sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Léo Vaz: "O Grêmio"

O GRÊMIO

Naquele tempo, em Ararucá, era coisa simples a fundação de um grêmio literário ou de uma sociedade recreativa, dançante, esportiva ou de qualquer outro intuito.
Estava a gente à esquina, nalguma tarde de discussão, versando a arte, a moral, a literatura, a religião, o extremo-oriente e outros assuntos mais ou menos embicantes nos interesses ararucaenses quando a prosa, de repente, numa síncope brotada das nossas opiniões alfim unanimisadas, morria de todo.
Ficávamos, então, ali, ruminando em silêncio os últimos silogismos, quando algum de nós, de digestão mental mais rápida, irrompia:
— Por que não fundamos um grêmio literário aqui nesta terra?
Os outros, despeitados, inopinadamente concordavam:
— É verdade; por que não fundamos?
— Sim; uma sociedade literária com gabinete de leitura e um salão para conferências. Em Ararucá há elementos: eu, vocês, o Juca da farmácia, o Bernardino do 1º ofício... e quem mais?
— O Maneco.
— Que Maneco?
— O Maneco Borba, da loja do Abrão.
— O quê?... um caixeiro!...
— Sim; ele é caixeiro; mas lê muito. E lê em francês, até!...
— tem, vá lá, o Maneco; mas só ele.
— Pois não.
— Há ainda o Belmiro...
— O das charadas?!...
— Não, Tonico, além das charadas ele faz versos bons. Ainda outro dia mostrou-me um soneto: A Mágoa da Pedra, que...
— Bem, bem o Belmiro também. Mas chega! Já é gente de sobra. Se começamos a enfiar todo o mundo...
Ficava então resolvida a fundação. Era lembrada e logo solicitada para a sessão inicial, a sala do Clube Republicano e o jornal de Ararucá, a “Trombeta”, estampava, na sua primeira sortida, a notícia auspiciosa:
Diversos rapazes da nossa melhor sociedade cogitam a fundação de uma associação literária e recreativa, com o louvável fim de promover o desenvolvimento literário e artístico do nosso meio, bem como de estreitar as relações sociais da nossa terra, oferecendo saraus musicais e conferências, a que não há de faltar o apoio do magnânimo povo ararucaense, etc., etc., etc.”
De fato, na primeira reunião, a sala do Clube enchia- se de gente. O Castro, redator da “Trombeta”, era aclamado presidente provisório e convidava para secretário o Bernardino do 1º ofício. Após o que, expunha os fins da reunião. E depois que os oradores obrigatórios de Ararucá tinham de todo vasculhado o assunto, declarava-se fundada a associação, passando-se a eleger a diretoria de verdade.
Por fim escolhia-se uma comissão para elaborar os Estatutos.
Que delícia o ser-se desta comissão
O seu primeiro gesto, uma vez escolhida, era agradecer a escolha. O segundo era marcar o dia para a reunião elaborativa. Por último, pedia um prazo para a apresentação do trabalho, o que era imediatamente e generosamente cedido, conforme manda a praxe.
Depois disso, a assembléia dispersava-se.
No dia marcado, na salinha que servia de redação à “Trombeta”, reunia-se pela primeira vez o conclave para assentar as leis que regeriam a nova corporação. Cada membro da Comissão levava nos bolsos quantos estatutos de filarmônicas e clubes tinha acaso na gaveta; e, sentados em torno da mesinha, às tesouradas e à goma- arábica, iam alinhavando capítulos, artigos, alíneas e parágrafos únicos até que o grêmio todo ficasse ali previsto e combinadas tôdas as penas para os possíveis delitos de diretores e consócios.
E tinham especial encanto aqueles capítulos das competências, nos trechos em que rezavam: “Ao Presidente compete: a)... b)... c)... h)... v)... e todo o alfabeto das competências de cada um dos paredros sociais, presidente, vice, secretário, vice, tesoureiro, vice, procurador, até os simples sócios rasos, sem destaque social.
Estes, contudo, se não tinham atribuições distintas, forravam-se na larga parte que tratava Dos deveres dos sócios, e em que eram enumeradas as severíssimas penalidades que pairavam sobre quem, paredes adentro da sede social, pusesse o pé num galho seco qualquer do regimento.
Pronto o rosário, o 1º ofício passava-o a limpo e no domingo seguinte, nova reunião no Republicano para apresentação das tábuas gravadas no sinal da “Trombeta”.
Ali, o presidente lia a obra, que a assembléia aprovava, sem emendas nem obstrução, mandando que a ata da sessão louvasse condignamente os moisés da Comissão.
Começavam então as sessões brancas, marcadas pela letra dos Estatutos.
Todas as segundas-feiras, na platéia do “Beija-flor- Cinema”, emprestada dos empresários condescendentes, reunia-se a elite ararucaense para assistir às festas do Grêmio. No palco, à frente de todas as jarras apresentáveis de Ararucá e de uma mesa forrada de colcha rica, formava-se a Diretoria, presidindo à cerimônia. Ao lado, atrás duma mesinha e dum copo d’água, o conferente, após a apresentação e as palmas receptivas, lia a sua perlenga, com muito proveito para a cultura daqueles cérebros cheios de boa vontade.
Um a um, todos os intelectuais de Ararucá iam assim conferindo os mais variados e sugestivos temas em palestras que a “Trombeta” estampava, em seguida, para uso da parte do auditório menos favorecida d’acústica.
E os programas comportavam sempre, além da conferência essencial, vários números acessórios de rabeca e recitativos poéticos. A rabeca estava a cargo da D. Marianinha, filha prendada do promotor público, e os recitativos ao de quem quer que tivesse versalhada inédita na gaveta e a desejasse transmitir à posteridade.
Era uma delícia, nos primeiros tempos. Era “o renascimento da cultura municipal”, conforme afirmava a “Trombeta” nos narizes-de-cera com que encabeçava os relatos das artísticas seratas.
Mas aconteceu o que sempre acontece a todos os grêmios em todos os Ararucás do mundo — morreu. E, o que é pior, não morreu de morte natural.
Foi o caso que o Juca da farmácia teimava, nos últimos tempos, em proteger os seus parentes e amigos, reservando-lhes lugares especiais no “Beija-flor”, enquanto que os Estatutos estatuíam muito liberalmente que cada um se apoderasse dos lugares às conferências, à medida que fosse chegando ao salão, o que era uma sábia maneira de reservar os piores para castigo dos retardatários.
Mas o Juca usava o truque de marcar as primeiras filas de cadeiras com os lenços dos seus protegidos, o que, em Ararucá, significava apropriação temporária mas insofismável do móvel. Aliás lhe não cabia o mérito da invenção, pois assim se usava na igreja, em dias de missa de mor procura. Um lenço do coronel Antunes atado ao espaldar de uma cadeira, preservava essa cadeira do contacto de quaisquer outras nádegas que não as do Coronel Antunes. E mesmo que as nádegas assim privilegiadas não comparecessem, lá ficava o lenço a representá-las tàcitamente. Era assim em Ararucá e o Juca apenas alargava um velho uso, estendendo-o ao Grêmio.
Era porém contra os Estatutos. E por isso foi convocada uma reunião extraordinária dos sócios, a fim de se fazer prestigiado o seu Código.
Foi essa assembléia o golpe funesto de que veio a morrer o Grêmio.
Comparecidos à sede, encontraram-se os sócios divididos em dois blocos. Um era pela inviolabilidade da lei; outro, pelo respeito ao costume da terra.
A sessão acalorou-se logo de começo. O presidente, lencista, disse que, em princípio, era pela inviolabilidade, mas, como os Estatutos se achavam ao arrepio de uma tradição secular em Ararucá, opinava por que se revogassem esses estatutos rebarbativos e se elaborassem outros mais de acordo com a alma dos ararucaenses.
Os inviolabilistas protestaram. Aquilo seria um precedente perigoso. Assim, sempre se cometeriam todos os abusos imagináveis, pois que para cada um que surgisse, haveria uma nova modificação dos Estatutos...
O presidente replicou que se poderia encartar nos novos uma disposição que os tornasse para sempre invioláveis.
Os outros marraram que não, que não admitiam reforma. Ou ficava tudo como d’antes e o Juca renunciava ao lenço ou deixavam a sociedade.
Foi quando um lencista, perdendo de todo a com- postura, arremessou sobre os adversários este argumento traiçoeiro:
— Vocês são contra o lenço porque moram perto e, quando chegam, apoderam-se dos melhores lugares ao passo que os outros...
Veio o mundo abaixo:
— Tratantes!.
— Tratante é a vó!...
— Os Estatutos...
— Canalha!...
—... vocês que já tiveram conferência o que querem é matar o Grêmio antes que nós..
—... não sejam asnos!...
Venha p’ra rua!...
— Pensa que eu tenho medo de careta!...
— Calma, senhores!...
— Aqui não brigo, que tenho educação
—... poeta de água doce!...
—... para a rua, seo cachorro!...
Voou uma cadeira. Outra mais. Mais outra. Enfim, uma de mor impulso partiu a lâmpada do aposento, deixando os contendores à meia luz que vinha dos postes da rua. Os ânimos não sossegaram, porém, e houve bordoadas de cego, sopapos, safanões, berreiro... o diabo.
O diabo e a polícia. Alguém da vizinhança apitara e o cabo, mais três praças, invadiram o recinto, insulando:
— Ordem, seos moços, que o delegado “hivem”
As trevas foram propícias para a evacuação imediata da liça. Fartos de murros anônimos e com o instinto antipolicial aguçado, lencistas e inviolabilistas safaram-se sorrateiramente.

O patrão do Juca vendeu por muitos dias farta dose de arnica e largos metros de tafetá; e em Ararucá por bom tempo se não falou em grêmios literários recreativos.

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