sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Acúrcio Correia da Silva: "5 Poemas"

OS MISERÁVEIS

Tendes olhos de ver. Olhai... — Ao fundo,
Nas bocas tenebrosas das cavernas,
Não vislumbrais um turbilhão imundo
De larvas, num grasnido gemebundo
Feito de raiva e maldições eternas?
 — São os ladrões, ferozes valdevinos,
Cujo instinto são ódios e sangueiras!
Alta noite, os seus olhos de assassinos
Fosforejam bravios, reptilinos,
Entre as sarças das velhas carvalheiras...
Pelas trevas, ao som dos temporais,
Quando os ventos ululam nas florestas,
Vão agrupar-se ás portas dos casais,
Afiando os mortíferos punhais,
Coçando-os pelas mãos nervosas, lestas...
 — São também vagabundos, — os ciganos,
De barbaças intonsas e nojentas,
Esguedelhados, rotos e marranos,
De testa cancerosa envolta em panos,
Escorrendo matérias fedorentas...
Coitados! Em magotes pelas praças,
Para colher esmolas miseráveis,
Esbracejam ridículas negaças
E rouquejam exóticas chalaças,
Retorcendo as bocarras execráveis...
Pobres ciganos! De olhos estoirados,
Pernas podres e faces caboucadas,
Lá vão a correr mundo, atormentados,
De estômago vazio e pés pisados
Dos duros pedregulhos das estradas...
São inda as torturadas das rameiras,
As pobres raparigas sem pudor,
Que se espojam nas frígidas lameiras,
Ao sol, á chuva, ás rijas ventaneiras,
Sem alma, sem destino, sem amor!
São míseros farrapos encharcados
No lodo da torpeza verminada!
Ah! homens, egoístas derrancados!
E ainda vos julgais civilizados,
Ó luxuriosa, estúpida manada!
Não lastimais as pobres meretrizes,
Que andam na lama, a chafurdar de rojo?
Chamai á dignidade as infelizes!
 — Ó rapazes, tapemos os narizes;
Sigamos para cima. Isto faz nojo!

OS REBELADOS

Quedai-vos. Escutai... Eu ouço (ao certo!)
Rugidos formidáveis,
Quais se o Inferno se abrisse aqui perto
E vomitasse do bocal aberto
O brado dos tormentos infindáveis...
Já sei, já sei... — É a estranha turba-multa
Dos homens revoltados,
Que salta, brame, despedaça, insulta,
Como uma formidável catapulta
Feita de homens bravios, desvairados...
São revolucionários contorcidos
Em grossos turbilhões,
De olhos raivosos, trágicos, ardidos,
Agitando no ar balsões erguidos
Ao sol sangrento das rebeliões.
Filhos do ódio, filhos da desgraça,
Não tem amor nem esperança!
Esguedelhados, negros, pela praça,
Rangendo os dentes, gritam a quem passa:
 — Vingança, só vingança, só vingança!
Deixá-los trovejar pelos outeiros...
Oh! Deus lhes mande a paz!
Subamos mais acima, ó companheiros...
(Outono... — Olhai que lindo tempo faz...)

CAVADORES

Ao longe — vedes? — os cavadores,
Filhos do campo, filhos da leiva,
De olhos escuros e cismadores,
Olhos ingênuos de trovadores...
 — Cantam os campos, cantam as flores,
Cantam a seiva...
Por horas mortas (céu estrelado...)
Eles lá vão
Lavrar a terra, guiar o arado,
De olhar bondoso e resignado
Posto nos olhos do manso gado,
Posto no chão...
Vem as chuvadas, as inverneiras;
Rugem os rios, incham ribeiras;
Alagam campos, alagam leiras...
Vede a desgraça!
Que há de ele fazer? — De olhar dorido,
Mal almoçado, pior vestido,
Senta-se á porta, esmorecido,
A ver quem passa...
Vem o calor do sol doirado
Queimar-lhe o pão!
Que há de ele fazer, o desgraçado
Do lavrador? — Vai pró eirado,
De aspeto triste, de olhar pasmado,
Cismar na vida, descorçoado,
Queixo na mão...
Estala a guerra; levam-lhe o filho.
Crescem os ratos, trincam-lhe o milho...
 — Oh! forte praga de ratazanas! —
Branqueja a neve, ruge a nortada...
Lá vai a telha desmantelada
Das alpendradas mais das choupanas!
Ouvide ainda maior desgraça...
Tinha uma filha, — que doce graça
De rapariga...
Nas largas noites, junto á fogueira,
Lume bendito sobre a lareira,
Ela fiava (gentil fiandeira...)
O linho branco da sua estriga...
Até ao tardo cantar do galo
 — Não imaginam, — era um regalo
O pai velhinho vê-la fiar...
Rufam chuveiros fortes lá fora...
(Ai! Anjo Bento, Nossa Senhora
Seja c'os que andam a esta hora
Sobl'as águas turbas do mar!)
Ela era a vida da sua vida;
Ela era o lume do seu olhar,
 — Lume bendito que n'alma brilha.
Como ele lhe queria — rola querida
Nem temos nada que admirar,
Porque era filha...
Mas sucedeu que em certo dia
(Dia aziago... Ele nem podia
Pensar em tal de olhos enxutos!)
Passou por lá um rapazão...
(Grande patife! Grande ladrão!)
Leva-lhe a sua consolação:
Rouba-lhe a filha, e em troca então
Deixou-lhe a dor, — só dor e lutos!
Malditos sejam os valdevinos
Que andam as jovens a desonrar!
Santos velhinhos, boas famílias,
Guardai dos lobos as vossas filhas
Dentro do lar...
Vede a desgraça enorme e crua
Do paciente do lavrador!
 — Triste batalha! —
Que há de ele fazer? Que vida a sua!
Que há de ele fazer na sua dor?!
O Pai-do-Céu o ajude e valha...
***
Bons lavradores! Chorando ou rindo,
Dizem que vida assim não ha...
Vamos, rapazes, vamos subindo;
Deixai-os lá...

OS MENDIGOS

Sentados pelas orlas dos caminhos,
Olhai os lacrimosos pobrezinhos...
Doentes, velhos, rotos, corcovados,
Alforjes para os ombros, resignados,
Pernas secas, cambaias, retorcidas,
Contando-se uns aos outros suas vidas,
 — Olhai que inigualáveis odisséias...
Aquelas engelhadas caras feias,
Escaveiradas, sujas, com barbaça,
Contraem-se num rictus de desgraça
Riscado pelo dedo da miséria...
Sob a abóbada azul, celeste, etéria,
Sem palácios, sem camas, sem pousadas,
Desde o sol-posto á luz das alvoradas,
Percorrem varias terras a pedir
Côdeas de pão...
 Á noite vão dormir
Sobre a palha dos velhos alpendrais,
Juntamente c’os ratos e os pardais,
E c’os escrofulosos canzarrões
(Expulsos da cozinha p’los patrões)
Repartindo com eles das esmolas,
Que tiram lentamente das sacolas...
E comem de uma vez jantar e ceia...
Ainda assim vós não fazeis idéia
Como eles são felizes, os mendigos...
No estio vão deitar-se pelos trigos,
De bandulhos pró ar, a meditar
Nas velhas aventuras, ao luar,
Dos tempos da bizarra mocidade,
De que inda tem uns restos de saudade...
Rastejam pela terra as salamandras;
Chilreiam delambidas as calhandras,
Picando por ali o louro grão...
Que pacifica, ideal consolação
A existência deles descuidada:
 — Pedir, rezar, comer, dormir... Mais nada.
Tardes mornas...
 As nuvens, pelo azul,
São flotilhas, que vogam para o sul,
Em demanda das Índias encantadas
Onde vivem sereias, silfos, fadas...
No outono, passam líricas manhãs
Ferrando os dentes podres nas maçãs;
E em tardes murmurosas vão-se por
Nos ermos, murmurando com fervor
As perfumadas orações antigas
Ensinadas p’las mães (pobres mendigas,
Que o bom Deus desde há muito já lá tem...)
Oh! Nunca esquecem orações de mãe...
Chilreiam cotovias nos valados...
Nas largas noites invernais, coitados,
É que eles sofrem gelos e frieiras!
Por horas mortas, quando as ventaneiras
Lhes fogem c’os colmados das cabanas,
Abandonam a enxerga das choupanas,
E vão-se recostar pelos portais
Aonde o frio os mortifica mais!
O vento ulula rouquidões e pragas...

Andam no ar escuridões presagas,
Que põem calafrios na espinha...
Maldita chuva! — Quanto mais se aninha
O pobrezinho, mais se ensopa e alaga!
Ó santa primavera, Deus te traga...
Primavera! Que tardes deleitosas
Andam no ar ondulações radiosas,
Exalações miríficas das flores...
Que perfusão esplendida de cores
E os pobres, pelas tardes perfumosas,
Coroam-se de mirtos e de rosas,
E atafulham de rosas a sacola...
Santa abundância, abençoada esmola
A tua, ó primavera do Senhor...
 — Alvorada de rosas e de amor...

OS POETAS

Acima companheiros!
Alegres como airadas borboletas,
Visitemos os pálidos poetas,
Que andam a cismar entre os loureiros...
Seu vulto aos céus se alteia...
Vede-os, rapazes, vede-os... — São aqueles
De olhar ardente! — Vede-os, como eles
Trazem nos olhos o clarão da idéia!
Nas faces desmaiadas
Vêem-se indícios da vigília estóica,
Que passam a cantar em rima heróica
As antigas batalhas porfiadas...
Seus olhos amoráveis
Andam tristes, vermelhos de chorar,
Em noites silenciosas, ao luar,
As desgraças dos povos miseráveis...
Espíritos do bem,
Almas de fogo, que um vil mundo encerra
Como os denominou quem foi na terra
Entre os maiores trovador também...
Ó pálidos poetas,
Eu vos saúdo, ó almas desditosas,
Cantores das batalhas ou das rosas,
Coroados de lauréis ou de violetas...


---

Fonte:
"Toda a Poesia: Antologia Poética". Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2015.

Nenhum comentário:

Postar um comentário