VESTIDA DE PRETO
Tanto
andam agora preocupados em definir o conto que não sei bem se o que vou contar
é conto ou não, sei que é verdade. Minha impressão é que tenho amado sempre...
Depois
do amor grande por mim que me brotou aos três anos e durou até os cinco mais ou
menos, logo o meu amor se dirigiu para uma espécie de prima longínqua que
frequentava a nossa casa. Como se vê, jamais sofri do complexo de Édipo, graças
a Deus. Toda a minha vida, mamãe e eu fomos muito bons amigos, sem nada de
amores perigosos.
Maria
foi o meu primeiro amor. Não havia nada entre nós, está claro, ela como eu nos
seus cinco anos apenas, mas não sei que divina melancolia nos tomava, se acaso
nos achávamos juntos e sozinhos. A voz baixava de tom, e principalmente as
palavras é que se tornavam mais raras, muito simples. Uma ternura imensa, firme
e reconhecida, não exigindo nenhum gesto. Aquilo aliás durava pouco, porque
logo a criançada chegava. Mas tínhamos então uma raiva impensada dos manos e
dos primos, sempre exteriorizada em palavras ou modos de irritação. Amor apenas
sensível naquele instinto de estarmos sós.
E
só bem mais tarde, já pelos nove ou dez anos, é que lhe dei nosso único beijo,
foi maravilhoso. Se a criançada estava toda junta naquela casa sem jardim da
Tia Velha, era fatal brincarmos de família, porque assim Tia Velha evitava
correrias e estragos. Brinquedo aliás que nos interessava muito, apesar da
idade já avançada para ele. Mas é que na casa de Tia Velha tinha muitos
quartos, de forma que casávamos rápido, só de boca, sem nenhum daqueles
cerimoniais de mentira que dantes nos interessavam tanto, e cada par fugia
logo, indo viver no seu quarto. Os melhores interesses infantis do brinquedo, fazer
comidinha, amamentar bonecas, pagar visita, isso nós deixávamos com
generosidade apressada para os menores. Íamos para os nossos quartos e
ficávamos vivendo lá. O que os outros faziam, não sei. Eu, isto é, eu com
Maria, não fazíamos nada. Eu adorava principalmente era ficar assim sozinho com
ela, sabendo várias safadezas já mas sem tentar nenhuma. Havia, não havia não,
mas sempre como que havia um perigo iminente que ajuntava o seu crime à
intimidade daquela solidão. Era suavíssimo e assustador.
Maria
fez uns gestos, disse algumas palavras. Era o aniversário de alguém, não lembro
mais, o quarto em que estávamos fora convertido em dispensa, cômodas e armários
cheinhos de pratos de doces para o chá que vinha logo. Mas quem se lembrasse de
tocar naqueles doces, no geral secos, fáceis de disfarçar qualquer roubo!
estávamos
longe disso. O que nos deliciava era mesmo a grave solidão.
Nisto
os olhos de Maria caíram sobre o travesseiro sem fronha que estava sobre uma
cesta de roupa suja a um canto. E a minha esposa teve uma invenção que eu
também estava longe de não ter. Desde a entrada no quarto eu concentrara todos
os meus instintos na existência daquele travesseiro, o travesseiro cresceu como
um danado dentro de mim e virou crime. Crime não, “pecado” que é como se dizia
naqueles tempos cristãos... E por causa disto eu conseguira não pensar até ali,
no travesseiro.
–
Já é tarde, vamos dormir. – Maria falou.
Fiquei
estarrecido, olhando com uns fabulosos olhos de imploração para o travesseiro
quentinho, mas quem disse travesseiro ter piedade de mim. Maria, essa estava
simples demais pra me olhar e surpreender os efeitos do convite: olhou em torno
e afinal, vasculhando na cesta de roupa suja, tirou de lá uma toalha de banho
muito quentinha que estendeu sobre o assoalho. Pôs o travesseiro no lugar da
cabeceira, cerrou as venezianas da janela sobre a tarde, e depois deitou,
arranjando o vestido pra não amassar.
Mas
eu é que nunca havia de pôr a cabeça naquele restico de travesseiro que ela
deixou pra mim, me dando as costas. Restinho sim, apesar do travesseiro ser
grande. Mas imaginem numa cabeleira explodindo, os famosos cabelos assustados
de Maria, citação obrigatória e orgulho de família. Tia Velha, muito ciumenta
por causa duma neta preferida que ela imaginava deusa, era a única a pôr
defeito nos cabelos de Maria.
–
Você não vem dormir também? – ela perguntou com fragor, interrompendo o meu
silêncio trágico.
–
Já vou, – que eu disse – estou conferindo a conta do armazém.
Fui
me aproximando incomparavelmente sem vontade, sentei no chão tomando cuidado em
sequer tocar no vestido, puxa! também o vestido dela estava completamente
assustado, que dificuldade! Pus a cara no travesseiro sem a menor intenção de.
Mas os cabelos de Maria, assim era pior, tocavam de leve no meu nariz, eu podia
espirrar, marido não espirra. Senti, pressenti que espirrar seria muito
ridículo, havia de ser um espirrão enorme, os outros escutavam lá da
sala-de-visita longínqua, e daí é que o nosso segredo se desvendava todinho.
Fui
afundando o rosto naquela cabeleira e veio a noite, senão os cabelos (mas juro
que eram cabelos macios) me machucavam os olhos. Depois que não vi nada, ficou
fácil continuar enterrando a cara, a cara toda, a alma, a vida, naqueles
cabelos, que maravilha! até que o meu nariz tocou num pescocinho roliço. Então
fui empurrando os meus lábios, tinha uns bonitos lábios grossos, nem eram
lábios, era beiço, minha boca foi ficando encanudada até que encontrou o
pescocinho roliço. Será que ela dorme de verdade?... Me ajeitei muito
sem-cerimônia, mulherzinha! e então beijei. Quem falou que este mundo é ruim!
só recordar... Beijei Maria, rapazes! eu nem sabia beijar, está claro, só
beijava mamãe, boca fazendo bulha, contato sem nenhum valor sensual.
Maria,
só um leve entregar-se, uma levíssima inclinação pra trás me fez sentir que
Maria estava comigo em nosso amor. Nada mais houve. Não, nada mais houve.
Durasse
aquilo uma noite grande, nada mais haveria porque é engraçado como a perfeição
fixa a gente. O beijo me deixara completamente puro, sem minhas curiosidades
nem desejos de mais nada, adeus pecado e adeus escuridão! Se fizera em meu
cérebro uma enorme luz branca, meu ombro bem que doía no chão, mas a luz era
violentamente branca, proibindo pensar, imaginar, agir. Beijando.
Tia
Velha, nunca eu gostei de Tia Velha, abriu a porta com um espantoso barulho.
Percebi muito bem, pelos olhos dela, que o que estávamos fazendo era
completamente feio.
–
Levantem!... Vou contar pra sua mãe, Juca!
Mas
eu, levantando com a lealdade mais cínica deste mundo:
–
Tia Velha me dá um doce?
Tia
Velha – eu sempre detestei Tia Velha, o tipo da bondade Berlitz, injusta, sem
método – pois Tia Velha teve a malvadeza de escorrer por mim todo um olhar que
só alguns anos mais tarde pude compreender inteiramente. Naquele instante, eu
estava só pensando em disfarçar, fingindo uma inocência que poucos segundos
antes era real.
–
Vamos! saiam do quarto!
Fomos
saindo muito mudos, numa bruta vergonha, acompanhados de Tia Velha e os pratos
que ela viera buscar para a mesa de chá.
O
estranhíssimo é que principiou nesse acordar à força provocado por Tia Velha,
uma indiferença inexplicável de Maria por mim. Mais que indiferença, frieza
viva, quase antipatia. Nesse mesmo chá inda achou jeito de me maltratar diante
de todos, fiquei zonzo.
Dez,
treze, quatorze anos... Quinze anos. Foi então o insulto que julguei
definitivo. Eu estava fazendo um ginásio sem gosto, muito arrastado, cheio de
revoltas íntimas, detestava estudar. Só no desenho e nas composições de
português tirava as melhores notas. Vivia nisso: dez nestas matérias, um, zero
em todas as outras. E todos os anos era aquela já esperada fatalidade: uma,
duas bombas (principalmente em matemáticas) que eu tomava apenas o cuidado de
apagar nos exames de segunda época.
Gostar,
eu continuava gostando muito de Maria, cada vez mais, conscientemente agora.
Mas tinha uma quase certeza que ela não podia gostar de mim, quem gostava de
mim!... Minha mãe... Sim, mamãe gostava de mim, mas naquele tempo eu chegava a
imaginar que era só por obrigação. Papai, esse foi sempre insuportável, incapaz
duma carícia. Como incapaz de uma repreensão também. Nem mesmo comigo, a tara
da família, ele jamais ralhou. Mas isto é caso pra outro dia. O certo é que,
decidido em minha desesperada revolta contra o mundo que me rodeava, sentindo
um orgulho de mim que jamais buscava esclarecer, tão absurdo o pressentia, o
certo é que eu já principiava me aceitando por um caso perdido, que não
adiantava melhorar.
Esse
ano até fora uma bomba só. Eu entrava da aula do professor particular, quando
enxerguei a saparia na varanda e Maria entre os demais. Passei bastante
encabulado, todos em férias, e os livros que eu trazia na mão me denunciando,
lembrando a bomba, me achincalhando em minha imperfeição de caso perdido.
Esbocei um gesto falsamente alegre de bom-dia, e fui no escritório pegado,
esconder os livros na escrivaninha de meu pai. Ia já voltar para o meio de
todos, mas Matilde, a peste, a implicante, a deusa estúpida que Tia Velha perdia
com suas preferências:
–
Passou seu namorado, Maria.
–
Não caso com bombeado. – ela respondeu imediato, numa voz tão feia, mas tão
feia, que parei estarrecido. Era a decisão final, não tinha dúvida nenhuma.
Maria não gostava mais de mim. Bobo do assim parado, sem fazer um gesto, mal
podendo respirar.
Aliás
um caso recente vinha se ajuntar ao insulto pra decidir de minha sorte. Nós
seríamos até pobretões, comparando com a família de Maria, gente que até
viajava na Europa. Pois pouco antes, os pais dela tinham feito um papel bem
indecente, se opondo ao casamento duma filha com um rapaz diz-que pobre mas
ótimo. Houvera rompimento de amizades, malestar na parentagem toda, o caso
virara escândalo mastigado e remastigado nos comentários de hora de jantar.
Tudo por causa do dinheiro.
Se
eu insistisse em gostar de Maria, casar não casava mesmo, que a família dela
não havia de me querer. Me passou pela cabeça comprar um bilhete de loteria.
“Não caso com bombeado”... Fui abraçando os livros de mansinho, acariciei-os
junto ao rosto, pousei a minha boca numa capa feia, suja de pó suado, retirei a
boca sem desgosto. Naquele instante eu não sabia, hoje sei: era o segundo beijo
que eu dava em Maria, último beijo, beijo de despedida, que o cheiro
desagradável do papelão confirmou. Estava tudo acabado entre nós dois.
Não
tive mais coragem pra voltar à varanda e conversar com... os outros. Estava com
uma raiva desprezadora de todos, principalmente de Matilde. Não, me parecia que
já não tinha raiva de ninguém, não valia a pena, nem de Matilde, o insulto
partira dela, fora por causa dela, mas eu não tinha raiva dela não, só
tristeza, só vazio, não sei... creio que uma vontade de ajoelhar. Ajoelhar sem
mais nada, ajoelhar ali junto da escrivaninha e ficar assim, ajoelhar. Afinal
das contas eu era um perdido mesmo, Maria tinha razão, tinha razão, tinha
razão, oh que tristeza...
Foi
o fim? Agora é que vem o mais esquisito de tudo, ajuntando anos pulados. Acho
que até não consigo contar bem claro tudo o que sucedeu. Vamos por ordem: pus
tal firmeza em não amar Maria mais, que nem meus pensamentos me traíram. De
resto a mocidade raiava e eu tinha tudo a aprender. Foi espantoso o que se
passou em mim. Sem abandonar meu jeito de “perdido”, o cultivando mesmo,
ginásio acabado, eu principiara gostando de estudar. Me batera, súbito, aquela
vontade irritada de saber, me tornara estudiosíssimo. Era mesmo uma impaciência
raivosa, que me fazia devorar bibliotecas, sem nenhuma orientação. Mas
brilhava, fazia conferências empoladas em sociedadinhas de rapazes, tinha
ideias que assustavam todo o mundo. E todos principiavam maldando que eu era
muito inteligente mas perigoso.
Maria,
por seu lado, parecia uma doida. Namorava com Deus e todo o mundo, aos vinte
anos fica noiva de um rapaz bastante rico, noivado que durou três meses e se desfez
de repente, pra dias depois ela ficar noiva de outro, um diplomata riquíssimo,
casar em duas semanas com alegria desmedida, rindo muito no altar e partir em
busca duma embaixada europeia, com o secretário chique, seu marido.
Às
vezes meio tonto com estes acontecimentos fortes, acompanhados meio de longe,
eu me recordava do passado, mas era só pra sorrir da nossa infantilidade e
devorar numa tarde mais um livro incompreensível de filosofia. De mais a mais,
havia a Rose pra de-noite, e uma linda namoradinha oficial, a Violeta. Meus
amigos me chamavam de “jardineiro”, e eu punha na coincidência daquelas duas
flores uma força de destinação fatalizada. Tamanha mesmo que topando numa
livraria com The Gardener de Tagore, comprei o livro e comecei estudando o
inglês com loucura. Mário de Andrade conta num dos seus livros que estudou o
alemão por causa duma emboaba tordilha... eu também: meu inglês nasceu duma
Violeta e duma Rose.
Não,
nasceu de Maria. Foi quando uns cinco anos depois, Maria estava pra voltar pela
primeira vez ao Brasil, a mãe dela, queixosa de tamanha ausência, conversando
com mamãe na minha frente, arrancou naquele seu jeito de gorda desabrida:
–
Pois é! Maria gostou tanto de você, você não quis!... e agora ela vive longe de
nós. Pela terceira vez fiquei estarrecido neste conto. Percebi tudo num tiro de
canhão.
Percebi
ela doidejando, noivando com um, casando com outro, se atordoando com dinheiro
e brilho. Percebi que eu fora uma besta, sim, agora que principiava sendo
alguém, estudando por mim fora dos ginásios, vibrando em versos que muita gente
já considerava. E percebi horrorizado, que Rose! nem Violeta, nem nada! era
Maria que eu amava como louco! Maria é que eu amara sempre, como louco: oh como
eu vinha sofrendo a vida inteira, desgraçadíssimo, aprendendo a vencer só de
raiva, me impondo ao mundo por despique, me superiorizando em mim só por
vingança de desesperado. Como é que eu pudera me imaginar feliz, pior: ser
feliz, sofrendo daquele jeito! Eu? eu não! era Maria, era exclusivamente Maria
toda aquela superioridade que estava aparecendo em mim... E tudo aquilo era uma
desgraça muito cachorra mesmo. Pois não andavam falando muito de Maria?
Contavam que pintava o sete, ficara célebre com as extravagâncias e aventuras.
Estivera pouco antes às portas do divórcio, com um caso escandaloso por demais,
com um pintor de nomeada que só pintava efeitos de luz. Maria falada, Maria
bêbada, Maria passando de mão em mão, Maria pintada nua...
Se
dera como que uma transposição de destinos... E tive um pensamento que ao menos
me salvou no instante: se o que tinha de útil agora em mim era Maria, se ela
estava se transformando no Juca imperfeitíssimo que eu fora, se eu era apenas
uma projeção dela, como ela agora apenas uma projeção de mim, se nos trocáramos
por um estúpido engano de amor: mas ao menos que eu ficasse bem ruim, mas bem
ruim mesmo outra vez, pra me igualar a ela de novo. Foi a razão da briga com
Violeta, impiedosa, e a farra dessa noite – bebedeira tamanha que acabei
ficando desacordado, numa série de vertigens, com médico, escândalo, e choro
largo de mamãe com minha irmã.
Bom,
tinha que visitar Maria, está claro, éramos “gente grande” agora. Quando soube
que ela devia ir a um banquete, pensei comigo: “ótimo, vou hoje logo depois de
jantar, não encontro ela e deixo o cartão”. Mas fui cedo demais. Cheguei na
casa dos pais dela, seriam nove horas, todos aqueles requififes de gente
ricaça, criado que leva cartão numa salva de prata etc. Os da casa estavam
ainda jantando. Me introduziram na saletinha da esquerda, uma espécie de
luís-quinze muito sem-vergonha, dourado por inteiro, dando pro hol central. Que
fizesse o favor de esperar, já vinham.
Contemplando
a gravura cor-de-rosa, senti de supetão que tinha mais alguém na saleta, virei.
Maria estava na porta, olhando pra mim, se rindo, toda vestida de preto. Olhem:
eu sei que a gente exagera em amor, não insisto. Mas se eu já tive a sensação
da vontade de Deus, foi ver Maria assim, toda de preto vestida, fantasticamente
mulher. Meu corpo soluçou todinho e tornei a ficar estarrecido.
–
Ao menos diga boa-noite, Juca...
“Boa-noite,
Maria, eu vou-me embora...” meu desejo era fugir, era ficar e ela ficar mas,
sim, sem que nos tocássemos sequer. Eu sei, eu juro que sei que ela estava se
entregando a mim, me prometendo tudo, me cedendo tudo quanto eu queria, naquele
se deixar olhar, sorrindo leve, mãos unidas caindo na frente do corpo, toda
vestida de preto. Um segundo, me passou na visão devorá-la numa hora
estilhaçada de quarto de hotel, foi horrível. Porém, não havia dúvida: Maria
despertava em mim os instintos da perfeição. Balbuciei afinal um boa-noite
muito indiferente, e as vozes amontoadas vinham do hol, dos outros que
chegavam.
Foi
este o primeiro dos quatro amores eternos que fazem de minha vida uma grave
condensação interior. Sou falsamente um solitário. Quatro amores me acompanham,
cuidam de mim, vêm conversar comigo. Nunca mais vi Maria, que ficou pelas
Europas, divorciada afinal, hoje dizem que vivendo com um austríaco interessado
em feiras internacionais. Um aventureiro qualquer. Mas dentro de mim, Maria...
bom: acho que vou falar banalidade.
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Fonte:
Fonte:
Mário
de Andrade: Contos Novos. Projeto Livro Livre. São Paulo, 2016.
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