sexta-feira, 9 de outubro de 2015

Trindade Coelho: "Vae Victis!"

VAE VICTIS! 

Não estava ninguém na fonte, quando a Luísa, de cântaro deitado sobre a cabeça, ali chegou. Ninguém. Debaixo do sol risonho, ao murmúrio da água da bica, derivando, viva e clara, de um pedaço de telha partida, naquele socalco de pequeno cabeço em cujo topo, à roda da igreja branca, a aldeia negrejava, parecia tudo adormecido. Verdegavam perto os lameiros; iam viçosos, nos quintais e hortejos, os renques dos legumes, e já nos ramos das árvores, inteiramente vestidos de folha, picavam as primeiras flores.

Quase sem horizonte, porque outros cabeços o fechavam perto, esse recanto onde borbulhava a fonte parecia ali como escondido. Próximo, um ribeiro passava, além de umas paredes baixas, onde as mulheres costumavam lavar.

Mas não vinha dessa banda, àquela hora, o mínimo rumor de vozes, nem se ouvia, como noutros dias, bater a roupa nos lavadouros. Como nas doces aguarelas, uma atitude de êxtase imobilizava ali todas as coisas, tocando-as de uma pontinha de sono - e as coisas, como as crianças, pareciam, sorrindo, deixar-se adormecer...

Tomada do mesmo espasmo, a Luísa quedara-se abstrata junto da bica, esperando que se enchesse o cântaro; - mas agora, ao ruído monótono do fio de água, escoando-se, lentamente, no bojo do barro insaciável, como que lhe acordara nos ouvidos, onde lhe tinha ficado encantada, e com todo o relevo da voz do Tônio, essa pergunta que ele lhe fizera:

- Dás-me um beijo, Luísa?

Estava mesmo a ver o rapaz quando lhe dirigira a inesperada pergunta. Fora no adro, um domingo de tarde. Os homens, em descanso, conversavam de lavouras, sentados por cima do muro; as mulheres tagarelavam em grupos, de cocarinhas no terreiro sagrado; e ela, com outras da sua igualha, chasqueava, à porta da igreja, dos moços que jogavam a barra.

Fingindo uma coisa séria, o Tônio, que entrava no jogo, viera para ela em mangas de camisa, o chapéu deitado para trás, num instante em que lhe não pertencia atirar o ferro. Da violência do exercício, trazia o sangue a espirrar-lhe da pele e muito vivos os olhos azuis.

- Ó Luísa! - dissera-lhe ele chamando-a de parte. - Fazes favor de uma palavra?

Ela fora, na boa fé, e quase sem o pensar. Senão quando, chegando-se como para um segredo, perguntara-lhe com a voz muito quente:

- Dás-me um beijo, Luísa?

Não tivera tempo de lhe responder, nem saberia tampouco; e ele mesmo, chamado para o “tiro” que lhe competia, desandara lesto e sem se voltar, deixando-a, incoerente, a pensar na atrevida pergunta:

- Dás-me um beijo, Luísa?

Já o cântaro ia quase cheio, mas ela nem dava fé. Sempre que podia fechar-se num pensamento, nas suas horas de suave remanso, era naquele pensamento que ela se fechava; e muitas vezes, ao adormecer, a esperança de o prolongar em sonhos fazia-a pegar no sono quase a sorrir. Viera-lhe daí o que parecia às outras melancolia, mas que era para ela um gozo suave - o prazer de estar sozinha, de não ver nem ouvir ninguém, de devanear, ela só, naquele tema sempre constante...

E de tanto que repetia a pergunta em pensamentos, chegara a recear repeti-la alto; e aos seus olhos era assim como um lindo quadro, cheio de luz e realidade, esse querido domingo de tarde, no adro, em que ele, o Tônio, lhe fizera ao ouvido aquela pergunta:

- Dás-me um beijo, Luísa?

Parecia-lhe haver acordado então de um grande sono que durara toda a sua vida passada, de que mal se lembrava agora; e essa tarde no adro, que podia ter sido, para ela, tão indiferente como foram tantas, era agora como a sua primeira hora de existência, - essa tarde em que o Tônio, chegando-lhe os lábios quase ao ouvido, lhe perguntara numa voz muito quente:

- Dás-me um beijo, Luísa?

Parecia-lhe mesmo estar a ouvi-lo: a sua voz como que ficara viva dentro dela, - e esse doce, misterioso ritmo em que se fundira, causava-lhe, de cada vez que o escutava, um encanto novo...

Recolhida, suspensa como num voo, num êxtase de toda a sua vida, outras vezes era ela mesma que a invocava... E de ouvido muito fito, os olhos semicerrados, um arroubo todo espiritual elevando-lhe os seios da alma, aquela voz descia do céu:

- Dás-me um beijo, Luísa?

Voavam-lhe as horas neste enlevo, entre as paredes do seu tear; e o mundo, a felicidade, a alegria, o próprio Deus, residia tudo dentro dela, - na doce, enternecida recordação daquela tarde, no adro, quando o Tônio, sem ela o esperar, lhe fizera ao ouvido essa pergunta:

- Dás-me um beijo, Luísa?

E no entanto, não lho dera então, nem lho daria ainda hoje, esse beijo que lhe pedira o Tônio. Porquê? Nem ela o sabia: mas só de o pensar, as faces purpurejavam- -lhe, e a luz que desde essa tarde a envolvia toda, parece que tinha, de repente, um espasmo de intermitência...

Isso, porém, acontecia muito raras vezes, e quando sucedia era passageiro; pois que, sondada bem no íntimo, dela se pode dizer que vivia apenas, extasiada, de um êxtase da sua memória, e que a sua memória, semelhante a um estado imóvel, nada mais podia refletir do que a cena desse domingo de tarde, no adro, quando o Tônio, sem ela o esperar, viera segredar-lhe mesmo ao ouvido:

- Dás-me um beijo, Luísa?

Tudo o mais era-lhe indiferente na vida, e como que o tinha esquecido; e para as coisas e fatos de ocasião, em que não havia remédio senão reparar, tinha agora uma benevolência quase risonha que repartia também com os outros, e que se convertera, para com os pobres, numa caridade cheia de ternura. Como o tear ficava na casa térrea de entrada, os pedintes era a ela que se dirigiam, uns da porta, outros da janelinha, e alguns havia já a horas certas. Parava de tecer a Luísa, e elevando a voz chamava pela mãe:

- Ó minha mãe! Faça favor de trazer um bocadinho de pão, que está aqui um pobrezinho.

E se a mãe replicava com o perdão - “Dá-lhe o perdão, que não pode ser” - ela mesmo, dali a pouco, ia-se ao pão e cortava-lhe um pedaço, dizendo às vezes que era para ela.

A mãe, que percebera, dissera-lhe a rir de uma dessas vezes:

- Tanto pão! tanto pão, rapariga! Ora aí está porque tens essa cor, que é mesmo da cor do centeio!

Mas era uma esmolinha que dava, e um desejo que satisfazia; - e só ela, afinal, não tinha que pedir nem que desejar! Graças a Deus, o trabalho sobrava-lhe, e não tinha mãos a medir; e quanto a ambições, isso que ela ouvia que todos tinham, não as sentia de casta nenhuma. No entanto, essa mesma felicidade era para ela um fato inconsciente e derivava, sem dar fé, da obsessão deliciosa daquele domingo de tarde, no adro, em que o Tônio lhe dissera ao ouvido:

- Dás-me um beijo, Luísa?

Depois dessa tarde, sem contar as vezes que se salvaram, apenas uma ocasião tinham falado. Quase sem intenção, o Tônio chegara-se à janelinha do tear, e, assomando a cabeça loira entre os dois cacos de manjericos, pusera-se a falar com ela. Tinham conversado um pouco de tudo; primeiro de coisas simples da vida, e por fim, sem bem saberem como, de casamentos: uns que tinham gorado, outros que prometiam fazer-se, a sorte doutros que se tinham feito...

Nesta parte da conversa ainda a viúva interviera, e os três tinham rido o seu bocado. O Tônio andava em dia com os amores de toda a aldeia, e tinha um modo de dizer as coisas, e principalmente de se referir a pessoas, que fazia rir a mãe e a filha.

- E tu, ó Tônio, - dissera a viúva em certo ponto, - diz’ lá tu quem é que derriças?

Como dois floretes muito subtis, que se cruzam sem se tocar, os olhares dos dois, da Luísa mais do Tônio, haviam-se cruzado repentinamente. Ambos notaram isso, e ambos, no íntimo, ficaram como surpreendidos…

- Ora, ti Ana! eu penso lá nessas coisas! - acudiu o rapaz.

E como a Luísa se pusesse a tecer, e o ruído do tear abafasse as palavras, levantou a voz para que o ouvissem:

- Nem quero!

Mas a viúva objetou:

- Olha quem! Não queres! Põe lá que se te saíres a teu pai... - E com intentos de lhe puxar pela língua, perguntou: - Seguro que não botaste no S. João os teus papelinhos, ó Tônio?...

- Ora! - fez logo o rapaz sem ligar importância. - Mas isso toda a gente! - E para arredar alguma pergunta indiscreta, acrescentou: - Aposto que até vossemecê?!

Riu-se a viúva com muita vontade:

- Ai, filho, não! Olha eu! Algum tempo, algum tempo! Mas onde isso vai se bem correr!

E como uns laregos entrassem pela casa dentro, de focinho a rabuscarem o chão, correu a viúva a enxotá-los - “Coch'qui, inimigos! Coch’qui!” - enquanto os olhares do Tônio e da Luísa, rápidos como dois relâmpagos, segunda vez se cruzavam no ar...

- Vou-me que são horas, ti Ana! - disse logo o Tônio. - Até logo. - E não olhando já para a tecedeira, despediu-se também:

- Adeus, Luísa.

…Depois, mais nada. E aquilo mesmo, que podia ter sido, afinal, sem intenção, quase se lhe diluíra a ela da lembrança, - e aí persistira só, num fundo claro de madrepérola e num relevo cada vez mais vivo, aquela cena de domingo de tarde, no adro, quando o Tônio, sem ela o esperar, quebrara, nessa pergunta, o virginal encanto da sua adolescência, - fazendo-a acordar na puberdade:

- Dás-me um beijo, Luísa?

Na fonte, enquanto o cântaro levou a encher-se, não surgira sombra de gente. A mesma sonolência morna adormentava à roda todas as coisas, e só no azul do ar, muito fino, que o brando sol da manhã diluía numa luz suave, passavam, tocados de opala, os pássaros chilreadores. Na superfície do pequeno tanque adjacente, forrado de musgo, onde os animais costumavam beber, o céu espelhava-se límpido, muito fundo, com o ligeiro algodão de uma nuvem quebrando-lhe a um canto a monotonia; e já a água borbulhava do cântaro como em fervura, e a Luísa parecia esquecida, - quando um casal de borboletas brancas, interceptando, num voo sereno, a linha perdida do seu olhar, veio, imperceptivelmente, evocá-la de novo à realidade...

Reparou então que estava cheio o cântaro, e já a transbordar; mas indo a pegar-lhe para se ir embora, viu, de repente, assomar o Tônio num deslado, - como se o pensamento dela o evocara...

Tiveram ambos, naquele momento, o mesmo abalo de viva surpresa, durante o qual se fixaram muito um ao outro, a averiguar se lhes mentiam os olhos; - e com a certeza de que lhes não mentiam, adveio aos dois, no mesmo instante, a sensação entre perturbadora e deliciosa do isolamento em que se encontravam...

Sem refletir, parece que cedendo a um impulso estranho, dirigiu-se o Tônio para a banda da fonte; mas adivinhando nos modos da Luísa a turbação que a enervava, sem também saber a razão os passos hesitaram-lhe...

De repente, como se a cumplicidade do lugar e do silêncio o estimulasse, - e ela, abandonada, parecesse agora provocá-lo - apertou-a nos braços o rapaz; - e colando-lhe na boca os lábios frementes, como se lhe fora a sorver a vida, beijou-a num frenesi.

Ao mesmo tempo, numa vibração de rumor que vai a apagar-se, aquela voz deliciosa do Tônio, tão viva, desde esse domingo, como um canto de rouxinol, parecia agora, quase extinta, fugir e despedir-se da sua memória:

-...“ Dás-me um beijo, Luísa?...”


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Fonte:
Contos Portugueses - Volume I. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014. 

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