A CHUVA QUE NÃO CESSA É QUE O PREPARA
A chuva que não
cessa é que o prepara
para a viscosa
lama que há nas covas,
enquanto vai, dos
montes, às corcovas,
em busca de uma
vida estranha e rara,
estimando os
pardais e até a cara
imagem que
descobre em coisas novas,
qual um peixe que
põe as suas ovas
nas quietas águas
de uma enseada clara,
e assim segue ele
a crer-se invicto e forte,
no caminho do sul,
buscando o norte,
muito certo de
tudo, mas no engano
em que vão todos,
até revelar-se
que a cova vil é a
última catarse
desse mar de
paixões, o ser humano.
UIVAM LOBOS ATÉ QUE CHEGUE A AURORA
Uivam lobos até
que chegue a aurora,
entre árvores
sombrias, em ignotos
cimos selvagens,
nos rincões remotos,
mais para lá, onde
a saudade mora.
Enquanto a noite,
entre soluços, chora,
os maltrapilhos
fogem. Vão, devotos,
cheios de medo, a
murmurar seus votos
de que não sofram
nenhum mal nessa hora.
Mude-se o olhar
agora para as ruas
sem lobos pelas
noites, mas de cruas
explosões de uma
raiva que assassina.
Eis aqui a
colheita de perigos:
são todos a fugir,
não só mendigos.
Mais que o lobo, é
o homem que extermina.
AS NEGRAS TUMBAS DE HOJE SÃO AS LEIRAS
As negras tumbas
de hoje são as leiras
que hão de
mostrar-se verdes amanhã.
O dia estende a
mão à sua irmã,
a noite, em seu
viajar de asas ligeiras.
As palavras
noturnas, verdadeiras,
já não o serão
mais pela manhã.
Quem faz não fará
mais, é coisa vã,
fechada a porta
muda nas soleiras.
Maior do que os
caprichos de alguns poucos
será o anseio dos
ouvidos moucos,
cansados de
esperar em dias idos.
Tal como existe a
noite em cada cova,
sempre haverá a
aurora, rosa e nova,
germinando nos
olhos dos caídos.
NÃO PERGUNTEIS AOS QUE ANDAM NO CAMINHO
Não pergunteis aos
que andam no caminho
por que se foram
cedo de suas casas
e andam agora a
suportar as brasas
de um martírio
cruel, rude e mesquinho.
Antes deveis
deixar de lado o vinho
e olhar bem dentro
dessas almas rasas,
que se arrastam na
rua, aves sem asas,
à procura de um
pouco de carinho.
Desde a aurora, a
chorar. Até a noite
não há, para
ajudá-las, quem se afoite
e infortunadas
vão, tão infelizes.
Eis aí quanto
horror há nessas vidas,
a matar-se entre
si, enlouquecidas,
reabrindo as
fechadas cicatrizes.
ESSE PASSAR DO TEMPO, ESSA MISÉRIA
Esse passar do
tempo, essa miséria
dos dias
submergidos, essas horas
que escorrem
devagar, essas auroras,
o amanhecer
tardio, essa matéria
feita de lodo e
espuma, essa bactéria
no mais fundo do
estômago, essas floras
de flores más,
fanadas e inodoras,
o sangue derramado
pela artéria,
todas as coisas
que o caruncho come,
mais o mal dentro
do homem, qual a fome,
vertendo-se nas
taças do ódio fero,
revelam cada um
vivendo um drama,
desde que o pare a
mãe em sua cama
até que veja em si
não mais que um zero.
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Fonte:
Revista Brasileira: Fase VII - Outubro-Novembro-Dezembro 2008 - Ano XV - Nº 57
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