ALÉM DA
TAPROBANA
Estava
lendo Camões quando o telefone tocou. Era uma voz de mulher. Dizia que tinha
algo importante para falar e me implorava para que apenas a escutasse. Não
queria conselhos nem dinheiro emprestado, nem qualquer outra coisa.
- Apenas
me escute, dizia como se estivesse acabado de encontrar o gigante Adamastor.
Neste
momento estava eu além da Taprobana, seguindo por mares nunca dantes navegados
e já chegando ao Cabo das Tormentas. Um tanto confuso e espantado, indaguei do
seu nome, ao que ela disse que saberia mais adiante pelo próprio teor da
conversa, e falou ainda que contava muito com minha compreensão. Em seguida
suplicou-me para que não desligasse o telefone, pois se tratava de algo do meu
interesse, e me pedia desculpas pelo incômodo, e repetia que só procedia assim por se tratar de um assunto de
excepcional relevância.
Eu
disse-lhe que tudo bem, e fiz-me envolver pela misteriosa voz desta musa
secreta, prontificando-me a ser todo ouvidos. Ela me agradeceu a paciência,
pedindo para que não fosse interrompida, pois o que tinha para dizer era
deveras sucinto, e não me custaria mais que alguns breves minutos. Dito isto,
principiou a falar...
Há vinte
anos que nos conhecemos, quando éramos estudantes de Letras, lá pelo ano de
1995. Lembro-me de você como se fosse hoje. Era magro e tinha um nariz pontudo,
os cabelos lisos e pretos. Quanto tempo!
Lembra-se
daquele dia em que nós dois, ambos eufóricos, líamos Os Lusíadas em voz alta lá
na Praça do Relógio? Você lia uma estrofe e eu outra, até nos cansarmos de
tanto ler. Depois íamos para a lanchonete e nos esquecíamos das aulas. Ah,
doces lembranças!
Você me
chamava de Terpsícore, pois gostava de me ver dançar, e dançávamos juntos, e
ríamos juntos e nos transbordávamos de amor. Então você me beijava
deliciosamente, e me abraçava cheio de
poesia, e me recitava poemas, e me prometia eterno amor. Queria tanto que se
lembrasse desses nossos momentos!
E, por
fim, trago à memória o nosso último encontro. Lembra? Você estava ansioso, pois
era seu último dia na faculdade. Notei que estava um pouco triste, mas não me
falou a razão da sua tristeza. Da minha parte, estava transbordando de
felicidade por sua causa. Ah, quanta expectativa nutria dentro de mim!
Chorei
muito quando me disse que iria visitar seus pais. Embora me garantisse que
voltaria em breve, ainda assim chorei. Alguma coisa dentro de mim parecia dizer
que era o fim de tudo, que não nos veríamos mais. E foi com esse pressentimento
ruim que nos despedimos. Você se foi e nunca mais voltou, nem me deu notícias.
Por quê? Isso eu nunca soube.
Há dois
meses encontrei por acaso uma de suas amigas dos tempos de faculdade, que deu
notícias suas e me cedeu o seu telefone. Queria que soubesse que, passados
vinte longos anos, ainda o amo profundamente, e talvez muito mais que antes. Se
isso é loucura, vá lá, que seja! O fato é que o amo, apesar de tudo e do tempo.
Qual a
relevância dessa conversa?
Bom.
Estou desenganada pela Medicina. Tenho ainda alguns meses de vida, talvez uns
dois ou três, foi o que me disseram os médicos. Quisera muito vê-lo antes de
partir. Esse é meu anseio supremo. Sei que deve ter suas ocupações, mas...
Interrompi
a conversa prometendo vê-la imediatamente ainda no dia seguinte.
E lá fui
navegando na minha triste nau a ver minha antiga Terpsícore. Será que dançava
ainda?
Estava
tomado de estranhos sentimentos. O remorso corroía minha alma, e cheguei a
sentir vergonha de mim mesmo. Nada justificava tão longo silêncio! Era como se
estivesse navegando em rota oposta aos dos lusíadas, indo de Melinde à Mombaça.
O Velho do Restelo parecia me
interpelar, tentando convencer-me a não
prosseguir viagem, e me acusava de vil
infâmia. Por um instante pensei em desistir de tudo, em abster-me de vê-la,
porém, após ferrenha luta comigo mesmo, triunfei sobre o vil tentador e seguir
avante com o socorro das musas.
Ela me
esperava à porta. Estava linda, não obstante seus quarenta e três anos de
idade. Trajava um vestido longo e todo azul. Não se mostrava triste, em vez
disso, parecia espargir luz pelos olhos, e sorria como uma noiva que ansiosa
aguarda o noivo no altar.
Entrei. Havia
flores por toda a casa, flores de várias cores e tipos. Escutei uma exuberante
melodia. Era o Danúbio Azul. Então de repente ela começou a dançar, e girava de
um a outro lado, e erguia as mãos para o alto, e suspirava, e murmurava
expressões de amor. Sem dizer nada,
tomei-a pela cintura, beijai-a escandalosamente, e dançamos, e nos amamos pela
noite adentro. Pela manhã acordei como se estivesse na Ilha dos Amores. Ela
porém não estava mais lá... Tinha ido ao Concílio dos Deuses.
Maio/2015.
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