UM HOMEM
De repente
como uma flor
violenta
um homem com uma
bomba à altura do peito
e que chora
convulsivamente
um homem belo
minúsculo
como uma estrela
cadente
e que sangra
como uma estátua
jacente
esmagada sob as
asas do crepúsculo
um homem com uma
bomba
como uma rosa na
boca
negra
surpreendente
e à espera da
festa louca
onde o coração lhe
rebente
um homem de face
aguda
e uma bomba
cega
surda
muda
O POETA EM LISBOA
Quatro horas da
tarde.
O poeta sai de
casa com uma aranha nos cabelos.
Tem febre. Arde.
E a falta de
cigarros faz-lhe os olhos mais belos.
Segue por esta,
por aquela rua
sem pressa de
chegar seja onde for.
Pára. Continua.
E olha a multidão,
suavemente, com horror.
Entra no café.
Abre um livro
fantástico, impossível.
Mas não lê.
Trabalha - numa
música secreta, inaudível.
Pede um cigarro.
Fuma.
Labaredas loucas
saem-lhe da garganta.
Da bruma
espreita-o uma
mulher nua, branca, branca.
Fuma mais. Outra
vez.
E atira um braço
decepado para a mesa.
Não pensa no fim
do mês.
A noite é a sua
única certeza.
Sai de novo para o
mundo.
Fechada à chave a
humanidade janta.
Livre, vagabundo
dói-lhe um sorriso
nos lábios. Canta.
Sonâmbulo,
magnífico
segue de esquina
em esquina com um fantasma ao lado.
Um luar terrífico
vela o seu passo
transtornado.
Seis da madrugada.
A luz do dia tenta
apunhalá-lo de surpresa.
Defende-se à
dentada
da vida
proletária, aristocrática, burguesa.
Febre alta,
violenta
e dois olhos
terríveis, extraordinários, belos.
Fiel, atenta
a aranha leva-o
para a cama arrastado pelos cabelos.
MEMORIAL
As tuas mãos que a
tua mãe cortou
para exemplo duma
cidade inteira
o teu nome que os
teus irmãos gastaram
dia a dia e que
por fim morreu
atravessado na tua
própria garganta
as tuas pernas os
teus cabelos percorridos
rato após rato
tantos anos
durante tanta
alegria que não era tua
os teus olhos
mortos eles também
na primeira
ocasião do teu amante
assim como as
palavras ainda fumegando docemente
sob as pedras de
silêncio que lhes atiraram para cima
o teu sexo os teus
ombros
tudo finalmente
soterrado
para descanso de
todos
- mesmo dos que
estavam ausentes
RESERVADO AO VENENO
Hoje é um dia
reservado ao veneno
e às pequeninas
coisas
teias de aranha
filigranas de cólera
restos de pulmão
onde corre o marfim
é um dia
perfeitamente para cães
alguém deu à
manivela para nascer o sol
circular o mau
hálito esta cinza nos olhos
alguém que não
percebia nada de comércio
lançou no mercado
esta ferrugem
hoje não é a mesma
coisa
que um búzio para
ouvir o coração
não é um dia no
seu eixo
não é para pessoas
é um dia ao nível
do verniz e dos punhais
e esta noite
uma cratera para
boémios
não é uma pátria
não é esta noite
que é uma pátria
é um dia a mais ou
a menos na alma
como chumbo
derretido na garganta
um peixe nos
ouvidos
uma zona de lava
hoje é um dia de
túneis e alçapões de luxo
com sirenes ao
crepúsculo
a trezentos anos
do amor a trezentos da morte
a outro dia como
este do asfalto e do sangue
hoje não é um dia
para fazer a barba
não é um dia para
homens
não é para
palavras
LIBERTAÇÃO
Descerão por
paredes sangrentas
e subirão do
asfalto
ganindo com um prego
na língua
com os pulsos
atados às patas
sobre pulmões
raivosos em barcos de esterco
e não olharão nem
para baixo nem para o alto
mas para a frente
para o horizonte
de fatias vermelhas
e para trás
para os afogados
sem mar sem terra natal
sem paisagens marinhas
cada um com um
buraco em seu peito
esguichando
palavras estridentes
descerão
atravessando gargantas
e subirão pela
espinha a golpes de jejum
descerão
empurrando palavras
transportando-as
ao pescoço como cintos de salvação
abrindo crateras
nas cabeças queridas
e olhos nos olhos
dos aflitos
subirão do asfalto
transparentes e
feridos
com os olhos nas
mãos
a cabeça no sangue
chegarão aos pares
ligados pela boca
com um estandarte
negro seguro nos dentes
e descerão sempre
cada vez mais e cada vez de mais alto
até chegar à orla
do inferno chorarem as últimas lágrimas
e partirem de vez
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