“O sol nasce e se põe e
torna ao lugar de onde partiu;
e renascendo aí faz o seu
giro pelo meio-dia
e depois se dobra para o
Norte.”
(Eclesiastes 1-5,6)
O homem carrega sempre dentro de si mitos, mistérios e magias, coisas
tais com tantos nomes que seria chato enumerar. A eternidade do homem é
infinita. Pode ser paradoxal dizer isso, mas, graças à eternidade, podemos
fazer milhares de conjeturas sobre nós mesmos e ainda conviver com toneladas de
mistérios em nossas vidas sem tentar solucioná-los.
Uns tempos atrás, como todo ser humano, andei querendo saber de tudo
sobre todas as coisas. Mergulhei sem método em todas as religiões e filosofias
orientais, ocidentais, daqui e além. Um dia, porém descobri que gastaria várias
vidas para alcançar o Nirvana – cumprir o meu Karma – que não valeria a pena
alcançá-lo nem me transformar num monge eremita, se não me fosse dada a alegria
de dividir tudo com os demais. Não, não vale a pena...
Por mais que a ciência e o misticismo avancem nenhum supera o outro:
normalmente ficam se digladiando, engasgados em teorias sobre a mesma coisa.
Chegamos enfim ao limite institucional de todas as discussões onde, parece, não existe jeito de avançar. Estancamos entre Deus e o Big Bang, figuras tão próximas e tão distantes que remontam a bilhões de anos em espaço e dimensão que só a fé e a teoria podem transitar. Algum ecumênico ao extremo poderia afirmar que, sim, o Universo nasceu de um Big Bang... provocado por Deus!
Escolhi então, com muita
alegria, viver às custas do Nirvana dos outros...
Acho que se pode ter a mesma satisfação em ganhar e perder amigos.
Aliás, para falar a verdade, nunca senti a sensação de ter perdido amigos,
apesar de ter acompanhado muitos ao cemitério. Mas assim que passa aquela
sensação triste que se tem nos enterros começo a sentir de novo a presença do
amigo a meu lado, como se tivesse retornando da voltinha que deu para comprar
cigarro na esquina.
Só tenho o trabalho de mantê-lo ali, distraindo-o com conversas fiadas,
para que não ache desculpa de ir-se. E eles – verdade – ficam por aí amontoados
em torno de mim, um tentando ser mais importante do que outro, num assédio
agradável que em absoluto não me perturba. Nunca deixe o amigo pensar que está
sendo chato: amigo jamais chateia amigo.
Desde então tenho comigo que, na verdade, os amigos que a gente ganhou
jamais perde: também na amizade há algo de eterno.
Um dia pensei em botar ordem nesse movimento caótico, mas sou tão
desorganizado quanto eles. Jamais poderia colocá-los, digamos, numa
organização, tempo e espaço cronológicos, nem poderia falar de maneira tão
literária que valesse a pena dizer a mais pessoas
como gosto de lembrar meus amigos. Enfim, é uma coisa que me tenta e que também
teria gosto de fazer, mas não sei como realizar.
De alguns deles nem teria como iniciar a conversa. Saí da minha terra e
eles ficaram por lá. Esse deslocamento físico por pouco não se transforma em
separação espiritual, mas quase. Todos começamos a ser atropelados pela máquina
do tempo: acidentes, doenças, vidas atribuladas.
As notícias escasseiam e quando surgiu, enfim, a oportunidade de
reencontro muitos tinham morrido sem dar a chance de pegá-los pelo braço e
mantê-los colados a mim, como faço com os outros, com pena de que se fossem de
vez. Para encontrá-los agora fica difícil – estão por aí vagando no mundo,
pelas calçadas, becos, tomando bebidas, cheios de saudade.
Do Luiz Barriga eu me lembro. Nossa amizade nasceu em porta de botequim.
Éramos conterrâneos e contemporâneos, mas curiosamente não nos conhecemos na
juventude. Viemos nos conhecer no Bar Riga (o nome diz tudo), de
propriedade dele, ele do lado de dentro e eu no balcão bebericando algum veneno
alcoólico. Luiz tratou logo de me seduzir com a meladinha que fazia à base de
cachaça, limão e mel, em doses que só ele sabia medir.
Colocava os ingredientes no copo longo e batia com talo de goiabeira,
cuja extremidade se tripartia tipo pé de galinha, como se fosse a hélice da
batedeira. Metia o talo entre as mãos e mexia vigorosamente até a mistura se
tornar homogênea, de forma que ao paladar desaparecia o sabor da cachaça, do
limão e do mel, para dar lugar a uma bebida de gostinho ácido, diferente.
Além desse aperitivo (e de uma batida de maracujá de primeira), Luiz
Barriga mantinha um estoque de cachaça com ervas, raízes e cascas, medicina
para todos os males. As vezes eu chegava reclamando do estômago, fígado,
vesícula, essas coisas, a receita infalível era o tal de Pau Pereira,
cujo gosto era muito amargo – mais amargo que a coisa mais amarga que se possa
imaginar. Eu só aguentava beber aquele remédio tomando a dose de uma
talagada só.
O passado de Luiz Barriga coincidia com o meu em algumas travessias,
pois tínhamos a mesma idade. Estudamos nos mesmos colégios, fomos nos
apresentar ao serviço militar na mesma época. Só que ele foi ser fuzileiro
naval e eu nem as armas servi, fui considerado incapaz. O serviço de fuzileiro
dele se misturou com o golpe militar de 1964, a revolução. Aproveitamos o
encontro para falar daquele tempo tumultuado das assembléias dos marinheiros,
das greves, de João Goulart, do Comandante Aragão e claro do cabo Anselmo,
divisor de discussões, como igreja, futebol e política.
Do cabo concordamos numa coisa: traidor ou traído, ele era um canalha,
não beberia jamais em nossa companhia. Luiz Barriga conhecia muita coisa, mas
nunca deixamos que a discussão fosse um limite à nossa amizade. Por isso muita
conversa terminava em reticência, que ninguém procurava eliminar. Luiz Barriga
saiu dos fuzileiros para o bar, na distância da terra natal, casou, teve
filhos. Nordeste nunca mais.
Os botequins têm sua particularidade. No Bar Riga tinha a mesa
que era coletiva. Todos os dias repousavam nela um jornal, um cinzeiro, uma
garrafa de pinga sem rótulo ou a revista semanal. Um dia estava pousado o
jornal O Globo. Na página de obituários uma notícia chamava a atenção de todos,
mesmo porque já estava marcada com um círculo à caneta vermelha. Pelo tipo de
notícia, que adotamos para nós, depois o recorte do jornal acabou virando
quadro emoldurado, pendurado em lugar nobre.
Dizia a nota fúnebre:
Os Botequins Fecharam
Morreu o
Cavaleiro da Ordem da Garrafa
O Soho
amanheceu de luto. O grande bairro boêmio de Londres chorava a morte de seu
personagem mais popular, o rei dos boêmios, Cavaleiro da Ordem da Garrafa,
Timothy Cotter, o Rosie, amigo das crianças, respeitador de senhoras,
profissão: alcoólatra. Rosie morreu anteontem à noite, num xadrez de Brixton,
aonde fora recolhido por bebedeira e de onde não saíra por não ter dinheiro
para pagar as 5 libras da fiança.
Com 54 anos,
Rosie vivia há 25 anos no Soho, notabilizando-se por suas danças e canções
extravagantes, com que divertia os demais boêmios, em troca de alguns goles.
Alimentava-se de restos dos restaurantes e das barracas do mercado.
Ontem, quando o
mercado abriu, chegou a notícia da sua morte. Todos os botequins fecharam as
suas portas.
Começou a
romaria à morgue. Choravam boêmios e mundanas. Houve um princípio de tumulto
quando um funcionário informou que Cotter seria sepultado como indigente.
“Não deixaremos
que façam isso com o velho Rosie” o brado partiu de Jack Hardiman, vendedor de
furtas no mercado. Imediatamente foi iniciada uma coleta, que rendeu 230
libras. O proprietário de uma casa funerária, também amigo de Rosie, aceitou a
importância como pagamento do funeral, que fez questão que fosse de luxo.
No instante que líamos a notícia do O Globo de 22-05-1970, eu, Luiz
Barriga, Luizinho INPS, Bete Engov, Walter Mug, Jorge Cana, Pudim de Cachaça,
João Bala e mais uma dezena de biriteiros contumazes, que estavam no bar mais
os que iam chegando, resolvemos fundar – em pleno Baixo Cachambi – a Confraria
da Ordem da Garrafa, instituindo simultaneamente, o título de nobreza Cavaleiro
da Ordem da Garrafa e a medalha Timothy Rosie Cotter, em
homenagem ao bebum falecido naquela data no Soho, Londres, Inglaterra.
Para consolidar a Confraria deixamos permanentemente aberta a lista de
adesões que dentro de alguns meses já contava com centenas de assinaturas. É
claro que além do Livro de Adesões não existia prêmio nenhum nem medalha. Uma
única vez um confrade mais animado confeccionou o modelo de Diploma a
ser distribuído, mas a ideia não vingou além de uma cervejada. Então a coisa
que começou assim de brincadeira foi crescendo, correndo mundo de boca em boca,
a ponto de merecer contra notícia do O Globo, igualmente emoldurada e exposta
ao lado da reportagem original.
Muita gente foi atraída para o Bar Riga por esse fato, coisa que
frequentadores antigos começaram a reclamar, tanta era a intrusão e confusão provocada
por gente de fora. Mas o negócio do Luiz
era esse e mesmo com ciúmes nos alegrávamos que prosperasse em seu domínio, na
sua alegria.
Durante muito tempo todos os clientes novos do Luiz Barriga eram
obrigados a formalizar a adesão à Ordem. Hoje o movimento só existe na
lembrança dos sobreviventes.
Botequim no Cachambi Funda
A Confraria da Ordem da Garrafa
Para homenagear o Soho, grande bairro
boêmio de Londres, os frequentadores do Bar Riga, localizado no bairro do
Cachambi, fundaram a Confraria da Ordem da Garrafa, em homenagem ao rei dos boêmios,
Timothy Rosie Cotter, de profissão alcoólatra, falecido recentemente. No mesmo
dia em que Rosie morreu num xadrez de Brixton, aonde fora recolhido por
bebedeira, um grupo de frequentadores do Bar Riga, liderados pelo proprietário
Luiz Barriga, fundou a Confraria e inaugurou o Livro de Adesão da Confraria,
cujas cinquenta páginas já se encontram quase que totalmente preenchidas. Foram
criados igualmente, a Medalha Timothy Rosie Cotter e o Diploma de Membro da
Confraria da Ordem da Garrafa em bonita impressão. A ideia foi tão bem recebida
que o Bar Riga vem recebendo visitantes e adesões de todo o Brasil, tornando-se
ponto de encontro dos boêmios daquele subúrbio carioca. O Bar Riga fica na Rua
Miguel de Cervantes, entre os bairros do Méier e Maria da Graça e divide a
preferência com o Bar Amendoeira, citados ambos no livro Botequins do Rio, pela
qualidade das comidinhas e do chope servido.
Luiz Barriga – preciso explicar a razão do nome? – bem, com seus 1,90m
de altura, ele simplesmente pesava mais de 200 kg! Bem diferente das
fotografias do tempo que serviu na Marinha, musculoso, halterofilista, lutador
de jiu-jitsu. Gostava, ele mesmo, de cozinhar e elaborar o cardápio do pequeno
Bar. Os pratos eram típicos... da cabeça dele: Galo Velho, Vaca Atolada,
Galinha Atropelada, Bode Manco, Boi no Pasto, além do tradicional Mocotó de
Unha, Feijoada com Porcaria, Rabada Verde...
Alguns tinham como tempero, além da pimenta, claro, cachaça ou cerveja.
Quando eu ia comer lá, tinha que me resguardar durante alguns dias de comida
pesada.
Eu costumava chegar no Bar falando alguma asneira em alta voz, gritando,
em ritmo de provocação, coisas assim como: “Luiz, minha mulher me traiu,
fugiu com outro, levou os meus filhos e roubou todo o meu dinheiro!”
Ou: “Luiz, estou de ressaca, ontem fiquei bêbado, briguei na rua, fui
assaltado, fui preso depois atropelado por um ônibus, apanhei da mulher e fui
expulso de casa!”
A essas e outras provocações ele sempre respondia com uma vasta
gargalhada: “Então veio ao lugar certo: aqui que é lugar de corno!”
Depois da intimidade Luiz Barriga extrapolava. Largava o bar com seus
filhos e sentava à mesa, bebia todas as bebidas, se fartava das comidas e tudo
que nos servia era compartilhado com o próprio. Mesmo depois que o Bar Riga
fechava, permanecíamos lá dentro, as portas arriadas, para não ser incomodado
por ninguém.
Nessa época eu andava viajando muito a trabalho e não tendo como
acompanhar esse ritmo alucinado passei a evitar o Bar Riga. Quando
voltei de uma dessas viagens tive a notícia que o Luiz Barriga havia morrido.
Já passei lá no Bar Riga algumas vezes, conversei com seus filhos, mas
não encontrei o Luiz Barriga, não senti a presença dele ao meu lado, nem quando
pedi uma dose daquele horroroso Pau Pereira .
Onde você estiver eu brindo
de coração:
– Saúde!...
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Do livro:
Sonja Sonrisal
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