelará ao simplório sem que este mande pelo correio tantas mil pesetas. O simplório manda-lhe o dinheiro, e fica eternamente à espera dos nomes dos herdeiros. - Que tal?

- Muito bom!

- Você não acha aproveitável este assunto?

- Acho-o magnífico, interessantíssimo, espirituoso! Tanto assim que vou escrever o conto e publicá-lo no próximo número d'O Século!

- Ora, ainda bem! Quando lhe faltar assunto, venha bater-me à porta: o que não me falta é imaginação!

- Muito obrigado; não me despeço do favor.

Como vê o leitor, aproveitei o assunto do imaginoso Mecenas.


---
Nota:
Texto-fonte: Arthur Azevedo: Contos Diversos. Data não identificada