quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Hermes Fontes: "5 Poemas"

LUAR 

Noite ou dia?! Ilusão... É noite. A Natureza
tem um pudor de noiva, ao beijo do noivado:
sonha, velada por um véu diáfano, e presa
de um sonho branco, um sonho alegre, iluminado.

A Lua entra por toda a parte, clara, acesa...
Desabrocham jasmins de luz, de lado a lado...
E o luar – vê bem: dirás que é o óleo da Tristeza
diluído pelo céu... pela terra entornado...

E há nos raios da Lua – a um tempo, hastis e lanças,
corações a sangrar feridos do infortúnio,
flores sentimentais do jardim das lembranças...

A ave do Sentimento as asas bate e espalma...
e, enquanto se abre aos céus a flor do Plenilúnio,
abre-se, dentro em nós, o plenilúnio da Alma...



IN EXELSIS! 

Glória a Ti, que és perfeita em quanto, humanamente,
possa alguém atingir à perfeição moral!
Glória! Ao desabrochar dessa alma redolente,
o incenso do meu culto, o hino do meu ritual!

Glória a Ti, só a Ti, pois é de Ti, somente,
ó Expressão Natural do Sobrenatural,
e é só em Ti que encontro a invisível semente
com que, assim, frutifico em pensamento e ideal!

Glória, em Ti, alma-irmã! Milagre que conferes
a todos os que atrais e a mim, que repudias,
a alta revelação da maravilha que és!

Glória, em Ti, ao Amor! Glória! em Ti, às mulheres!
A Ti, que reduziste a glória dos meus dias
a degrau do teu Sólio, a escrínio dos teus pés!...



ÚLTIMO SONHO 
A Mário Pederneiras

Tanto esforço perdido em ser perfeito,
em ser superno, tanto esforço vão!
Sonho efêmero! acordo, e em torno ao leito,
a mesma inércia, a mesma escuridão!

Vejo, através das sombras, um defeito
em cada cousa, e as cousas todas são
para os meus olhos rútilos de Eleito
prodígios da impureza e imperfeição.

Fico-me, noites adentro, insone e mudo,
pensando em Ti... que dormes esquecida
do teu amargurado Sonhador...

Ah! mas, ao menos, se imperfeito é tudo,
salve-se, às mil imperfeições da Vida,
a humilde perfeição do meu Amor!



MARCHA-FÚNEBRE

Manda apagar a lâmpada. Estou triste
e quero ficar só com a minha Tristeza.
O Plenilúnio me abençoa e assiste:
- é uma lâmpada acesa.

Abençoa-me, vem até mim, tranquiliza
a minha inquietação.
E, macia, de plumas, indecisa,
toca-me, entrou-me o quarto aberto, a viração.

Se eu pudesse fechar os olhos, por instantes,
por séculos, ou pela eternidade!... Há dias
tenho a perseguição de sonhos delirantes
e fantasmagorias...

- Manda apagar a lâmpada. Prefiro
a penumbra... A penumbra é menos má.
Amo a ronda espectral dos mistérios, ao giro
das coisas redivivas do Sabá.

Mora-me em frente uma vizinha douda.
Tem por só convivente um velho piano.
E, à meia-noite, quando a rua toda
dorme o primeiro sono, honesto e humano,

quando eu mesmo, que sou essa coruja inata
no homem que envelheceu precocemente, estou
durmo-não-durmo – soa o adágio da Sonata,
o Miserere... Escuto – é a Doida que acordou.

Ontem, à meia-noite, eu contava escutá-la.
Meia-noite... hora e meia... E o piano, sempre mudo!
Quis ver. Olhei em frente: estava acesa a sala,
dois círios, um caixão, muita gente... E era tudo.

E, agora, a insônia. Estou sem calma. Abro a janela,
fecho-a, de novo; torno ao leito, enfim.
Eu nunca vi a Doida, e estou estou pensando nela!
Talvez pensasse aquela doida em mim...

Já no entre-sono, o meu espírito parece
velar meu próprio corpo. Ardem dois círios.
Sinto em redor de mim pálidas mãos em prece
e um perfume augural de rosas e de lírios.

E o sonho faz-me ver, na ilusão agoureira,
meu próprio funeral:
Ouço perfeitamente, à minha cabeceira,
a voz do órgão-maior enchendo a catedral!...

Minha vizinha doida ressuscita
e com aquelas mãos tuberculosas
senta-se ao piano e ensaia uma canção maldita...
Dá-me espinhos, com isso, e me recolhe as rosas...

E torna ao velho piano. E soluça e se expande.
Agora, é a Marcha-Fúnebre... Faz crer
uma reincarnação de Georges Sand...
Chopin desperta em mim o que ia a adormecer...

Pobre vizinha! Estás bem viva. E antes morresses...
Ardes de amor por mim, ardo por outra. É a vida.
Deve ser meia-noite, ou mais. Que uivos são esses
que vêm lá dos confins da Sombra adormecida?

- Manda acender a lâmpada. Depressa!
A lua se apagou, há luto no jardim.
E a mal-assombração deste sonho começa
a infundir um pavor de realidade em mim.

Aqueles uivos, longe... aquela voz tão perto...
É a Marcha que Chopin fez para os meus ouvidos,
cheia dos uivos que enchem o deserto,
uivos imemoriais dos mundos esquecidos...

… São as lamentações de almas em abandono
que, na febre da sua exaltação,
velam o próprio corpo, alam o próprio sono,
fazem quarto de morte ao próprio coração...



MÃE 

Para dizer quem foi a minha mãe, não acho
Uma palavra própria, um pensamento bom
Diógenes — busco-o em vão; falta-me a luz de um facho
— Se acho som, falta a luz; se acho luz, falta o som!

Teu nome — ó minha mãe — tem o sabor de um cacho
De uvas diáfanas, cor de ouro e pérola, com
Polpa de beijos de anjo... ouvi-lo é ouvir um sacho
Merencório, a rezar, no seu eterno tom...

Minha mãe! Minha mãe! Eu não fui qual devera.
Morreste e eu não bebi nos teus lábios de cera
A doçura que as mães, ainda mortas, contêm...

Ao pé de nossas mães — todos nós somos crentes... 
Um filho que tem mãe — tem todos os parentes... 
— E eu não tenho por mim, ó minha mãe, ninguém!

Nenhum comentário:

Postar um comentário