sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Adeodato Barreto: "5 Poemas"

AS AZINHEIRAS

São como eu aquelas azinheiras
do montado...

Como o verão alegre põe doçuras
e sorrisos no côncavo estrelado,
aprestam, em sorrisos, seu toucado
e vão erguendo ao céu os galhos novos.

Mas sob o verde-claro dos renovos
o negro da tristeza
se lhes adensa, em rama, tristemente
nos abrigos;

e quem as vê por dentro já pressente
o inverno que ameaça a Natureza:
-igual ao que se adensa na minha alma,
igual ao que não vêem meus amigos...


A PENEIRA

Aquele pobre insensato
que despreza o Permanente,
por um prazer aparente
só por ser imediato:

Lembra a peneira doidinha,
tão doida quanto fininha,
que, conservando o farelo,
deixa fugir a farinha...


REDENÇÃO

Goa bela!
Olha os Gates em chama!
Olha a crista revolta
que se inflama!
Andam tigres à solta
nos bosques de Bengala!
É a Índia que te fala!
É a Índia que te chama!

Olha os Gates floridos, Goa bela!
Seus píncaros parecem mil canteiros
de corolas subtis, multicolores;
nos seus desfiladeiros,
a Água se transforma em mar de leite
e o leite em mar de Flores!

Eis a Manhã de Glória, que desponta
num clarão!
Goa! Olha os Gates floridos!
Olha os reflexos da Aurora
da tua redenção!

Vês como, além, o areal palpita
e as arequeiras
suas copas virentes entrelaçam
ao seu calor?
No jangál já vê o wág se não agita,
e, alacres, despertam capoeiras,
e mil casais se enlaçam
com amor...
É o fulgor
da tua manhã de Glória que os excita!

Ó Goa bela, ouve os Gates cantando:
nos seus mihares
de ôllos seculares
— imensas catedrais abobadadas —
acordam as ninhadas!
A brisa do Decão traz-nos, dos ninhos,
suas canções:
parecem luz a entrar aos bocadinhos
nos corações!

Olha os Gates, ó Goa, Goa bela!
Vê como as verdes olas se espanejam
nos seus palmares;
e os bule-bules gárrulos festejam
a hora do resgate!
O coco, escrínio de oiro,
tingiu-se de mais loiro,
e nas searas das morodas
se aloira mais o bate!

Goa bela!
Eis o pólen da Vida
que Súria vem verter nos teus jardins!
Abre à Vida o teu peito:
o seu beijo fecundo redimida,
a Natureza juncará teu leito
de mogarins!...

O Mar, teu bardo antigo,
teu velho amante,
estorce-se em tuas praias suplicante,
esmolando carícias:
(blandícias
de traição...)
Mas não lhe volvas teu olhar amigo,
ó Goa bela!
O mar é um inimigo:
se te traz a monção,
também te traz procela
e já te trouxe a santa
Inquisição...
O Mar, teu velho amante?
Tola a paixão qu’inda por ele nutres!
pelos trilhos
do seu dorso gigante,
pombas de brancas asas,
(por dentro abutres
de goela hiante...)
vieram sobre ti banquetear-se
e te servirem fogo em vez de luz:
e mancharem teus lares
e queimarem teus filhos,
teus livros, teus tesouros, teus altares
frias, pálidas mãos alçando a Cruz!

E com os filhos queimados,
com os livros perecidos,
os altares destruídos
e os templos profanados,
os teus Deuses te deixaram,
os teus sábios morreram
as virtudes debandaram
e... os abolins feneceram...
Hoje na tua vida
tudo é monotonia:
sem ciência nem cultura, sem gênios nem poetas
vegetas...

Pobre mina exaurida!

No ritmo da ataxia
a seiva produtiva
estancou em tuas veias...
E crês-te progressiva!
E pensas iludir essa melancolia
caiando de alvaiade as faces bronzeadas,
a fingir de.... europeias!

Mas ficam furta-cores...

Águias ousadas
e inquietas,
condores
ansiosos de vida e de espaços,
teus filhos,
buscando novos trilhos
abandonam-te em triste debandada.
Uns encontram a Glória, outros a Morte:
eles, águias inquietas
na sua sede de vida e de espaços!
Mas tu, indiferente à sua sorte,
comes do ganho dos seus braços
e encostas-te às muletas
como uma velha trôpega e cansada!

Eis a lição,
“a exploração”,
que te legou a Europa, tua senhora:
ela explorou-te outrora,
tu exploras agora
os filhos do teu próprio coração!
Pobre Goa, tão pobre! Em que ignóbil carcaça
pôs a tua alma d´ouro, a hora da desgraça!
Teu cérebro esgotado
dormiu na inconsciência!
E, esquecido o passado,
interrupta a História,
bate em vão a alheias portas em busca da Ciência!
Vai em balde a estranhas terras à procura da Glória!

Ó Goa bela! Acorda!
Esquece-te e recorda!

Esquece os longos anos de desdita,
de miséria infinita,
de revolta, de luto, de opressão!
Esquece a Inquisição,
e o Jesuíta
que te torceu a alma,
que te deixou por arma
a hipocrisia,
e cavou mil abismos penetrantes
(fé, costumes, língua, tradição...)
entre
os filhos do teu ventre.
Esquece-te das noites horrorosas
e trágicas, de incêndios crepitantes
em que, templo após templo,
campo após campo,
se consumia
o melhor das riquezas portentosas
que no teu seio havia.

Ó Goa bela, acorda!
Esquece-te e recorda!

Recorda a tua História!
Folheia o Livro de Ouro do Passado!
Volve às eras de glória
em que eras grande, em que eras moça e sábia,
em que os homens do Pérsico e do Tigre
te vinham ofertar corcéis da Arábia
e tu lhes davas sândalo e gengibre;
em que os teus cinco rios,
cantados
pelas puranas santas
lavavam os pecados
e eram visitados:
rios cuja água, bebida,
era uma fonte de amor, doçura e vida!

Esses tempos passaram,
estas glórias morreram,
essas árvores d´ouro feneceram,
e as águas sagradas,
abandonadas,
se profanaram...
Jamais um batelão
de quilha donairosa
flutuou triunfante à tona do Zuari;
e a flor da tradição
tremeu e, pressurosa
fugiu de ao pé de ti...

Outros povos, porém, outros ares mais puros
e reinos mais seguros
guardaram com unção
o seu botão.
Hoje, desabrochada, as pétalas estrela
e estende para ti:
E sobre o gineceu — exulta ó Goa bela! —
surge, de novo, ovante, a Deusa Lakximi!

E agora
olha a manhã de glória que desponta
num clarão:
É ela
— Ó Goa bela!
São os Gates floridos!
São os reflexos da Aurora
da tua redenção!



O GÊNESIS DA MULHER

Deus, logo que fez as flores,
Parou e pôs-se a cismar…
– Falta a flor dos meus amores.
Vou outra flor inventar.

Colheu lírios e boninas,
Rosa… cravo e malmequer,
Mogarins, zaiôs e cravinas…
E fez de tudo a mulher.

Viu, porém, que a nova flor
Era a que mais graça tinha
Disse, então, cheio de amor:
– Não és só flor, és rainha!

Pôs-lhe na fronte a pureza,
Na boca um terno sorriso,
No coração a firmeza…
Esqueceu dar-lhe… juízo.

  
CANÇÃO DO BHÁUL

Teus caminhos, senhor,
teus caminhos de amor,
perdidos,
oculta-os a Mesquita,
a cobiça infinita
da Igreja,
do Pagode...
Aos meus ouvidos
vibrou, há muito já, o Teu apelo,
e a minha alma deseja,
mas não pode,
recolhê-lo...
No início das Idades,
a Natureza
aceitou e guardou teu mandamento
no coração.
Só o homem enjeitou o inestimável dote
só ele lhe negou a alma p´ra retiro,
e cometeu-o ao papiro,
ao livro, ao sacerdote!...

E Tu ainda lhe bates com frequência
à porta da consciência.
Tu mandas-lhes profetas, avatares,
com tuas mensagens salutares,
num grandioso exemplo
de paciência!
Mas eles, em resposta,
encerram-Te num templo!
Sob as grandes arcadas
Te procuro,
nas catedrais:
claustros silenciosos,
naves abobadadas
e colossais,
da alva Mesquita ao hipogeu escuro,
percorrem tudo, aos rastos, meus joelhos
pressurosos.

Mil vezes invoquei Teu nome puro!
Mil vezes Te chamei «Senhor, Senhor»!
Mas sempre em vão!
Folhas dos Vedas, citas dos Evangelhos,
versículos da Bíblia e do Corão
foi o que vi,
mas nada disso mata a sede ardente
da minha alma por ti!

O Mundo é o melhor Veda,
Bíblia maior que a Bíblia é a criação.
O brâmane segreda
as mantras mansamente,
mas o Livro da Vida está aberto por Tua mão:
deste-o Tu a ler a toda a gente...

P´ra que irmos a Meca ou Benares?
Acaso quando estás num santuário,
é por faltares
no Universo inteiro
aos outros meus irmãos?
Acaso as proporções dum relicário
podem conter a Tua astral grandeza?
P´ra quê erguer-Te templos, se o primeiro,
se o mais extraordinário,
é o templo, sem par, da Natureza,
uma obra das Tuas mãos?

Nesse Templo admirável,
milhões
volvem para Ti seus tristes corações...
O espectro execrável
do Ulama ou do Guru
escava abismos mil, mil divisões
entre os irmãos.

Mas eles, grade a grade,entre as prisões,
dão-se as mãos:
o seu ideal és Tu!
Atende, pois, Senhor, o seu suspiro.
Transforma este retiro
desolador
num reino de Alegria
e de Amor!
Que, no livro da História,
as Tuas graças,
chovendo qual dilúvio varredor,
apaguem para sempre a divisória
das seitas, das nações, línguas e raças!

Que se sinta embalada a Humanidade
suavemente,
no ritmo astral da eterna sinfonia
da Tua glória.
Nesse dia,
em porvindouras eras
verás, por fim, o Prometeu rebelde
acompanhando, humilde, reverente,

Tua batuta mestra,
na Orquestra
das Esferas!


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Fonte:"Toda a Poesia: Antologia Poética". Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2015.

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