sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Araújo Porto-Alegre: "5 Poemas"

FALA DE BOADBIL

Mais desvaira a fortuna!.. Estava escrito,
Escrito estava, oh Rei! Na casa de Hércules,
Desde o berço da Ibéria, mão oculta
Fatídico papiro aferrolhara,
Em que Alá prescreveu nossas conquistas.
Não foi o braço humano, não decerto,
Quem do céu despejou centos de raios,
Que o pó e cinzas com assombro do orbe
O templo reduziram! Foi Rodrigo,
O pecador que surdo à voz celeste,
Insano profanou com ímpia destra
Esse altar onde os evos ocultavam
O aresto que fez ruir seu trono,
Seu plaustro deseixar-se, e o cetro avito
Quebrar-se eternamente sobre as margens
Do rico Guadalete, em face a Xeres.
Stava escrito!... Não foram vossas armas
Que meu trono abateram; foi o fado!
Aben-Hassan, meu pai, Deus o ampare,
Viu a par da derrota a estrela mesta
Do infortúnio pousar sobre o meu berço,
Predisse o céu meu fim; fatal decreto
Da morada de Alá baixou à terra.
Aqui mesmo, Senhor, nesta atalaia,
Berço e sepulcro da grandeza humana,
Uma horrenda visão teve ele um dia,
Dia nefasto dos anais da hégira.
"Mergulhava no mar o limbo ardente
O sol; suave tarde a primavera
De andaluzas delícias revestia;
Sobre o bafo de meiga e fresca brisa
De nardo e lume um oceano etéreo
Vinha os lábios ungir de almos encantos
E o astro do profeta a prumo ao cimo
Desta imensa guarita das vigias,
Brilhava puro e calmo, como a face
Da Huri que nectariza eternamente
Os lábios do escolhido. De repente
O céu se enluta, e as cândidas estrelas
Em verdes flamas se convertem, cruzam,
Trovejando no espaço ronco horrendo!
Mais vermelho que o sol da terra surge
Um rompente leão! Lança-se ao astro,
E o devora de um trago! A natureza
Parecia reentrar no caos informe,
E em trevas sepultar-se!.. Só a imagem
No céu se via da medonha fera
Sacudindo da juba ensanguentada
Um granizo de fogo sobre os tetos
Desta infausta cidade!... Meu pai, trêmulo,
Sentiu da morte a mão premer-lhe o seio,
E ardente desfiar-se de seus olhos
Sobre a nívea marlota sangue em bagas
Horrorizado foge, titubeante,
E o pátio dos leões assim varando,
Ouve um gemido que lhe vara o peito.
Da bacia de marmor, que no centro
Espadanas de sangue trasbordava
Sobre o dorso marmóreo dessas feras,
Já com sangue cristão assás banhadas,
Um espectro fosfórico o assalta!
Como ardentes carvões chameja a larva
Em muda exprobação olhar satânico!
Tira do seio ensanguentada espada,
E nos lábios cruéis a limpa, e cospe
No rosto de meu pai mancha indelével...
Convulsivo sacode a fronte hirsuta,
E com ela lhe atira espedaçada
A coroa augusta de Granada às plantas;
E após sumiu-se o agoureiro espectro!..
Como um ébrio que vê fundir-lhe o raio
A taça de ouro, que emborcava aos lábios
Em louca libação, gelado fica.
Assim ficou meu pai!... Soa um vagido
Nos régios aposentos, que o desperta!
Outro soa maior! foge, e procura
Lenitivo ao terror no casto seio
De minha terna mãe; e o que ele encontra?!
Era eu, vindo à luz naquele instante!
Era eu, que à desgraça destinado,
Vinha ao mundo da dor, do desengano!
Era eu, que dos olhos desprendia
A lágrima primeira, e nela ao vivo,
De um círio à luz que o tálamo aclarava,
Viu meu pai com assombro refletir-se
A imagem pavorosa das exéquias
Do trono de Granada!... Estava escrito!
Os braços granadis ora algemados,
Aos braços dos cristãos em força igualam,
E as águas do Genil dão gume ao ferro
Para o ferro cortar de vossas armas...
Alá foi quem venceu!... Ante meus olhos
Julianos e Oppas, refratários
Às juras do corão, patentes vejo!
Nem a esposa me resta, que o mau fado
Me fez repudiar, cobrir de opróbrio,
Negando seu amor!... Sangue, só sangue,
Avancerrage sangue em toda a parte
Minha esperança para sempre afoga!
Nasci em dia aziago... Eis vossas chaves.
Uma graça, Senhor! sede piedoso:
Tolerai o corão: ele é do Mouro
Um roteiro do céu. Inda outra graça:
Mandei que um alvanel a porta mure
Por onde Boadbil desceu do trono."
Disse: e o despeito brota-lhe nos lábios
Espessa espuma. Não lhe verga o ânimo
Da despegada esposa o riso odioso,
Nem as faces traidoras dos escravos
Que nele viam perecer a pátria;
Antes, rolando os inflamados olhos,
Um por um os confunde, e rei se mostra!



FERNANDO E ISABEL

Convulsivo tremor a face augusta
Da formosa Isabel percorre, e estampa
Em seu terno semblante a piedade.
Fernando, ao lado dela, oculta o júbilo
Que em seu peito referve; e os olhos fitos
Na alcantilada torre, aguarda ansioso
Ver erguido o sinal, a cruz argêntea
Na mão de Talavera, e glorioso
Engolfar-se nos brados da vitória.
"Santo lago!" do alto da atalaia
Três vezes brada o bispo; e Santo Iago!
Vezes três pela veiga inda reboa
Em prolongado som, que dobra em força.
Como a onda que os flancos arremessa
Em lisa praia, e recuando engrossa
Em marouço, que estoura reboando.
"Castela e Aragão!" grita o rei d’armas,
Floreando três vezes o estandarte
Do Apóstolo guerreiro, cujo nome
A fé robora, e acende o amor da glória.
Responde a artilharia, rufam caixas,
E no campo flutuam férreas massas,
Dardos de fogo rutilando em nuvens.
Fernando beija a terra; ao som das harpas
Grave Te Deum se entoa, a que respondem
Toda a corte, guerreiros, e cantores.



FUGA DE BOADBIL

Ei-lo, o fero Boadbil, sobre alto monte,
Fugindo desses hinos que concutem
Em seus tristes ouvidos sons funéreos,
E o sólio avito num saudário envolvem
De fumo e sangue. Em vão turbando intenta
Prender-se à doce imagem fugitiva
Da finada grandeza: é tudo baldo!
Nunca em seus olhos a amorosa Alhambra
Mais bela se estampou, nem sobre a terra
Granada alardeou tantos primores!
Sereno estava o céu, como o respiro
De puro infante, adormecido aos mimos
Da carinhosa mãe. E ele não via,
Nesses desejos da desgraça extrema,
Rolando os olhos no horizonte pátrio,
Erguer-se um fumo lampejando estrondos,
Sublevarem-se os seus, tinirem armas,
Romper-se a cruz ibéria, e novamente
O crescente raiar nos rotos muros,
Como um astro propício... Ah! nem via
Abrir-se a terra e submergir Granada,
Ferver em seu sepulcro um negro lago
Exalando mortíferos vapores.
Pela última vez sua alma adeja
Em seus olhos, e diz enternecida
Saudoso adeus à pátria escravizada,
Saudoso adeus ao trono, ao mando, e à glória;
Um suspiro o acompanha, longo, intenso,
Suspiro que concentra um reino, um mundo:
E após o suspirar viu-se em seus olhos
Do infortúnio rolar a fria lágrima...
Para ele volvendo a vista ardente,
Então a mãe que muda o acompanhava,
Com despeitoso orgulho assim lhe fala:
"Como fraca mulher, Príncipe, choras
O teu reino perdido?... Sim, pranteia-o,
Já que homem tu não foste em defendê-lo.
Inda há pouco teu vulto enchia a Espanha
De assombro e majestade! Ora abatido,
Nega-te a própria terra um canto, um pouso
Em que possas dormir!... E tu sabias
Que o manto de um plebeu não cobre a espadoa
Que um império sustenta; e tu me ouviste
Desde o berço dizer-te esta verdade:
Que não é rei quem rei morrer não sabe!"
Qual se adunco cilício o repassasse,
Ou se um raio estrugisse em seus ouvidos,
A voz apaixonada da Sultana
Fere sua alma, e lhe desnuda o mundo.
Um ermo tenebroso, áridas sirtes
Entre vagas que o céu fulmina irado,
A terra lhe parece. Amor do berço,
Delícias do consórcio, e a majestade
Em voragens profundas desparecem;
A morte é seu porvir, sua esperança!
Da pátria a terra e o céu infaustos cercam
Seu ser real proscrito. Encara os mares,
E nas rubras caligens africanas
Renasce-lhe a existência. Solta as rédeas
Ao fogoso corcel, e afasta os olhos
Do aflitivo painel que o dilacera.



ALHAMBRA

Penetram nas formosas galerias
Da encantadora Alhambra os vencedores;
O fero trote dos frisões recresce
Nas sonoras abóbadas. Fernando
Não pode clausurar num vão silêncio
A insólita impressão:
"Ah! vale o sangue
De meus nobres guerreiros esta régia
Tão bela e grandiosa, que escurece
Quantas conheço na afamada Espanha!
Por ela inda mais sangue eu verteria."



NUM ÁLBUM

Ah! não penses que o peito do vate
É cratera de eterno vulcão,
Que essas horas da vida são flores
Que não pendem, não morrem no chão.

Ah! não penses que o lume em seus olhos
É planeta de eterno brilhar,
Que em uns olhos não pode uma lágrima
Vir o brilho celeste empanar.

Ah! não penses que a eterna harmonia
Que a uns lábios formosa baixou,
Será sempre suave, divina,
Como aquela que em Deus se criou.
  
Semideus, entre a terra e os céus,
Duplo fado lhe deve tocar:
Um sorriso no amor, na esperança,

Desenganos por onde passar.


---
Fonte
"Toda a Poesia: Antologia Poética". Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2015

Nenhum comentário:

Postar um comentário