CANÇÃO ESLAVA
A Horácio de
Carvalho
Junto à borda
oscilante, sobre a larga tolda do vapor, num recanto isolado dos balaustres de
popa, onde se erguia o camarim do comando e o homem do leme fazia girar
vivamente as malaquetas da roda, em meio de contínuos balanços, ele olhava
tristemente, pela vez derradeira, as formas recortadas e vagas das montanhas da
costa, que se esfuminhavam docemente à distância, no azulamento fosco do céu.
E, torturado de saudade, o espírito abatido, numa imensa desolação, sob aquele
apartamento cruel, que o destino lhe impusera subitamente, com a costumada
possança esmagadora, calado, a cabeça pendida, indiferente a tudo e a todos,
como num sonambulismo, o pobre rapaz sonhador ia desfiando lentamente em
silenciosas convulsões de choro, que o sufocavam por vezes, a romanza
enternecedora de todos os afetos, que vicejavam já, em estelar florescência, a
primeira estância deliciosa da sua mocidade de ouro.
O crepúsculo caía
para os lados da proa, em vasta faixa purpúrea, que se esbatia no alto num cor
de rosa saudoso. As águas, aí, nesse limite aparente e longínquo do oceano,
estavam sulcadas de longos tuyautés tremulantes de mica. E lá acima, no
zênite do firmamento, as primeiras sombras da noite rolavam já, em todas as
direções, com a sua gaze leve e flutuante de cinza. Em volta, no convés
balouçante, em recantos afastados, alguns passageiros mais rijos, que o enjoo
não dispersara ainda, apesar dos vagalhões, olhavam também melancolicamente,
numa vaga palração cismadora, ora o esplendor do crepúsculo dolente, ora a
barra escura da costa, recuando aos poucos, recuando sempre, ao longe...
E o rapaz, isolado
e soturno, cada vez mais alheado de tudo, fixava ainda os lados onde o litoral
se afundava, num profundo recolhimento, sob o bando das recordações. Em seu
cérebro desolado, bailavam agora, numa pungência nostálgica, todas as queridas
visões da sua infância passada. E nesse embevecimento íntimo e nessa dolorosa
saudade, as angústias daquela separação pareciam adormecer por instantes, como
embaladas na doçura inefável de um carinho ou de uma bênção, no fundo da sua
alma sangrando. Mas a noite descia, muda e lutulenta, envolvendo céu e mar num
pó denso de carvão. E o ar todo foi-se cobrindo lentamente de uma miríade
infinita de pontos de ouro flamante, que riscavam aqui e além dum traço vivo de
fogo a cava funda das ondas.
Ele então,
debruçado da balaustrada oscilante, ergueu para o alto, instintivamente, os
seus olhos melancólicos — e quedou-se a olhar as incomparáveis
estrelas, juncando faustosamente o Espaço de pedrarias estranhas.
O seu espírito
ficou pairando longo tempo, todo preso no esplendor sideral e numa mística
abstração, invadido de um profundo sabaísmo, quando um cântico soou de repente
à proa, lá embaixo no convés, por entre-vante da tolda — trêmulo e rouco como uma canção de degredo, ou um gemer arrastado e
opresso de almas anelantes. Eram os imigrantes eslavos, cantando em coro uma
dessas canções nevoentas e saudosas, mas cheias de uma idealidade afetiva, das
suas terras brancas do Norte. Saturados ainda da tristeza da vasta travessia
atlântica, a alma pesada de nostalgia, na recordação embaladora e perpétua da
Pátria distante, expandiam-se resignadamente, deixando voar para o Azul, para
as constelações, numa vaga melopeia rítmica, a sua dor de exilados, que se
fundia por vezes desoladoramente, nos sonoros smorzandos, com a
plangente sinfonia dos cabos e o ciciar funerário do vento nas vergas.
Arrancado subitamente
assim, ao êxtase constelar do seu Sonho rolando pelas estrelas, baixou os olhos
tristemente sobre aquela massa fervilhante de gente, apertada entre as amuradas
de proa como um humilde rebanho, e de onde se erguia aquele canto dolente que
reavivava em seu peito as puas finas da dor. A noite, em redor, tornara-se mais
densa na sua negrura de tinta, enquanto no alto as gotas de ouro dos astros
radiavam, mais vívidas e trêmulas. O mar todo tinha a suntuosidade trágica de
um manto de veludo sinistro, estendendo-se sobre uma planura sem fim e cujas
dobras movediças ondulavam continuamente, aqui e além, recamadas de clarões
azulinos e de um vago reluzir de lantejoulas.
O canto cessara
como alados gemidos sem bênção, e tudo recaiu num leve murmúrio de ondas e nos
ruídos esparsos do vapor, singrando vigorosamente para vante, contra a aragem
do largo, que aumentava de sinfonia gemente. No horizonte, a Leste, vinha
apontando agora uma tênue barra de claridade láctea, que vestia as águas, ao
longe, de vastas placas argênteas. E, daí a instantes, a lua surgia
maravilhosamente, cobrindo a amplidão com o seu imenso velário de tule.
Então, à proa,
junto ao castelo, na amurada de bombordo, onde batia em cheio o luar, uma
figura esguia e branca de mulher ergueu-se, do meio da massa negra fervilhante
dos imigrantes eslavos: e uma voz suavíssima abriu voo na noite, num ritmo
lento e balançado, como um fio de melodia saudosa.
Era uma dessas
canções gemedoras de terras rurais nalgum platô do Kerson, onde o homem se bate
com o solo, ao vento e à chuva, ao calor e à neve, numa labuta constante. Os
versos diziam, na sua cadência vagarosa e lânguida, o custoso revolver da terra
ao clarear das manhãs, o sulcar das charruas para as primeiras plantações, a
capinação incessante dos terrenos gramosos, o verdejar alegre das plantas, o
crescer florescente das hastes, o amadurecer das espigas, o amoroso cantar das
ceifeiras e o reluzir profuso dos grãos, em montões alterosos, no meio da palha
fofa. Tudo isso de envolta com as alegrias, as esperanças, as tristezas e as
desgraças dos pobres mujiques louros. E as estrofes finais davam a
emoção psicológica, o esquisso vago e vaporoso de um idílio de campo, na
amplidão rasa de uma estepe sem termo, ao badalar plangente do Ângelus numa torre
de campanário longínquo, à margem de um rio espelhante, onde dois jovens se
enlaçam e beijam enternecidamente, num último adeus de colheita acabada, sob um
poente de sangue...
Todos, à ré, já
haviam adormecido no silêncio das cabines, sob a sonolência das altas
horas de bordo, em meio aos contínuos balanços. Só, sobre a tolda, o rapaz
enlevava-se, sonhando os seus amores passados na sua aldeia distante, embalado
espiritualmente pelo som acariciador e bendito da campesina canção. E a
rapariga eslava, magnífica ao luar, numa alvura de Visão, de pé contra a borda,
apoiada às enxárcias, o belo rosto de opala voltado para o céu, como num
embevecimento, soltava ao vento e às ondas, apaixonadamente, as notas
deliciosas daquela balada branca...
Rio, 1894.
---
Fonte:
Virgílio Várzea: Mares e campos. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014.
Nenhum comentário:
Postar um comentário